sábado, 31 de dezembro de 2016

Pensamento para encerrar o ano de 2016

Se não fosse professora de História queria ser fada madrinha

Em busca de palavras

Li o livro O Princepezinho já muito tarde e a conselho de alguém de quem não gostava muito. Talvez por isso a minha relação com o livro não foi boa. Estanho assim que tenha começado a ler este texto da Revista Pazes, que consulto frequentemente online. Mas o que é certo é que, mesmo sem saber porquê, o fiz e adorei o balanço do texto, a relação com a etimologia e o significado das palavras e resolvi, por isso, partilhá-lo neste espaço que tem andado tão abandonado, mas que creio que continua a fazer sentido para mim.

"Sei que é um tanto clichê, mas O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, foi, sem dúvidas, um livro que marcou profundamente minha formação humanística. Lembro-me de, com mais ou menos 8 anos de idade, ouvir repetidamente uma fita cassete com a história que tanto me envolvia. Mais ou menos nessa idade, ainda com algumas dificuldades no vocabulário, li o livro.
Vale mencionar que existiam muitas conexões afetivas particulares dentro de meu âmbito familiar ali. Havia um exemplar do livro em minha casa que foi presente de meu pai para minha mãe, não sei se do casamento deles, ou de um de seus aniversários. Na dedicatória, na caligrafia de meu pai, seguida da data de seu casamento, havia apenas a citação do que, provavelmente, é a frase mais conhecida do livro:
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
Cresci tendo essa passagem – entre outras – como importante elemento formador de caráter e, inclusive, de aspirações. Portei esse “mandamento” comigo por muitos anos, tanto para relações de amizade quanto para expectativas de relações amorosas, na mais plena e grata crença naquele senso de comprometimento amoroso com o outro.
Bem verdade que, aos 8 anos de idade – e por muito tempo – a definição do verbo “cativar” apresentada pela Raposa como algo “muito esquecido pelos homens”, que significaria “criar laços”, sempre me foi suficiente. Não me lembro se busquei o verbete no dicionário naquela época.
Aliás, o que é um dicionário, afinal?! Formalismo, frieza, objeto que me parecia, por vezes, estúpido, quando, depois de uma busca árdua com minhas mãos de criança decorando a ordem do alfabeto, ao finalmente encontrar o verbete que desejava naquele exemplar pesado do Aurélio – maior do que a lista telefônica da cidade onde eu morava – a resposta que eu ansiava se resumia a: “ato ou efeito de…” e um substantivo cujo significado eu permanecia sem conhecer.
Definitivamente, a definição da Raposa era mais interessante e me servia muito mais. E, por muito tempo, foi o que almejei em minha vida: criar laços, tornar-me responsável por outros, numa relação recíproca e especial, carregada de afeto. Aliás, o termo “responsabilidade” foi bem marcado e recorrente em minha formação, mas isso é conversa para minha analista.
Alguns anos se passaram e os “mandamentos” do Pequeno Príncipe se converteram em espécie de lembranças doces, afetuosas, de uma inocência perdida, embora o verbo cativar não tivesse perdido, para mim, a sua magia. Aliás, um dos adjetivos que me soava mais fantásticos e que eu mais desejava ouvir de alguém era “cativante”.
Sempre que eu elogiava alguém com essa palavra, estava carregado de toda uma história afetiva minha que o sujeito elogiado jamais poderia conceber. Soava, para mim, como o elogio supremo: algo mais refinado e significativo do que adjetivos como “apaixonante”, “fascinante”. Cativante implicava laços, relação – ou desejo, intenção – de continuidade… eternidade.
Por outro lado, conheci pessoas que, onde eu via beleza, viam, na “eterna responsabilidade”, um fardo demasiado e um tanto quanto injusto. Compreendo bem seu argumento: se, frequentemente, o adjetivo “cativante” é usado como sinônimo de “sedutor” e “apaixonante”, tornar-se eternamente responsável por alguém que se apaixonou por você – independente de suas intenções – muitas vezes, soa como carregar um peso que não é seu.
Isso também ganha um peso especial em relacionamentos que se encerram – na maioria das vezes, sem consenso – no que a citação meiga e “romântica” das primeiras semanas é convertida em cobrança: “Você me cativa e depois me abandona? Cadê a sua responsabilidade?” Se houvesse um manual de chantagem emocional, penso que o discurso da Raposa seria a sua principal referência.
Há alguns anos atrás, comecei a estudar a língua francesa. Tendo adquirido certa fluência, busquei alguns textos que apreciava em suas versões originais. Ao ler então os capítulos referentes ao encontro do Pequeno Príncipe com a Raposa, deparei-me com um verbo novo para mim: apprivoiser.
Eu conhecia o capítulo que estava lendo e sabia que o verbo havia sido traduzido como “cativar”. Mas achei curiosa a grande diferença do termo, uma vez que o francês e o português partilham de uma raiz latina e que os cognatos são muito comuns.
Busquei então o termo em dicionários e me deparei com significados como “domesticar”, “tornar um animal menos selvagem”, “domar”. A tradução para o português está bem adequada: “tornar cativo, reduzir a cativeiro”.
Lembro-me que, à época dessa descoberta, fiquei surpreso e um pouco decepcionado, mas depois deixei de lado. Muitas outras leituras e identificações vieram ao longo da minha vida e não dei tanta importância. Confesso não saber por que razão isso me ocorreu nos últimos dias. Penso que tenha relação com o amadurecimento de ideias que venho cultivando nos últimos anos sobre amor e liberdade.
Talvez por ter construído uma identificação forte com ideais de liberdade, inclusive na esfera amorosa, tenha me deparado com uma contradição constitutiva de minha identidade. A ideia de cativeiro, domesticação, causa-me hoje uma repulsa insuportável. De modo que reconhecer a contradição formadora não é exatamente confortável.
Contudo, vendo tanto as críticas ao discurso da responsabilidade quanto analisando o discurso da Raposa isolando a variável romântica, de um ponto de vista mais literal da relação entre humanos e animais, concordo em um aspecto: Tu te tornas, sim, eternamente responsável pela vida de um animal selvagem que, por efeito de força (tua), tu privaste de liberdade e autonomia.
Se tu privas um ser vivo de cuidar de sua sobrevivência para cercá-lo em um quintal e deixar sua alimentação, higiene, saúde e existência completamente à tua mercê, tu te tornas, sim, eternamente responsável por aquilo que cativas. E seria, no mínimo, um crime, abdicar desta responsabilidade.
Direciono então a questão para outro foco que, em função do sentido “fofo” que é atribuído ao termo “cativar”, muitos críticos não consideram. O problema não é tornar-se eternamente responsável, pois precede a responsabilidade: o problema é domesticar, aprisionar, cercear. Ou mesmo, desejar, almejar isso e investir nesse projeto.
Há muitos aspectos simbólicos interessantes de se explorar na figura da raposa em Exupéry se nos ativermos a essa tradução menos romântica de apprivoiser. Aliás, depois que eu me dei conta desse verbete, confesso que o livro fez muito mais sentido para mim.
A raposa, na literatura ocidental, em geral é símbolo de esperteza, malícia… na maioria das vezes, personagem vilanesco que ataca galinheiros, que engana… É também um animal da caça esportiva, ou seja: mata-se raposas por diversão.
Não somente é um animal selvagem, como é um animal cuja simbologia frequentemente remete à esperteza em sua pior interpretação moral possível. De qualquer forma, apesar de sua semelhança com os caninos domésticos, esse animal é visto antes como uma ameaça.
Não há interesse em domesticar uma raposa. Ao contrário, há mérito, na caçada, em matá-la, em superar sua esperteza. A raposa do Pequeno Príncipe é marginal, subversiva, excluída. Nessa situação, ela vê cães de guarda e de caça sendo afagados, alimentados, criados numa relação de laços – ou amarras? – com seus proprietários humanos.
Ser cativada por um humano é um sonho impossível para a raposa. A possibilidade só vai aparecer com alguém que, claramente, como ela mesma observa, não é “daqui”. E, ainda por cima, uma criança, símbolo máximo de inocência e ingenuidade na cultura ocidental moderna. A raposa só pode ser cativada por alguém que é completamente alienado, de outro planeta, alheio à dinâmica das relações humanas e terrestres.
Da perspectiva de um animal que é sistematicamente perseguido, é mais do que compreensível que ele anseie o cativeiro ao ver os afagos e recompensas que os submissos cães que a caçam recebem. Isso além da garantia de segurança: ao invés de ter os homens tentando matá-la, ela os teria ocupados precisamente em mantê-la viva. É realmente uma prisão atraente. Mas para qual finalidade?
É interessante lembrar que a raposa não fala ao Pequeno Príncipe do cativar como uma relação igualitária. Ela quase implora para que ele a cative. Interessante observar também que ela recusa brincar com ele no primeiro encontro porque ainda não foi cativada. Brincar com crianças é coisa de animal domesticado. E poder brincar é um privilégio.
De todo modo, algo que compreendi apenas tardiamente, é que se trata de uma relação romanceada de submissão. E a submissão não está na responsabilidade, pois o responsável é precisamente aquele que domina, que assujeita, que domestica. Configura-se, claramente, uma sufocante assimetria que, inevitavelmente, produz a dependência e implode a reciprocidade.
Entretanto, pela cultura na qual somos formados, romanceamos nossas prisões, enchemo-las de adornos, flores e citações descontextualizadas de Clarice Lispector. Celebramos a benesse de ser antes um animal domesticado que perseguido e execrado, enquanto muitos, em função de sua raça, sexualidade e/ou aparência, são apenas “raposas”. Aliviados, abrimos mão do penoso encargo de nossa liberdade.
Guardo comigo o afeto e as memórias doces do que foi e é O Pequeno Príncipe para mim. Aliás, sou profundamente grato a elas pois, se não existissem, eu jamais poderia elaborar tal reflexão.
De todo modo, não nego a responsabilidade daquele que cativa, mas proponho algo que talvez até demande uma responsabilidade maior, quiçá, transcendental: é tempo de abandonar todas as pretensões de aprisionamento do outro; destruir qualquer intenção de cativeiro e, quem sabe um dia, amar sem construir cercas e sem adestrar o outro para o nosso afago como recompensa."

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Invernia

O vermelho de uma sardinheira que desponta na varanda é a única nota de alegria na tarde cinzenta que enche as vidraças da janela.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A Memória habita a Cidade

"(...) Uma descrição de Zaira tal como é hoje deveria conter todo o passado de Zaira. Mas a cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das uas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos para-raios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes."

As Cidades e a Memória 3. in Calvino, Italo, As Cidades Invisíveis, Lisboa, D. Quixote, 2016 (3ªedição), pp. 18-19

domingo, 2 de outubro de 2016

Sobre o Renascimento

"O estudo da história ensinou a importância da acção do indivíduo no mundo, para assegurar a fama individual, mas também encorajou as pessoas letradas para servirem o bem comum, ao participarem na vida cívica."

A Nova História de Arte de Janson, p. 518

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Livros

Estou há quase três anos nesta nova casa e ainda não arrumei a minha biblioteca. Que vergonha!
Existe um quarto livre na casa e os livros têm sido derramados pelo chão em cada demanda de um título nos imensos caixotes que os albergavam.
É que este arrumar de biblioteca carece de um tempo e espírito científico que não me têm apetecido.
Eu trouxe da outra casa uma estante (linda!) que eu mandei fazer para dividir a sala em dois. Os quadrados para arrumação de livros (num total de 32) abriam para ambos os lados da sala assim dividida: num lado, sala de estar visível logo para quem entrava (e os quadrados tinham as clássicas enciclopédias, histórias de Portugal e literatura encadernada a azul e vermelho), outro lado para um escritório, em que os quadrados exibiam pastas e dossiers, assim como manuais escolares e material de colóquios e seminários encadernados com argolas brancas.
Nesta casa a sala é bastante maior. A estante foi encostada à parede. Os quadrados da parte de trás, agora cegos, não conseguiam resistir às brincadeiras das gatas e aceitavam guardar os desperdícios das suas arremetidas: livros e cadernos que se iam acumulando entre a estante e a parede e que eram quase irrecuperáveis.
Decidi então mandar fechar a parte de trás da estante, ficando agora com o mesmo espaço para guardar livros, sendo que havia uma fila atrás - invisível - e a fila apresentável de livros, normalmente, grandes.
Como iria eu saber o que estava na fila de trás?
Só registando todos os livros seria possível não os perder!
Nasceu assim este projeto/necessidade de registar todo o meu espólio bibliográfico
Delineado o ficheiro excel há muitos meses, só hoje começou a ser preenchido.
De uma tarefa metódica e maçadora este registo de livros revelou-se uma viagem a muitos locais e afetos: as livrarias e ocasiões em que certos livros foram comprados; as viagens em que foram comprados, as dedicatórias que emergem das primeiras páginas, as fotografias e postais que se acolhiam em muitas páginas.
Arrumar estes livros (ainda vou só no princípio) revelou-se uma viagem que já me arrancou lágrimas e sorrisos. E que me dá a certeza de ter, afinal, uma vida bem vivida e bem acompanhada.
Se eu suspeitava que era possível sentir isto numa tarefa de registo de dados em excel!

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Talvez hoje seja um dia tão bom como outro qualquer para voltar aqui...
Talvez nenhum dia seja como outro qualquer, uma vez que não existem dois dias iguais.
Eu já pensava em voltar aqui...
Talvez até fosse hoje, ou talvez não...
O que é certo é que o dia de hoje foi completamente inesperado, com visitas e falas do estrangeiro, com o avivar de projetos que sempre acontece quando estou perto de gente com iniciativa e generosidade.
O sol hoje esteve mais quente, a brisa soprava boas novas e o dia termina tarde, com sabor a férias.
Hoje foi um dia de muitas palavras, algumas para guardar.
Hoje foi dia de pensar em palavras: como se diz? espera, primeiro em alemão...já te digo o que quero dizer...
Falámos em quatro línguas: inglês, alemão, francês e português.
E falámos que nos fartámos.
A nossa sede de conversa resvalava para a língua natal, que é mais fácil e mais rápido. Depois pediamos-lhe desculpa a ele. Que não fazia mal, que compreendia...Mas foi buscar uma folha de papel e uma caneta e conseguiu centrar a conversa na estrutura dos sistemas de ensino dos vários países: o seu, de origem, aquele onde vive e leciona e o de Portugal.
Três professores apaixonados por aquilo que fazem a trocar informações (em quatro línguas) sobre os sistemas de ensino e o que é ser professor aí pelo mundo.
Do lanche passou-se ao jantar. História, Identidade, Cidadania, Ensino...De todos estes temas e de como os ensinar fez-se a conversa lesta.
A noite acabou tarde e só por causa da viagem que eles empreendem amanhã, runo à cidade berço da nossa nacionalidade. Ele levará o verde dos nossos campos para o cinzento das suas montanhas de Inverno. E em breve, que o Verão passa num ápice e as nossas salas de aula situam-se a países de diferença.
Foi muito bom o dia de hoje!

domingo, 3 de abril de 2016

"- Como foi a festa, Maria?
- Foi boa. A avó estava muito mocionada.
- Emocionada.
- Foi o que eu disse: mocionada. E cantaram os parabéns E ela chorou quando viu que o bolo era de morangos e chantilly.
- Ah! Que lindo: lembraram-se que era o que ela sempre pedia quando era pequenina.
- Pois, eles contaram isso. E como na altura não podia ser e agora já pode, fizeram um bolo grande cheio de morangos e chantilly.
- Olha foi uma linda lembrança da parte deles. – disse a mãe, com alguma pena de já não pertencer à família. Depois pensou em aproveitar mais uma oportunidade de ensinar coisas novas à filha – E tu percebeste porque é que quando a avó era pequenina não podia ter morangos com chantilly no aniversário?
 - Sim – disse desembraçada a pequena – A avó explicou-me tudo. Era porque, na altura, as árvores só davam chantilly lá para o Verão!"

Voltar

Agirmos por recompensa tem destas coisas. Sabia que um dia, quando terminasse outras lides em que me meti, haveria de voltar aqui. Haveria de voltar às palavras por puro prazer.