quarta-feira, 31 de julho de 2013

Desespero

"Encontraram-se na entrada. De novo.
Cumprimentaram-se formalmente.
Tinha ficado um clima muito estranho entre eles desde que tinham tido um breve romance.
Terminara de forma tão abrupta como começara.
Ela sentia-se ameaçada. Quase sempre depois dos momentos de ternura invocava que estava a perder o controlo de si mesma, que a relação lhe tirava a tranquilidade, que ele a criticava ainda que mentalmente...
Ele insistia em pedir-lhe pequenos favores que enfatizavam as questões de género: se podia arranjar qualquer coisa para jantar, se podia passar uma camisa a ferro, porque não vestia um vestido quando iam jantar fora...
Tudo era motivo para discussões. Não eram grandes discussões...eram rabugices que foram minando o prazer de estarem juntos, que faziam antecipar uma crítica ao toque de campainha anunciava o encontro.
Mas havia uma atração...era inegável. Qualquer coisa de físico, instintivo, incontrolável, definitivamente irracional.
Esse era sempre o argumento dele. E a razão das recaídas, várias.
Entraram juntos no elevador.
Ela aspirou discretamente o perfume dele. «Era sempre tão bem apresentado». Tentou considerá-lo vaidoso e fútil, mas a verdade é que a figura dele lhe agradava. Muito. Muito mais do que ela considerava razoável.
Os olhos de ambos encontravam-se furtivamente a tentar olhar para o outro lado.
Quase se ouvia a força que faziam para não caírem nos braços um do outro, ali mesmo.
A situação estava a tornar-se insuportável. E o pior, achava ela, é que ele estava a gostar do sacrifício dela. Mesmo sem falarem, estava a sentir-se irritada com ele.
Ela não queria olhar para ele. Sabia que se trairia. E não queria!
Ele, começou a assobiar baixinho "A Lágrima" da Amália.
O elevador chegara ao fim da sua jornada.
Despediram-se com um vago aceno.
Quando ela entrou no carro as lágrimas já lhe tinham destruído a maquilhagem.

Tenho por meu desespero
Dentro de mim o castigo
Eu digo que não te quero
E de noite sonho contigo"

terça-feira, 30 de julho de 2013

Arte-final

Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
quem toma uma por outra
confunde e mente.



Affonso Romano de Sant'Anna (1937)

domingo, 28 de julho de 2013

Tiveste Saudades Minhas?

Quanto de mim se dissolve na areia
 esperando ser lavado pelas marés dos teus braços
 Na vaga de cada aurora em que não vens
 põe-se um ocaso em cada um dos meus membros
 e assim me deixo de bruços
ser engolido pelo mar tão imenso

como a saudade de ti

José Bernardes

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Podia

Podia dizer-te que não me importo
Podia fingir que fugi
Ou que estou morto.
Podia adiar para outro dia
Invocar uma qualquer lei
Dizer-te que não sei
Ou fiquei sem bateria.

Com a verdade mais pura
A única verdade
A única que dura
Faria a minha despedida
A promessa de mil abraços
E uma palavra sofrida

Podia dizer-te que volto
E seria breve
Como um poeta escreve
Livre e solto.

(E tu, minha vida, acreditas
Nas palavras que não digo?
Será o silêncio castigo?
Será em silêncio que gritas?)

Podia dizer-te que são pequenas
As saudades do teu sorrir
Mas seriam palavras apenas
E seria mentir.


Carlos Campos

Soneto

Também eu tenho um "hobby": é viver
minuto após minuto a minha vida,
se possível do lado em que souber
que vale mais a pena ser vivida.

Já deixei de sonhar com andorinhas
e com o deus à venda nos prospectos.
Recuso-me a entrar em capelinhas
pois faço à transparência os meus projectos.

Sei bem que os incapazes me detestam
e nem os preguiçosos aguentam
comigo a funcionar a todo o gás.

Contudo, cada um vale o que vale.
Porquê ambicionar ser imortal
se nunca saberei se fui capaz?


Joaquim Pessoa
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 23 de julho de 2013

Amor é

combinar irmos ler juntos para a esplanada.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

E se nos deixamos morrer?

A Biblioteca é um lugar muito bom para estar no Verão, na verdade, em qualquer altura do ano.
Adoro a Biblioteca da minha cidade. É um espaço industrial recuperado, abre para um jardim que caminha para uma central eléctrica e um pombal, tudo bordejado pelos rios que se unem "até ao fim do mundo" ali mesmo. É assim um espaço muito bom em características ambientais e intelectuais, o que eu acho que também contribui para um bom ambiente, sempre.
Hoje o dia foi passado lá. A pesquisar jornais antigos. Entre desgraças e festas, pois assim o exige as características da instituição que investigo, sempre brilhante em festas, sempre em entrega abnegada nas desgraças de cada um e de todos.
A pesquisa é um vício. É preciso uma disciplina férrea para não dispersar por pelo menos mais dez linhas de pesquisa igualmente aliciantes.
O caderno de pesquisa  - do qual não prescindo apesar do prático computador em formato muito razoável - vai criando umas páginas marginais que talvez um dia sejam úteis noutros contextos.
A semelhança e atualidade de certos momentos por vezes irrita: «Mas afinal não aprendemos nada?»
A\ calma e a ordem certificada com o selo «Este jornal foi visado pela censura»  assusta. Leio o jornal mais baixinho a partir dos anos 30 para ver se a realidade não o ouve, não me ouve, não ouve o meu medo de leitura transversal de tudo isto...
De repente numa notícia de primeira página: «Preso o líder dos comunistas e apreendida documentação». Qualquer coisa assim, a negro, em destaque. Primeiro a estupefacção: «Falavam em comunistas?», depois a compreensão: «Claro, para anunciar o seu fim. Uma vitória do regime. Uma limpeza bem sucedida.»
Comecei a ler. Era uma notícia de 1949, creio (não tirei apontamentos), anunciava a prisão de Álvaro Barreirinhas Cunhal e outro chefe de uma organização a que chamavam - nas palavras do articulista - Partido Comunista Português.
Apossou-se de mim uma comoção ainda não muito explicável, mesmo agora passadas horas sobre o sucedido. Sei agora que sustive a respiração e fiquei assustada com o ritmo do meu coração. Li devagar a notícia. Senti-me tão devedora daqueles homens que combateram o regime! Vem-me agora à lembrança a imagem - tão forte! - do meu professor de museologia sentado em silêncio no Memorial da Resistência, em São Paulo, numa cela vazia adornada com um cravo vermelho sobre o qual incidia uma luz. Apeteceu-me fotografá-lo mas fui incapaz de profanar aquele momento, de lhe roubar a alma daquele instante. Também ele tinha sido preso político. Aquele cravo não estava ali pela nossa história, pode  ouvir-se pela voz de um dos protagonistas a história que ele evoca, mas todos nós, portugueses, ficámos profundamente impressionados pela luz daquele cravo «grito vermelho numa escuridão qualquer».
O meu professor já morreu. Álvaro Cunhal já morreu. E se os deixamos morrer todos? E se nos deixamos morrer todos?
Chegada a casa, abro o Facebook e vejo na página da Alice Vieira - graciosamente viva - este video invulgar:

Haja esperança: já nos salvámos uma vez!

sábado, 20 de julho de 2013

Sei de uma camponesa

Sei de uma camponesa
Sem campo sem quintal
Que canta debruçada
Ao sol da seara
O trigo na cara
De suor tão debulhada
Sei de uma camponesa
Que dança à noite na eira
Perfumada de avenca e feno
Enfeitada de tomilho
E canta com a expressão
De quem vai ter um filho
Mesmo pelo coração
Sei de uma camponesa
Que nunca enche esta cidade
Nunca se senta à minha mesa
Nunca me leva à sua herdade
Para ouvir um trocadilho
Para tornar realidade
Um sonho que perfilho

Rui Veloso/Carlos Tê

terça-feira, 16 de julho de 2013

Ainda temos trovadores!

por vezes crio um deserto só para mim
e sinto-te silêncio esquecido nos meus lábios
por não querer recordar a linguagem do teu corpo
esquecido dentro do meu. deserto só para mim

e sinto-te silêncio esquecido nos meus lábios
por não querer recordar a linguagem do teu corpo
esquecido dentro do meu.


Paulo Eduardo Campos

domingo, 14 de julho de 2013

E se...

E se os tempos existissem todos em faixas contíguas da realidade?
E se fosse possível viajar no tempo "para o lado", em vez de "para trás e para a frente"?
E se pudéssemos circular entre tempos?
Hoje, domingo, eu ouviria algo assim: "Querida: hoje vou fazer jogging à Grécia Antiga e depois do almoço vou ver se percebo como é que os egípcios construíram mesmo as pirâmides. Queres vir?"

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Matinal

Atravessando cedo a principal praça da cidade ouço a conversa entre duas empregadas de um café que organizavam a esplanada:
- Olha para a fila do Correio!
- Deus seja louvado!
Olhei para a longa fila de gente à porta dos Correios, esperando pela abertura do serviço, mas não consegui perceber porque é que Deus deveria ser particularmente louvado por uma longa fila de pessoas que queria receber a pensão ou enviar cartas.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Epígrafe

"Um barco sem velas
E sem rumo
Singrando um mar de fumo,
Mas descobrindo estrelas...

Nisto me resumo"


Cristovam Pavia

Partículas de Felicidade

Roupa engomada, toda lavada, cozinha arrumada, casa a cheirar a limpo.
E pensar-se.ia: a moça é uma excelente dona de casa e está a aproveitar o Verão para se exceder...
Ah...não. É mesmo o único dia na semana em que o trabalho de outra pessoa me faz agradecer que a minha prece de adolescente tenha sido atendida.
«Meu Deus dai-me um emprego cujo ordenado me permita ter empregada doméstica».
A minha mãe dizia que era uma prece de calona, mas cada um pede para si próprio.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Embaladinho

"Olha a triste viuvinha
que anda na roda a chorar
anda a ver se encontra noivo
para com ela casar"

quarta-feira, 3 de julho de 2013

segunda-feira, 1 de julho de 2013

'Tá tudo de olho na gente!

"Este já está liquidado,
o tiro foi bem na testa.
Não comerá mais crianças
no caminho da floresta."