Será que as palavras ficam presas no tempo?
Terão as palavras alguma coisa a ver com a moda, efémera e volátil?
Evocações do passado também poderão ser palavras que, outrora, marcaram tanto o nosso quotidiano como o som do chiar do baloiço, o pregão da “língua da sogra” na praia ou o cheiro do cozido à portuguesa ao domingo?...
Procurar e (re)contextualizar palavras, embalarmo-nos nelas, divagar sobre elas, são alguns dos objectivos deste projecto.
Por puro prazer!
segunda-feira, 26 de abril de 2010
A propósito do discuro presidencial
"Atira-te ao mar e diz que t'empurrarem"
Tudo palavras de algarvios. Lembram-se dos Iris? No caso deles completavam: "Beija-me na boca e chama-me Tarzan", mas...convenhamos...
Estimado ouvinte, já que agora estou consigo Peço apenas dois minutos de atenção É pra contar a história de um amigo Casimiro Baltazar da Conceição
O Casimiro, talvez você não conheça a aldeia donde ele vinha nem vem no mapa mas lá no burgo, por incrível que pareça era, mais famoso que no Vaticano o Papa
O Casimiro era assim como um vidente tinha um olho mesmo no meio da testa isto pra lá dos outros dois é evidente por isso façamos que ia dormir a sesta
Ficava de olho aberto via as coisas de perto que é uma maneira de melhor pensar via o que estava mal e como é natural tentava sempre não se deixar enganar (e dizia ele com os seus botões:)
Cuidado, Casimiro cuidado com as imitações Cuidado, minha gente Cuidado justamente com as imitações
Lá na aldeia havia um homem que mandava toda a gente, um por um, por-se na bicha e votar nele e se votassem lá lhes dava um bacalhau, um pão-de-ló, uma salsicha
E prometeu que construía um hospital Uma escola e prédios de habitação e uma capela maior que uma catedral pelo menos a julgar pela descrição
Mas... O Casimiro que era fino do ouvido tinha as orelhas equipadas com radar ouvia o tipo muito sério e comedido mas lá por dentro com o rabinho a dar, a dar
E... punha o ouvido atento via as coisas por dentro que é uma maneira de melhor pensar via o que estava mal e como é natural tentava sempre não se deixar enganar (e dizia ele com os seus botões:)
Cuidado, Casimiro cuidado com as imitações Cuidado, minha gente Cuidado justamente com as imitações
Ora o tal tipo que mandava lá na aldeia estava doido, já se vê, com o Casimiro de cada vez que sorria à plateia lá se lhe viam os dentes de vampiro
De forma que pra comprar o Casimiro em vez do insulto, do boicote, da ameaça disse-lhe: Sabe que no fundo o admiro Vou erguer-lhe uma estátua aqui na praça
Mas... O Casimiro que era tudo menos burro tinha um nariz que parecia um elefante sentiu logo que aquilo cheirava a esturro ser honesto não é só ser bem falante
A moral deste conto vou resumi-la e pronto cada qual faz o que melhor pensar Não é preciso ser Casimiro pra ter sempre cuidado pra não se deixar levar.
Etelvina com seis meses já se tinha de pé foi deixada num cinema depois da matinée com um recado na lapela que dizia assim: "Quem tomar conta de mim quem tomar conta de mim saiba que fui vacinada saiba que sou malcriada"
Etelvina com dezasseis anos já conhecia todos os reformatórios da terra onde vivia entregaram-na a uma velha que ralhava assim: "Ai menina sem juízo nem mereces um sorriso vais acabar num bueiro sem futuro nem dinheiro"
Eu durmo sozinha à noite vou dormir à beira rio à noite à noite acocorada com o frio à noite à noite
Etelvina era da rua como outros são do campo sua cama era um caixote sem paredes nem tampo sua janela uma ponte que dizia assim: "Dentro das minhas cidades já não sei quem é ladrão se um que anda fora das grades se outro que está na prisão"
Etelvina só gostava era de andar pela cidade a semear desacatos e a colher tempestade a meter com os ricaços a dizer assim: "Você que passa de carro ferre aqui a ver se eu deixo venha cá que eu já o agarro dou-lhe um pontapé no queixo"
Eu durmo sozinha à noite ...
Etelvina já cansada de viver sem ninguém a não ser de vez em quando amores de vai e vem pôs um anúncio no jornal que dizia assim: "Mulher desembaraçada quer viver com alma irmã de quem não seja criada de quem não seja mamã"
Etelvina já sabia que não ia encontrar nem um príncipe encantado nem um lobo do mar só alguém com quem pudesse dizer assim: "O amor já não é cego abre os olhinhos à gente faz lutar com mais apego a quem quer vida diferente"
O seu homem encontrou-o à noite a dormir à beira rio à noite à noite acocorado com o frio à noite à noite
3 comentários:
Estes discursos fazem-me sempre armar-me em Casimiro...
Cuidado com as imitações (Casimiro)
Estimado ouvinte, já que agora estou consigo
Peço apenas dois minutos de atenção
É pra contar a história de um amigo
Casimiro Baltazar da Conceição
O Casimiro, talvez você não conheça
a aldeia donde ele vinha nem vem no mapa
mas lá no burgo, por incrível que pareça
era, mais famoso que no Vaticano o Papa
O Casimiro era assim como um vidente
tinha um olho mesmo no meio da testa
isto pra lá dos outros dois é evidente
por isso façamos que ia dormir a sesta
Ficava de olho aberto
via as coisas de perto
que é uma maneira de melhor pensar
via o que estava mal
e como é natural
tentava sempre não se deixar enganar
(e dizia ele com os seus botões:)
Cuidado, Casimiro
cuidado com as imitações
Cuidado, minha gente
Cuidado justamente com as imitações
Lá na aldeia havia um homem que mandava
toda a gente, um por um, por-se na bicha
e votar nele e se votassem lá lhes dava
um bacalhau, um pão-de-ló, uma salsicha
E prometeu que construía um hospital
Uma escola e prédios de habitação
e uma capela maior que uma catedral
pelo menos a julgar pela descrição
Mas... O Casimiro que era fino do ouvido
tinha as orelhas equipadas com radar
ouvia o tipo muito sério e comedido
mas lá por dentro com o rabinho a dar, a dar
E... punha o ouvido atento
via as coisas por dentro
que é uma maneira de melhor pensar
via o que estava mal
e como é natural
tentava sempre não se deixar enganar
(e dizia ele com os seus botões:)
Cuidado, Casimiro
cuidado com as imitações
Cuidado, minha gente
Cuidado justamente com as imitações
Ora o tal tipo que mandava lá na aldeia
estava doido, já se vê, com o Casimiro
de cada vez que sorria à plateia
lá se lhe viam os dentes de vampiro
De forma que pra comprar o Casimiro
em vez do insulto, do boicote, da ameaça
disse-lhe: Sabe que no fundo o admiro
Vou erguer-lhe uma estátua aqui na praça
Mas... O Casimiro que era tudo menos burro
tinha um nariz que parecia um elefante
sentiu logo que aquilo cheirava a esturro
ser honesto não é só ser bem falante
A moral deste conto
vou resumi-la e pronto
cada qual faz o que melhor pensar
Não é preciso ser
Casimiro pra ter
sempre cuidado pra não se deixar levar.
Sérgio Godinho
http://www.esnips.com/doc/f7f640e0-dcd4-44e0-a441-43e0cd800936
Ai, o Casimiro! Que bela recordação! (E um bom aviso a recordar...)
E também havia uma Etelvina?...
Sim, há a Etelvina, outro dos personagens que o Sérgio cria com enorme sabedoria.
Esta Etelvina recusava o papel tradicional das mulheres: queria (veja-se o desplante!) alguém «de quem não seja criada, de quem não seja mamã»...
Etelvina
Etelvina com seis meses já se tinha de pé
foi deixada num cinema depois da matinée
com um recado na lapela que dizia assim:
"Quem tomar conta de mim
quem tomar conta de mim
saiba que fui vacinada
saiba que sou malcriada"
Etelvina com dezasseis anos já conhecia
todos os reformatórios da terra onde vivia
entregaram-na a uma velha que ralhava assim:
"Ai menina sem juízo
nem mereces um sorriso
vais acabar num bueiro
sem futuro nem dinheiro"
Eu durmo sozinha à noite
vou dormir à beira rio à noite à noite
acocorada com o frio à noite à noite
Etelvina era da rua como outros são do campo
sua cama era um caixote sem paredes nem tampo
sua janela uma ponte que dizia assim:
"Dentro das minhas cidades
já não sei quem é ladrão
se um que anda fora das grades
se outro que está na prisão"
Etelvina só gostava era de andar pela cidade
a semear desacatos e a colher tempestade
a meter com os ricaços a dizer assim:
"Você que passa de carro
ferre aqui a ver se eu deixo
venha cá que eu já o agarro
dou-lhe um pontapé no queixo"
Eu durmo sozinha à noite ...
Etelvina já cansada de viver sem ninguém
a não ser de vez em quando amores de vai e vem
pôs um anúncio no jornal que dizia assim:
"Mulher desembaraçada
quer viver com alma irmã
de quem não seja criada
de quem não seja mamã"
Etelvina já sabia que não ia encontrar
nem um príncipe encantado nem um lobo do mar
só alguém com quem pudesse dizer assim:
"O amor já não é cego
abre os olhinhos à gente
faz lutar com mais apego
a quem quer vida diferente"
O seu homem encontrou-o à noite
a dormir à beira rio à noite à noite
acocorado com o frio à noite à noite
Sérgio Godinho
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