sexta-feira, 10 de junho de 2022

O Gato que Salvava Livros: Uma Fábula Moderma

 Foi um presente. Uma ternura de um amigo muito especial, nesta época em que enfrentei as incertezas de uma operação e as limitações de um período pós-operatório.

Confesso que, apesar de muito, muito enternecida, desconfiei do conteúdo.

Mas pequei nele após a difícil leitura de João Tordo e não mais o larguei. É muito bom! Uma escrita  leve, mas que contém mensagens muito boas (e fortes e assertivas, como se diz agora) sobre os tempos que vivemos e a relação da atual sociedade com a leitura.

O que mais me espanta é que na apresentação do livro não há uma única referência ao estilo "fábula", mas eu não tenho a menor dúvida: um gato que fala, que nos apresenta aspetos importantes da nossa vida que nos estão a falhar, que funciona como a consciência social e que se apresenta como "a moral da história"? Então se isto não é uma fábula, o que é?

E pronto: se mais ninguém escreveu, tive de escrever eu. Com muito prazer.

E não resisto a colocar aqui uns pedacinhos...mas é muito pouco, porque a abordagem de cada um dos quatro episódios, no seu todo, é que nos dá a lição que precisamos aprender.

De um japonês para o mundo, de um médico para as letras. Só me falta esclarecer se a Bíblia está lá presente sem estar nomeada. Por favor, se outro leitor me puder esclarecer, eu agradeço.


«- Os livros têm alma - repetiu o gato - Um livros estimado terá sempre alma. Irá em auxílio do seu leitor em tempos de crise.» (p. 124)

«- Penso que o poder dos livros é que ...que eles nos ensinam a preocuparmo-nos com os outros. É um poder que dá coragem às pessoas e que também, por sua vez, as apoia. (...) Empatia: esse é o poder dos livros. (p. 142)

«- Se o achas difícil, é porque contém algo que é novo para ti. Cada livro difícil oferece-nos um desafio novinho em folha." (p.150)


 

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Sobre a arte da escrita - A mulher que correu atrás do vento (João Tordo)

 "(...) e quis saber o que eu ia fazer do resto da minha vida.

Vou escrever um livro, respondi.

Ele riu-se com a sua boca de parvo e perguntou-me sobre o que era. E eu respondi que aquela pergunta era a mais ridícula de todos os tempos, porque os livros não eram sobre nada, nunca ninguém escreveu um livro sobre coisa nenhuma. Os livros eram sobre si mesmos, disse eu, sobre o próprio acto de os escrevermos. (...)" (p.435)


"(...) E, contudo, o que se aprende ao escrever é que tudo é verdadeiro, mesmo quando mentimos. (...)" p. 205)


"Eu acho que os escritores não sabem dar resposta aos seus próprios livros, disse Eduardo. Acho que os escrevem sem saberem o que fazem , criam enormes problemas e, depois, por não os saberem resolver, deixam as pessoas a pensar demasiado, a julgar coisas diferentes e contraditórias, em luta consigo próprias. Pelo menos, comigo, acontece assim. Preciso de compreender, e não sou capaz." (p.358)


Só por sermos humanos já pertencemos à humanidade?

 "(...) como ser-se humano é tão diferente de ser a humanidade, por vezes são coisas opostas, a humanidade salva-nos de sermos humanos, remove os nossos defeitos e os nossos medos, mas é uma ideia grandiosa que não tem cabimento neste mundo." (Tordo, João; A Mulher que Correu atrás do vento, p.322)




sábado, 28 de maio de 2022

Sobre a História

 "(...) A História é uma narrativa montada pela humanidade para fazer sentido do que não tem qualquer sentido.Também o é a nossa história pessoal, assim como a história da nossa árvore genealógica. (...)"

Tordo, João, A Mulher que Correu atrás do Vento, p. 200

E vem-me à memória a genial narrativa de José Eduardo Agualusa, "O Vendedor de Passados". 

Os receios de muitos de nós

 "Mas tu não és a tua mãe.

Estás enganada, riposta Jaime. Nós somos os nossos pais, somos o que há de pior num, e o que há de pior no outro.

E porque não o melhor?

Porque, se a vida fosse assim, já seríamoa perfeitos. A raça humana tem milhões de anos. Não acheas que, se os filhos fossem o melhor dos pais, e os filhos desses filhos também, e assim por diante, a evolução teria ido noutro sentido?"

Tordo, João, A Mulher que Correu atrás do Vento, p. 218


Esta maneira de escrever os diálogos, sem travessões, sem indicação explícita de quem fala...espantou-me conseguir acompanhar tudo. 

domingo, 22 de maio de 2022

Sobre a Mudança...necessária...inescapável... frequentemente ignorada

 "A ideia de que alguém conhece perfeitamente a pessoa com quem vive enferma - que expressão tão forte - de pelo menos dois erros. O primeiro é aquela banalidade, ninguém conhece bem ninguém, mesmo o próprio, sabe Deus... O segundo é, ao longo do tempo todos mudamos alguma coisa e o nosso olhar sobre o outro nem sempre acompanha estas mudanças." José Gameiro, na sua coluna semanal da Revista do Expresso (desta semana) intitulada Diário de um Psiquiatra.

Responsabilidade e Missão

 "(...) Ter uma voz é não virar as costas à mensagem que precisa que alguém a transporte. (...)" Mafalda Ribeiro, na sua página de Facebook, referente a uma conferência no Desafio Jovem de 2019.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

O Não Direito a Ser Criança

 "Nessa altura a culpa era toda dos filhos; se levávamos porrada, era porque não nos sabíamos defender. Se caíamos estatelados com as mãos na merda, era porque não sabíamos voar."

Ribeiro, Fernando, Bairro Sem Saída, p.10

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Pais e Filhos

 Penso muitas vezes como teria sido a minha vida (e a das minhas irmãs) se o nosso pai não tivesse morrido tão cedo, se estivesse vivo quando todas tivéssemos chegado à idade adulta e se nessa altura ele ainda se dedicasse ao comércio, provavelmente com mais do que a primeira loja com que começou.

Na realidade eu tive liberdade para escolher o meu caminho.

De certa maneira já filha do 25 de Abril, numa casa habitada maioritariamente por mulheres, fui mesmo incentivada a exercer a minha liberdade.

Claro que a minha mãe tinha sonhos para mim. Na realidade eu realizei-os. Mas os sonhos dela passavam por uma profissão em que me realizasse e tivesse segurança. O sonho da minha mãe era que eu fosse funcionária pública. Sim, esse era principalmente o sonho dela. Realizada, seria um bónus. Qualquer serviço público com ADSE e Caixa de Aposentações lhe serviria. Ela queria que eu tivesse uma vida segura.

Ficou um pouco abalada quando eu comecei a dizer que queria ser actriz, mas ela era uma mulher de convicções, muito esperta e intuiu que se me contrariasse, isso só iria fortalecer a minha decisão. Aproveitando-se de eu necessitar de mais um ano de estudos secundários para poder ingressar na carreira que queria, ocupou-se durante todo esse ano de seleccionar as mais infelizes histórias de actrizes caídas em desgraça. Admiro-lhe a estratégia e o empenho. Depois arremessava o nosso conflituoso relacionamento para cima da mesa e esgrimia: Queres o quê? Vir cá esmolar para comer? Não teres sequer dinheiro para viver numa casa tua? Dependeres de mim ou de outro alguém?

Ela sabia! Ela sabia que liberdade e independência eram as minhas maiores ambições e assim me fui chegando a uma carreira segura. Mas teria que ser licenciada: não queria ser funcionária administrativa, acorrentada a um serviço que me parecia repetitivo, entediante, nada desafiador. Optei, com o incentivo e apoio da minha mãe, por uma licenciatura em letras e começou-me a parecer muito aliciante a carreira de professora. Aí começou a campanha da minha mãe pelo ensino público: uma Carreira! Com ADSE e Caixa de Aposentações e a promessa de uma reforma por inteiro ainda em idade muito aproveitável. 

Algumas dessas "garantias" já desapareceram, mas posso dizer orgulhosamente que consegui juntar a realização profissional à "carreira" que a minha mãe ambicionava para mim e que até hoje consegui manter a minha independência e autonomia, viver sozinha, decidir da minha vida e pagar as minhas contas.

Tenho de lhe agradecer por isso. Devia tê-lo feito, mas as nossas conversas raramente incluíam mimos e agradecimentos, muito menos o reconhecimento da excelência e/ou importância da outra.

Como professora lido com muitos pais e filhos e com as expectativas deles. Tantas vezes já tive que engolir a minha revolta em relação a coisas que os miúdos me contam em que se revela uma total falta de respeito dos pais pela personalidade e anseios dos filhos, outras tantas tentei contornar as situações, mas em poucas consegui, perante os pais, defender que os jovens devem fazer o seu próprio caminho, que a infância e a juventude são caminhos de descoberta e de construção, cabendo aos pais apoiar, amparar, orientar, mas não dominar e determinar. Não conseguiria já enumerar quantas famílias têm já decidido o futuro dos filhos antes deles terminarem a escolaridade básica. Vejo muitas crianças a sofrer, a debaterem-se ou a definhar perante a intransigência dos pais face ao futuro que decidiram para os filhos. Como propriedade sua, que julgam que são. Muitas vezes vim para casa revoltada, triste, chorosa mesmo perante situações de incompreensão, de intransigência, de crianças e jovens ignorados ou apagados na sua individualidade. A vida não é dura só para os que não têm comer, é difícil também a muitos níveis para os que não têm sonhar...

Defendia muitas vezes nas minhas narrativas sobre os tempos de antanho que os mais felizes eram os mais pobres. E os meus meninos não acreditavam. Julgavam-me tonta. Tudo o que eles queriam era ter dinheiro e bens, sem perceberem que esse património, na maioria das vezes (e sobretudo em tempos em que a liberdade não era uma persona grata) era sobretudo um fardo, que o património sempre pagou impostos muito caros, neste caso ao condicionar carreiras, casamentos, decisões, ao hipotecar vidas. Sempre houve uma relação capitalista com o património. Afetos, liberdade e autonomia eram elementos ausentes em que as famílias educavam os seus descendentes para assumir as responsabilidades perante o património da família. E as expectativas das famílias eram diferentes para rapazes e raparigas, para o filho mais velho ou para os outros...mas sempre a abundância de património trazia (ou traz consigo) um elevado preço a pagar no condicionamento das escolhas e na gestão das expectativas, na permissão ou não de sonhos.

Pode ser uma visão muito romântica da realidade, certamente herdada deste meu espírito formado nas leituras do séc. XIX e do dealbar do XX, do advento da Liberdade, da Igualdade, do Feminismo, mas sinto sempre um aperto no peito quando se nega a uma criança o direito de sonhar, não por não poder dar-lhe o que a faria feliz, mas por não o considerar adequado dentro de um padrão rígido pré-estabelecido.

E sempre houve e continua a haver muitas famílias que se consideram donas dos filhos, que dispõem do seu futuro como de uma criação sua, sob a qual reclamam direitos de autoria. 

No meu ensino público não conheci filhos de grandes fortunas, onde penso que os casos devem ser ainda mais terríveis...mas já vi os suficientes para acreditar que em muitas famílias existem maus tratos psicológicos, falta de respeito pelos direitos das crianças e vidas a crescer mortas por dentro, hipotecadas a sonhos alheios.

Talvez por tudo isto tenha tido vontade de fixar aqui um extracto da última obra que li: 

                Archer, Jeffrey, Nem um tostão a mais, nem um tostão a menos, p. 21

"A única ambição de Roger era vir a ser oficial da marinha, mas, depois de terminar o curso em Dartmouth, tivera de regressar para retomar as rédeas do negócio da família, devido à saúde debilitada do pai. Estava há poucos meses na firma quando o pai faleceu. Roger gostaria de ter vendido a Sharpley & Son ao primeiro comprador que aparecesse, mas o pai incluíra uma cláusula no testamento na qual estipulava que, caso a firma fosse vendida antes de Roger fazer quarenta anos (sendo esse o último dia em que qualquer indivíduo podia alistar-se na marinha dos EUA), o dinheiro ganho com a venda seria dividido em partes iguais pelos outros familiares."

Decidido. Para cumprir, mesmo depois da morte, matando com a sua decisão todos os sonhos numa vala comum. O pai, o patriarca, o decisor da vida dos filhos. Ui! deu-me um arrepio! 


Leituras de Janeiro

 Quando o ano começou andava a braços com a leitura de Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina de Mário de Carvalho

Gosto das entrevistas que vi de Mário de Carvalho, gosto do seu ar simpático e muito, muito culto. Um dia, depois de ver um programa televisivo em que o escritor participou (Nas Nuvens, Canal Q) resolvi comprar um livro seu, que é uma espécie de manual de escrita: Quem Disser o Contrário é Porque tem Razão. E comprei. Depois comecei a pensar que ler um manual de escrita de um escritor do qual não sei se gosto da escrita é, no mínimo estranho e no máximo arriscado. Será que quero mesmo que ele me ensine a escrever como ele? Como é que ele escreve? Eu quero escrever como ele?

Aí comecei a procurar obras suas. E tem muitas, mas só os contos estavam disponíveis para empréstimo. Trouxe. Gostei. Não adorei, mas gostei. Lembrei-me até que tinha visto a adaptação televisiva de um conto seu, O Alferes, que muito me tinha impressionado, numa excelente interpretação de João Lagarto. Era ele ainda novo e eu mais ainda.

E depois, um dia, numa livraria - que é o meu Tinder de amores literários - lá divisei este Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina. E comprei. E li. Com algum prazer e muita obstinação. Ele escreve bem, mas a narrativa é barroca e exige-me esforço de atenção e muita disciplina. Está bem escrita. O autor tem muita cultura. E imaginação. Mas o ritmo da história é cheio de solavancos, recursos que se intrometem na leitura, trechos bons misturados com texto aborrecido...mas continua a espantar-me como se consegue escrever uma história do princípio ao fim.

Lá terminei e registei alguns trechos e reflexões no caderno de papel. Azul, como o escritório será quando terminar a minha mais recente empreitada de decoração.

Pelo meio das leituras de Janeiro ficam as Crónicas de Alice Vieira, Pedro Mexia e Gonçalo Cadilhe, onde colho a matéria prima da minha rubrica na Rádio, assinada em nome do local onde trabalho. Um projeto pessoal e coletivo, um projeto de trabalho que me deixa muito feliz. E me obriga a ler. De forma constante.

Janeiro ainda foi preenchido com um livro de Jeffrey Archer, o primeiro que ele escreveu: Nem um tostão a mais, nem um tostão a menos, reeditado em Portugal no final do ano passado. Pela Bertrand, claro, onde o encontrei.

Mas a ele dedico post próprio.

Nova Etiqueta

 A leitura, infelizmente, ocupa cada vez menos espaço na minha vida.
Compro muitos livros que não consigo ler...por falta de tempo...ou de organização.

Os écrans ocupam cada vez mais tempo na minha vida: televisão, computador e telemóvel. E aí também aprendo muito. E aí também leio. Mas...Cada vez mais o folhear de um livro, a imersão num texto impresso, me escapam para dias menos afadigados.

Vendo por outro prisma, a leitura, tal como outros prazeres da vida, vão ganhando espaços de mais qualidade. Já não sou capaz de ler um bocadinho entre duas tarefas, já não tenho facilidade em concentrar-me por cinco minutos, ler um trecho, uma frase, um parágrafo...A leitura tem de ter o seu espaço próprio. A leitura a sério, dos livros.

Pensando bem agora leio com mais atenção e exclusividade. Selecciono, pondero, preparo o espaço e o tempo e dedico-me à fruição de um texto literário. Ler não é uma coisa entre as outras. Ler exige o seu tempo. Porque é uma forma de amar e de me dedicar. E já não tenho idade para amores sôfregos, escapadinhas, afagos breves. A leitura hoje, como outros amores, exigem de mim dedicação absoluta. O ambiente perfeito: as velas, a escolha do vinho, toalha com guardanapos de pano, canapés, prato principal sobremesa e digestivo.

Afinal, comecei por escrever este texto para me lamentar e exorcizar os meus fantasmas de leitora vendida aos écrans e acabo por me descobrir, apenas, como uma leitora madura, mais recatada nos seus afetos, mas especialmente dedicada às suas escolhas.

Melhorou muito este texto, desde que se insinuou dentro de mim até que se efetivou num suporte de escrita (também ele apresentado em écran): os sentimentos mudaram, o estado de espírito alterou-se e a que escreve torna-se a intérprete de uma mim desconhecida.

Gostei. Apreciei esta conversa comigo mesma.

Regressando ao ponto de partida de tudo isto, resolvi reabrir as páginas deste blogue (que também já foi uma paixão vivida de forma mais intensa) para começar a registar as minhas leituras e respectivas reflexões decorrentes.

Sempre que leio um livro gosto de fazer um registo: da leitura, de citações, de reflexões. Em dias muito bons gosto de o fazer num caderno que terá a função quase mítica de um dia me valer em escrita própria, escorreita, original e premiada. Mas nem sempre os dias são bons e as leituras (que afinal são múltiplas e em simultâneo) vão-se esfumando sem registo.

Então começa aqui hoje uma nova etiqueta nestas palavras guardadas: Diário de Leituras.

domingo, 9 de janeiro de 2022

Já a minha avó dizia

 Maior fosse o dia maior era a romaria!

sábado, 8 de janeiro de 2022

Criticando o rectângulo pátrio

 Quero aqui registar algumas palavras de crítica ao nosso país, que acho muito bem conseguidas.

São excertos do romance "Fantasia para dois Coroneis e uma Piscina" de Mário de Carvalho.

"Entre a poeirada de adversidades que ensombram e inquinam a já de si pequenina qualidade de vida dos portugueses existe uma prática ilegal e, portanto, livremente exercida, chamada «estacionamento em segunda fila». Consiste em alinhar automóveis ao lado daqueles que já estão arrumados, bloqueando-lhes a saída. Em Portugal, em qualquer ocasião, sempre que ao olhar se oferece um bom lugar, é mister fazer-lhe a crítica e interroga-lo extensamente. Há campo para sair pelo lado do passeio? Há espaço suficiente para?...Convém antecipar todas as malfeitorias aptas a impedir-nos de usar de um direito ou de uma facilidade. Porque é evidente que as circunstâncias da lusa vivência não consentem que um cidadão deixe o seu carro bem estacionado e vá, descansado, à sua vida. Isso seria demasiado simples. E a simpleza repugna aos portugueses. Deixar alguém na despreocupação? A fruir dos seus direitos? Isso é antilusitano. O bom cidadão deve sofrer a grosseria dos seus conterrâneos, sujeitar-se a ver todas as legítimas expectativas malogradas e guardar-se para a sua própria vez, quando tiver ocasião de tirar desforço e lesar triunfalmente a comodidade do próximo." (p. 55)

"(...) Há ocasiões em que Portugal merece ser amaldiçoado. Quando toca a papeis, argueirices, complicações, autoritarismozinhos, sadismozinhos, há que varrer. Eu era mesmo capaz de dizer: invadir. Seiscentos australianos, quarenta suecos e trinta e dois japoneses punham isto na ordem em menos de um fósforo. Alguns dos nossos burocratas, santa paciência!, teriam de aguentar na cadeia ou, pelo menos, com pulseira carcerária, por atentado doloso e mortal à qualidade de vida dos Lusos." (p. 148) 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

As Mães

 A minha relação com a minha mãe foi muito conturbada, conflituosa, dolorosa. 

Talvez seja isso que tenha determinado que eu nunca tenha tido grande vontade de ser mãe. O tal desejo que dizem que todas as mulheres têm...eu não tive. Pensei ainda (fugazmente) em ser mãe por conta de uma relação amorosa que me parecia que ia dar certo. E aí, sim, talvez eu gostasse de "lhe dar" um filho ou dois, de construir um lar. Não cheguei a saber se essa vontade se teria transformado numa determinação sólida, porque sólida não foi a relação e o projeto ficou pelo caminho, sem ter de ser pensado a valer.

Assim, não fui mãe.

Quando chegou aquela altura do tic-tac biológico (tão bem abordado na comédia de Bridget Jones) ainda encarei a possibilidade de uma adopção...para logo me quedar pela vontade de não enfrentar o calvário burocrático-legal e - sejamos honestos - a trabalheira de criar uma criança.

Assim, não fui mãe.

Agora, com a idade de avó, dou comigo frequentemente a pensar que as mães são seres extraordinários. Que encontram em si recursos insuspeitados, que fazem das fraquezas forças e que povoam gigantescamente (para o melhor e para o pior) a vida dos seus rebentos. Até depois de terem partido.

E vêm estas reflexões a propósito de quê? De facto tenho pensado muito nisto, mas algo fez, hoje, despoletar a vontade de molhar o aparo no tinteiro (Que parvoíce: nunca tive caneta de aparo, mas achei que a expressão ficava aqui tão bem!) e isso foi um breve encontro que tive hoje no café.

Quando já estava para abandonar o espaço do café vi uma colega que já foi outrora minha chefe e isso deteriorou as relações entre nós. (Dizem as más-línguas que eu sou difícil de chefiar, mas eu não concordo com isso, embora a temática seja longa e por isso merecedora de publicação própria). Em resposta ao meu aceno respondeu com um gesto vago, cansado, pouco comprometido. Disse-lhe "Bom Ano", respondeu "Obrigada". Tudo assim sem grande expressão ou implicação.

Mesmo ao cruzar a porta reparo no jovem que se estava a sentar junto dela. Era o filho. Tinha sido meu aluno ainda antes de eu a conhecer como colega. Fiquei ali à espera que ele desse por mim. A mãe fez-lhe sinal e - parecia um milagre! - o rosto dela estava todo iluminado, ela tinha rejuvenescido 10 anos e qualquer antipatia para comigo tinha desaparecido. Ela estava encantada de eu ter reconhecido o filho e querer cumprimentá-lo. Trocámos sorrisos e desejos de boas festas e eu saí do café convencida que a relação entre uma mãe e um filho ou filha é uma coisa com um potencial tremendo: a transformação daquela mãe era disso prova!

Talvez eu tenha perdido a oportunidade de ter uma relação única, para lá do que é imaginável. Porque até a minha mãe, disseram-me, quando falava de mim se animava, se orgulhava, coisa que não me expressava diretamente.

Ser mãe deve ser uma coisa extraordinária!