quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Composição

 A minha casa

A minha casa fica num prédio muito bonito. Nada lhe falta: tem plantas, animais e pessoas. 

Vejo muitos animais todos os dias: os pombos, as garças e os patos que estão no rio. As andorinhas e os pardalitos, que vêm até à minha varanda. Não vejo os peixes do rio, mas sei que lá estão. E ratos também. Vejo muitos cães a ser passeados pelos donos no jardim público para o qual dá a minha janela. No pátio/jardim do meu prédio há vários gatos pretos (já houve outros de outras cores) que eu alimento. Já conhecem o meu carro e, à sua maneira selvagem e defensiva, vão mostrando que gostam de mim e que confiam em mim. Mesmo nos dias em que nada tenho que fazer fora de casa desço a escada para alimentar os meus pretitos.

Em vários dos apartamentos há pessoas pequeninas, o que me dá muita alegria. Gosto de os ver crescer. Foi com eles que compreendi que já não sou muito nova, porque os pais dizem "Cumprimenta a senhora" e os garotos olham-me como se eu tivesse a idade das avós. E tenho mesmo. Só não tinha compreendido porque não sou avó.

Hoje é o primeiro dia de escola.

Depois de todo o contexto de termos estado fechados, confinados, isolados, assustados e amordaçados, vamos voltar a levar as crianças à escola. Com novos cuidados, mas com confiança e entusiasmo.

O Sr. Director enviou artigos, poemas e música para nos fazer acreditar que vai correr tudo bem. Coisas que ele aprendeu lá na escola de Homens Importantes que frequentou e que visam fazer o mesmo que o cajado do analfabeto pastor faz lá nas planícies por esse país fora: conduz o rebanho e espera que não se perca nenhum.

Li e vi tudo. Compreendi o intuito e até apreciei a selecção, mas...

Hoje de manhã acordei com o riso da mais nova do rés-do-chão, que devia estar a dar com a mãe em doida, porque nunca mais entrava no carro. E ria, ria, com aquele encanto que nos faz sorrir também e ficar (pelo menos mentalmente) com as covinhas nas bochechas que marcam a candura da primeira infância. Eu ainda estava na cama e não a estava a ver, mas podia imaginar os seus olhos fabulosamente azuis, com uma expressão matreira, a prolongar mais um bocadinho o tempo de convivência com a mãe ao ar livre, no ar fresco com que amanhece o nosso jardim junto ao rio.

Quando já estava sentada na varanda a tomar o pequeno almoço, apareceram a mãe e a filha do andar superior. Ela vai para a Escola. A Escola com E grande, a de aprender a ler e a escrever. E a mãe quis registar para a posteridade a filha no seu primeiro dia de escola. Ali, no fresco da manhã do nosso jardim junto ao rio. "Pega agora na mochila!" Ah! É tão pesada  que a garota quase caiu para dentro das longas folhas verdes das plantas resistentes que sobram dos canteiros. Mas o sorriso dela era à prova de tudo: de peso de mochila, de fresco da manhã, da insistência da mãe em "mais uma...agora assim..."

Saí do meu posto de vigia e desejei-lhe um grande primeiro dia de escola. "Também eu ainda tenho as fotos do meu primeiro dia!"

Elas acenaram alegremente, e lá partiram, entre risos e pressas que os horários são para cumprir desde o primeiro dia.

E eu vim para aqui, recordar o meu primeiro dia de escola. Foi em 7 de Outubro de de 1972. O cabelo apanhado em rabo de cavalo (longuíssimo) dava-me o ar arrumado e competente de quem vai começar a sua vida profissional. A bata branca era o uniforme, que o país não tolerava individualismos. Bordado ao lado direito da bata estava "Escola Feminina nº4". Na mão e a pasta que a tia Jesus tinha trazido de Espanha alguns anos antes e que estava guardada para a ocasião. Lá dentro a lousa.

O nosso apartamento...andar, na altura ninguém chamava apartamento, era um enorme andar, pendurado no cimo de um prédio em plena cidade - ah, não! Ainda era vila. Uma vila monstruosa, cheia de gente que circulava apressada. Dizia eu, o nosso andar não tinha jardim. Por isso fomos mais cedo para registar o momento no jardim público. "Com o sol por detrás...para realçar o louro do cabelo", parece que estou a ouvir a minha mãe. Não. Não me lembro das palavras exactas, mas as fotos estão lá, com a luz cuidadosamente orientada para realçar o louro do meu cabelo que ela tanto prezava. 

Entrei para a Escola em 1972 e nunca mais saí, costumo eu dizer por graça aos alunos. Mas agora já não é verdade. Saí o ano passado, para saber que é possível. A vida leva-nos às vezes numa carreira desenfreada que nos faz crer que não dominamos nada. Que "a vida é assim" e que "tem de ser". O ano passado resolvi parar. Só porque sim. Só porque posso. E, se podia, também era um desperdício não o fazer. A vida provou-me que não vale a pena planear muita coisa, que na realidade todos os planos podem ser mudados. Até por coisas tão imponderáveis, como, de repente, o mundo todo ficar doente e não podermos sair de casa.

E foi aí que eu apreciei ainda mais a minha casa. Que tem plantas, animais e pessoas. Que tem pessoas pequeninas que me tratam como avó e me fazem perceber que envelheci. Que me dão muito carinho e que me devolvem a fé no mundo todos os dias.

E hoje é o primeiro dia de escola!