terça-feira, 19 de novembro de 2013

Presente

Queria neste poema a cor dos teus olhos
e queria em cada verso o som da tua voz:
depois, queria que o poema tivesse a forma
do teu corpo, e que ao contar cada sílaba
os meus dedos encontrassem os teus,
fazendo a soma que acaba no amor.

Queria juntar as palavras como os corpos
se juntam, e obedecer à única sintaxe
que dá um sentido à vida; depois,
repetiria todas as palavras que juntei
até perderem o sentido, nesse confuso
murmúrio em que termina o amor.

E queria que a cor dos teus olhos e o som
da tua voz saíssem dos meus versos,
dando-me a forma do teu corpo; depois,
dir-te-ia que já não é preciso contar
as sílabas, nem repetir as palavras do poema,
para saber o que significa o amor.

Então, dar-te-ia o poema de onde saíste,
como a caixa vazia da memória, e levar-te-ia
pela mão, contando os passos do amor.


Nuno Júdice

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O Egito...Ui! Que falta do 'p'...

- Mas o que é ser privilegiado? O que é um privilégio?
- Uma coisa especial. Por exemplo, não pagar impostos.
- Muito bem. É um belo privilégio. Muita gente, hoje, adoraria.
- Mas, afinal...quem pagava os impostos eram os pobres?
- Então? O que são os impostos? Taxas sobre os rendimentos. Tal como hoje: O IRS, o IRC, quer dizer?...
Várias hipóteses no ar? "Atiram-se" palavras começadas pelas letras 'I', 'R'...
- Professora! Naquela altura já recebiam o ordenado em líquidos?
- Em líquidos? - pequena pausa. Tento - Em géneros, será?
- Não, em líquidos. Como agora. Os líquidos...
- Ah! - quase não conseguia conter o riso - Os rendimentos líquidos. Não são em líquidos.
E pensava como, ao falarmos depressa, achamos que todos dominamos os mesmos códigos.
E lá expliquei os rendimentos ilíquidos (que não sólidos) e os rendimentos líquidos (depois dos impostos) que cada vez mais parecem gasosos.
Fico tão feliz quando eles perguntam. E a fé que eles têm em que eu saberei explicar! Adoro!

sábado, 16 de novembro de 2013

Paredes

"Naquele dia instalaram um estendal e um candeeiro. A casa estava quase pronta.
Ela tinha um certo medo de se mudar. Sentia que a mudança de casa era mais do que isso: era o início de uma nova etapa, era o princípio de algo e ela não sabia bem o quê. Temia...mas ao mesmo tempo ansiava pela tal mudança que pressentia. Era um sentimento incómodo, mas ao mesmo tempo era uma desinquietação que a estimulava, a fazia sentir viva...quase diria mais jovem.
O novo colega de trabalho tinha-se disponibilizado desde o início para a ajudar. Deslocado de casa e da família tinha uma disponibilidade encantadora. Envolvia-a em atenções e tinha um sentido prático que ia conseguindo tornar a casa nova dela cada vez mais num lar. E ela fazia de conta que era só gratidão, queria que fosse só gratidão. Sabia que ele tinha uma família, que o esperava aos fins de semana, dos quais gostava, mas os sentimentos cresciam dentro dela como ervas daninhas. Por fim deixara de os combater. Aceitava-os como algo inevitável. Aproveitava sôfrega as ajudas na casa nova. Sabia que assim que se mudasse terminaria o sentido para aqueles encontros, convívios, conversas...
- Não tens um escadote? - perguntou ele
- Ainda não. - respondeu ela com aquele ar desolado e indefeso que adotava perto dele.- Sobraram parafusos das obras. se calhar vou comprar uma daquelas caixinhas com divisórias para os guardar. Podem vir a dar jeito.
- Já demonstras mais preocupação com esta casa do que com a outra!
- Espero ser melhor dona de casa agora. Espero gostar mais de estar em casa. Espero que esta casa me inspire projetos de escrita. Quero ser escritora aqui!
- Sê-lo-ás, vais ver.
Olharam-se longamente. 
Ela fitou as paredes e soube que não tinha de lhes confessar nada."

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

AS FLORES

Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura.


Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 3 de novembro de 2013

AUSÊNCIA

Por muito tempo achei que a ausência é falta. 
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus
[braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade

TERNURA 

Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada

Olho a roupa no chão que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio…

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!


David Mourão Ferreira

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A Morte

É hora de pensar nos que partiram.
Cada vez mais penso neles. Burilando o que já pensei das suas vidas, vou descobrindo novos sentidos para as coisas, vou perdoando o que me tem magoado, vou relativizando os choques havidos, vou tentando compreender... É bem verdade que a História precisa de distância para se despir da emoção do momento e ser então História, não isenta (nunca o será) mas explicativa, exemplificativa, educativa.
Essa questão das «lições da História» também me merecerá um dia um texto, mas hoje o tema era a morte. A nossa relação com a morte, enquanto indivíduos e enquanto sociedade.
Sempre achei que quando chegamos à discussão da nossa relação com a morte é que pomos a nossa fé à prova. Tudo corre bem (para os otimistas, claro) desde que a vida vá fluindo à nossa volta, mas quando nos deparamos com a inevitabilidade da morte colocam-se as questões fundamentais da Fé. Há quem diga que é aí que ela é verdadeiramente posta à prova.
É hora de lembrar os nossos mortos. Parece que partiram todos cedo demais. E quanto mais nos vamos aproximando «da idade» (que lindo! parece até que houve um tempo sem idade...) até os que partem velhos nos fazem falta.
Frequentemente os meus alunos perguntam-me (face a todo o meu entusiasmo pelo progresso humano) se chegaremos à imortalidade. Não sei.
E queremos? Eu acho que queria.
Dizem-me que um dia estaremos cansados de viver. Se assim for...Mas não me parece possível...
O que é certo é que a morte de uma criança ou de um jovem chega sempre - e disso ninguém duvida - cedo demais. E o que dizer aos pais que geraram um filho com expectativas de o ver crescer? Como aceitar uma amputação dessas? Um casal que perde um filho deve sentir-se amputado, incompleto...
É a vontade de Deus...Será?
Chorar os mortos no dia de finados poderá aliviar algumas dores, mas a morte de um filho, um irmão, um colega, um amigo na infância ou na adolescência, por mais que sinta que vou crescendo em relação a estas questões\ da morte, creio ainda que é inaceitável!
O pior é que é cada vez mais inaceitável: mas então agora não curam quase tudo? Porque ficaram aqueles na réstia do «quase»? Porque não se consegue eliminar o sofrimento? Por vezes - tenho tanto medo de estar a ser injusta - parece até que aumentamos o sofrimento, esticando, prolongando, adiando o inevitável. Porque afinal a esperança é sempre a última a morrer.
Tempos houve em que a morte era tão frequente que não se questionava. Rezava-se apenas para ir escapando daquele jogo entre a vida e a morte que parecia não ter regras. Defendiam-se com as superstições: não dormir esticado porque a morte podia achar que estávamos prontos, evitar certas práticas ou praticar rituais para afastar o que é mau - e que o Diabo fosse cego, surdo, mudo, coxo e todos os outros problemas que o afastassem de chegar depressa junto de nós.
A mortalidade infantil era muito elevada. A morte das crianças era comum.
Seria certamente uma fatalidade, mas não era invulgar, não era esperada, mas era temida, era uma possibilidade sempre presente.
A morte estava muito mais presente na vida.
Depois a morte foi-se afastando da vida. Os idosos foram para lares, os doentes para hospitais. Longe da vista...longe do quotidiano, pelo menos.
Começou a proteger-se as crianças do contacto com a morte, do sofrimento que ela causa, do seu ser definitivo. Inventam-se desculpas, evasivas...«reencontrar-nos-emos mais tarde», «foi fazer uma viagem e depois havemos de nos reunir»...«adormeceu para sempre», «o sono eterno» e outros eufemismos com que vamos mascarando a brutalidade da realidade, a ineviatabilidade, a impotência de não conseguir explicar e aceitar.
- Cada vez mais há mortes assim...
- Olha que eu acho que cada vez há menos e por isso nos chocam tanto...
Será uma conversa que nunca chegará a conclusão nenhuma. O que é certo é que cada vez estamos mais impreparados para aceitar a injustiça de uma morte num mundo onde tudo parece resolver-se...menos a morte.
Todos temos alguém para chorar nestes dias. E, em certos casos, parece que todas as lágrimas são insuficientes para expressar a nossa incompreensão, a nossa solidão, o nosso desamparo perante a Morte.