quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Exterior Meu

 Nasci num terceiro andar no meio de uma grande cidade (na realidade, à época, uma mega-vila, que pouco tempo depois se transformou em cidade) e o andar que habitávamos tinha uma varanda, comprida e estreitinha, toda ao longo do espaço coberto que nos pertencia. Desde cedo convivi com a varanda como espaço exterior. Primeiro só podia frequentar esse espaço com supervisão e acompanhamento, depois podia usufruir dele, o que fiz e muito, de dia e de noite, recordando aí belas tardes de sol, ou de refrescante sombra no final do dia, noites quentes e observações inenarráveis de luar.

Na casa da minha avó - que habitei durante vários anos na adolescência - havia um quintal. A casa era um rés do chão no centro da cidade, com duas entradas: a principal e a das traseiras, pelo quintal. Três degraus separavam a porta do acesso pleno ao quintal, onde a minha avó chegou a cultivar couves e jarros. Muito brinquei nesse quintal! Aí vivi alegrias e tristezas (enterrámos lá uma vez um pardal que morreu pequenino), aí partilhei risos e arrufos com a vizinha do lado (outro prédio, quintal contíguo) que tinha exatamente a mesma idade que eu, nascidas no mesmo dia. Esse quintal tinha um poço, fresquinho de água, que uma vez serviu para fornecer aos leões do circo que estava acampado atrás do prédio, numa época em que a água faltou nas torneiras. E que orgulho da minha avó, que cedeu gratuitamente a água, mesmo quando o tratador queria pagar por ela!

Vivi brevemente num apartamento sem varanda (um andar partilhado com vários outros trabalhadores aí colocados por um ano), no ano seguinte num pequenino apartamento que abria para um pátio. Só chão de pedra mármore, sem terra nem plantas, o lugar onde estendia a roupa, mas que achava demasiado exposto para apanhar sol: a rua era mesmo ali e quase não havia muro. A esse espaço nunca chamei quintal, mas sim pátio, talvez por não ter natureza ou por ser noutra província e a designação mais comum ser pátio. (Achava eu que se escrevia com 'e', páteo, mas o corrector emendou e o dicionário confirmou: pátio. Clara constatação de que é uma palavra que digo, mas não escrevo).

Mais uma habitação partilhada com outros que tinha um quintal para trás. Mais uma vez quintal: terra, plantas e animais também, desta vez.

A primeira casa mesmo minha - comprada com o meu dinheiro e a ajuda do banco - tem um enorme terraço. Um exagero de espaço ao ar livre, que corresponde exactamente à área coberta do apartamento e serve de telhado ao apartamento do piso de baixo. E por isso um dia todas as necessárias obras de substituição do piso, com impermeabilização, foram inteiramente pagas pelo condomínio. Isso foi muito contestado na altura e alguns vizinhos ainda alvitraram que, uma vez que aquilo era considerado espaço comum, tencionavam ir lá apanhar uns banhos de sol durante o dia ou beber umas cervejitas ao cair da noite. Atividades que eu fiz muito. Do alto daquele terraço muitas vezes contei estrelas, aliviei o calor do verão ou varri imensa água da chuva para os escoadores que não estavam bem colocados e por isso a água tinha de ser encaminhada.

Devido a ter um tão grande espaço exterior durante tantos anos, quando procurei uma nova casa recusei-me a ficar confinada entre quatro paredes: o que eu iria adquirir tinha de ter algum espaço exterior, meu. A casa tinha de ser composta por espaço interior e exterior. Para eu poder estar na rua, mas ainda dentro do meu espaço.

Assim é! Apartamento com duas varandas, razoáveis, com possibilidade de ter uns vasos com plantas, o caixote dos gatos, os estendais e uma mesinha para tomar as refeições e ler um livro em dias bons.

Mas esta nova casa tem um outro espaço exterior com um nome novo: um logradouro. Um espaço comum a todos os moradores do condomínio, onde há plantas, animais e estacionamento. Um espaço que hoje - hoje mesmo - ganhou um novo significado quando eu, confinada por decreto da pandemia, logrei aperceber-me de pormenores extraordinários da natureza aí presente, que também me pertence e que me serve de bálsamo nesta obrigação de stay at home.

Desci a escada e observei as plantas, dei uns passos no exterior sem o perigo ou o constrangimento de me cruzar com alguém em tempos de isolamento; observei folhas e botões, "olhinhos" e flores e voltei para casa convencida que a Primavera está a chegar, que já é possível sentir isso no meu logradouro.

E concluí que a possibilidade de ter um espaço exterior que complementa o interior de um apartamento é um privilégio, ainda mais apreciado nos tempos que vivemos: seria tão mais difícil não poder ver e usufruir de um bocadinho de ar, elevar os braços e rodopiar num espaço exterior legalmente meu, sem receio de que me denunciem, de que me apontem como infringindo algo. Tão bom poder ser livre, afinal, ainda, no interior e no exterior. 

E com esta narrativa, que percorre os espaços que habitei, compreendo a importância de ter sempre (sempre!) um espaço exterior que me pertence, me completa, me liberta, mesmo em prisão domiciliária.