sábado, 30 de abril de 2011

O cheiro da sopa e o som da chuva adornam a minha noite caseira de sábado.
Desisto da televisão.
Concentro-me em mais um som reconfortante: o ronronar da minha gata.
E é na palavra «lar» que me sento para me despedir de Abril, o da águas mil.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Ainda o Professor Vitorino Magalhães Godinho

João Céu e Silva recorda hoje, no DN, a sua entrevista ao Professor Vitorino Magalhães Godinho, de que saliento este pedaço que me fascina:
"A entrevista, achava eu, iria ter início. Rapidamente reparei que estava enganado. Era mais uma lição, na qual teria direito a levantar o dedo e a fazer uma ou outra das muitas perguntas que levava no bloco e pouco mais. Não é que não aceitasse ser questionado, existia era no seu ser demasiada interrogação para que precisasse também da minha."
Para ler, na íntegra, aqui:
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1838970&seccao=Jo%E3o C%E9u e Silva

quarta-feira, 27 de abril de 2011

A Historiografia Portuguesa de Luto

Ontem, aos 92 anos, morreu o historiador Vitorino Magalhães Godinho.
Para mim será sempre o homem dos «complexos historico-geográficos», da história estrutural, de toda uma compreensão da História enquanto disciplina que só me começou a ser desvendada no 12º ano, quando, de facto, defini a área científica e social em que queria trabalhar e estudar sempre.
Nunca ouvi falar pessoalmente o Professor Vitorino Magalhães Godinho, mas gostei e gosto muito de o ler e considero-o uma referência (incontornável, como fica bem agora dizer) na minha visão da História de Portugal e do papel de Portugal na História Mundial.
A sua figura como estudioso e académico é uma das referências «quase míticas» (de uma mitologia pessoal, muito bebida na Faculdade de Letras pós-25 de Abril) daqueles que realizaram os seus estudos em França (Ah! A Sorbonne!) e que revolucionaram a História a partir da Escola dos Annales.
A História, a Historiografia (e não só a portuguesa) estão de luto, porque perderam uma suas grandes (muito grande) figura.

Nota Póstuma (pelo país?): Numa das suas últimas entrevistas, em 2008, o Professor entristecia-se pelo rumo que o país estava a tomar e fala de vários boicotes que o seu trabalho sofreu:
«Como quer que seja, ninguém lhe tira da cabeça que a sua vida "é uma sucessão de fracassos". A seu ver, o caminho seguido pela Universidade Nova - da última vez em que os seus projectos foram, "como sempre, sabotados" - é apenas mais "um sinal da inércia de uma sociedade que adopta o telemóvel, mas não é capaz de se abrir a novas formas de cultura".

"Um sinal" que Magalhães Godinho entende, mas com o qual não se conforma. Afinal, aos 90 anos, "teima em ser cidadão". Contra o "desaparecimento da figura do intelectual". Contra a "falta que faz quem dê uns gritos de alarme, alertando para os recuos que a democracia está a ter". Contra a "inexistência de quem ouse dizer que 'o rei vai nu".»
Pode ler-se na íntegra aqui:
http://aeiou.expresso.pt/o-homem-que-teima-em-ser-cidadao=f314283

Obrigada, Professor. A História (pelo menos a História) não deixará de lhe fazer justiça!

Ruído

"Quatro em cada dez portugueses estão expostos a níveis demasiado elevados de ruído ambiente, defendeu um especialista, referindo que é prejudicial para a saúde (...)" Fonte: Agência Lusa

Eu já tinha reparado, mas pensava que era um problema meu, que, ultimamente, tenho tentado ouvir as notícias do país por causa da crise...

terça-feira, 26 de abril de 2011

Memória do 25 de Abril: Páginas de Rómulo de Carvalho

Com a devida citação, transcrevo aqui a Memória do dia 25 de Abril de 1974, do Professor Rómulo de Carvalho, que encontrei no blogue De Rerum Natura, num post de Helena Damião.
Grande surpresa para mim - que a nossa percepção pessoal do tempo nem sempre coincide com a cronologia das coisas - o Professor Rómulo de Carvalho sobreviveu a Zeca Afonso. Mas eu conheci Zeca Afonso primeiro que Rómulo de Carvalho. Esse conheci-o tarde, para o admirar como Professor e Cientista e me fascinar com a identificação com o poeta que, esse sim, conhecia desde criança, nas letras (que sei de cor) da Pedra Filosofal e da Lágrima de Preta.

"Naquele dia 25 de Abril de 1974, que foi uma 5.ª feira, saí de casa de manhã, como de costume, a caminho do Liceu Pedro Nunes. Não tinha aulas, porque (...) estava afastado desse serviço, mas tinha um encontro marcado com dois professores alemães, nesse liceu, onde iríamos trocar impressões, em francês, sobre questões de ensino. Segui pela Coelho da Rocha, normalmente, sem notar nenhum sinal de "revolução", e aí encontrei um colega, o Trigueiros, que fora meu estagiário, e se encaminhava também para a citada reunião. Lá ao fundo virámos à direita e começámos a descer a rua da Estrela.

Ó Dr. Trigueiros, o que é aquilo? Parámos a observar. À direita, a meio da rua, há um quartel, da Guarda Republicana, com uma porta larga e guarita junto dela onde normalmente se vê um soldado de pernas abertas, de sentinela, a observar quem passa. Por cima da porta, no 1.º andar, há uma janela com varanda, e o que me deu nas vistas, ao descer a rua, foi ver o soldado nessa dita varanda, de pernas abertas, a observar quem passava. A porta do quartel estava fechada, e a habitual sentinela passara-se para o 1.º andar. Que é isto?

Quando chegámos ao liceu, os alemães, que tinham vindo da Baixa, disseram-nos, alarmados, que havia por lá grande movimento de gente que se manifestava, com soldados à mistura. Devia ser uma revolução, o que aconselhou todos nós a regressar aos seus lares. Assim foi.

Quando cheguei a casa liguei o aparelho de rádio na expectativa de ter notícias dos acontecimentos. Não havia dúvida. O movimento estava a ser seguido pelos operadores de rádio como se procedessem à execução de um filme, ao vivo.

Ouviram-se ordens e contra-ordens, comentários rápidos em tons alvoroçados. A Revolução estava na rua. A ditadura estava a ser derrubada. Os maus da fita iam ser castigados e os bons erguidos aos ombros, entre aplausos.

De vez em quando as ondas radiofónicas traziam consigo uma canção. Era a canção que, por combinação prévia, tinha servido de sinal à eclosão do movimento revolucionário. Ficara combinado que, entre as zero horas e a uma hora daquele dia 25 de Abril de 1974, a Rádio Renascença emitiria uma canção, já então conhecida, de um "cantautor" (nome que na altura se usava para os autores das letras das canções que eram simultaneamente autores das respectivas músicas) de nome José Afonso, agora já falecido. Todos os candidatos a revoltosos ligaram os seus rádios, àquelas horas, para a referida estação, e mal ouvissem o aguardado canto, saltariam para as ruas de armas na mão.

A canção, como vos disse, já era conhecida, mas de muito pouco tempo antes da Revolução. A censura exercida no tempo de Salazar tinha-se gradualmente abrandado após a sua queda da cadeira, a ponto de tornar possível o conhecimento público de canções de feição revolucionária (...). Chamava-se a canção "Grândola vila morena", e começava assim: "Grândola vila morena, / terra da fraternidade. / O povo é quem mais ordena / dentro de ti, ó cidade."

A única coisa que daqui se compreende, e exalta os ânimos, é que o povo é quem mais ordena. É mentira, mas é bonito. Porquê Grândola? (...) E morena porquê? Para rimar com ordena com que, aliás, não rima bem! E que se passou em Grândola, que a gente saiba, para ser terra da fraternidade? Eu, pelo menos, não sei (...). Basta de perguntas. O que interessa é que a canção era revolucionária e o público exaltou-se com ela, e aplaudiu-a cantando-a em coro. Essa foi a canção que deu o sinal de partida para os revolucionários, e desse modo se instalou na História."


Rómulo de Carvalho, in Memórias (2010), Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 298-300

E no fim das contas...

Havia um rifão popular - ou uma frase recorrente lá por casa - que dizia qualquer coisa como «as coisas mais mal julgadas são as melhor sucedidas»...
Não me lembro exactamente da expressão, mas chamo-a aqui para me penitenciar pelo lamento de ontem e me congratular pelo dia de hoje.
A escola pareceu-me alegre e soalheira (nunca mais empregarei «solarenga» desde que vi um vídeo enviado por alguém muito preocupado com a Língua Portuguesa!), os garotos uma revoada de alegria; as aulas correram bem, o ambiente fervilhava de actividades e senti-me bem recebida. [Juro que não tomei qualquer substância que possa ter influenciado este estado de espírito, quase delirante].
Na realidade toda aquela resistência de ontem cedeu perante a apresentação pronta dos trabalhos de férias (pois, eu sou das que passo uns trabalhinhos para o tempo de pausa!), a necessidade de combinação de uma série de coisas que se prendem com actividades próximas e perceber que os jovens que me dão umas horas de atenção por semana estavam até expectantes para perceber a organização deste fugaz 3º período e para receber os elogios perante o desempenho nas provas nacionais da disciplina perante a média nacional.
E pronto: não há «moral da história», não há uma mensagem subliminar, não há qualquer conclusão implícita neste post, só dizer que me sinto bem, simplesmente.

É já a seguir a esta noite...(isto foi um gemido)

Tenho andado aqui pelo apartamento de costas para onde caminho: entro no quarto de costas, recolho o tabuleiro, entrando na cozinha de costas...Acredito que talvez - se eu puder enganar o tempo - assim consiga recuar no tempo e prolongar o feriado mais um bocadinho, adiar o regresso à escola...
Estive a preparar as aulas e confesso que estou cheia de entusiasmo para abordar os novos temas deste breve 3º período. Estou até feliz por comunicar aos meus alunos que as nossas classificações dos Testes Intermédios ficaram acima das médias nacionais. Mas...ter de enfrentar amanhã a sala de professores é que me está a matar!
É que não há safa possível. A minha obrigação como professora é entrar na sala com o livro de ponto. E onde é que tenho de o ir buscar? À sala de professores!
Eu sei, eu sei, que existem (muitas) escolas onde os sumários já são informatizados, mas nós vivemos uma discussão entre essa facção da sociedade e os que advogam que os epigrafemos em pedras, que poderiam depois ser arquivadas em prateleiras da Flintstonelândia...
Também convém assomar à sala para me inteirar rapidamente das reuniões marcadas. Ugh! Que tormento! Dói-me tudo só de pensar.
Mas lá terá de ser. E «cara alegre, que é serviço!»

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Episódio de uma Tragicomédia pessoal - Memória do 25 de Abril

Se fosse vivo o meu padrasto faria hoje 78 anos...acho...
Na realidade tê-los-ia feito no dia 18 de Abril, mas fruto da interioridade em que nascera, só foi registado a 25 de Abril.
"Vermelho por dentro e por fora" gostava da coincidência da data com a da Revolução e só depois de casado com a minha mãe deslindou que afinal fazia anos noutra data...
Mas o 25 de Abril sempre foi o seu dia, pelas várias razões que se compreendem.
Foi por isso que, no primeiro 25 de Abril após a sua morte - creio que faz agora seis anos ou talvez sete - eu tentei despedir-me dele de forma séria adequada e definitiva.
Perguntei à minha mãe qual o número da campa. Deixei-a de mau humor, porque disse que queria ir sozinha, comprei duas dúzias de cravos vermelhos e convoquei o meu carro para subir ao cemitério, pela primeira e última vez (espero eu).
Ao contrário do dia glorioso de hoje, naquele 25 de Abril, chovia de forma constante, estando o céu de um cinzento inequívoco para todo o dia. Achei até adequado ao meu estado de espírito.
O Afonso tinha morrido no Janeiro anterior e não acho que os funerais - locais de encontro e de observação - sejam o melhor momento para uma despedida que se quer introspectiva, pessoal, solitária.
O corpo levou consigo um único cravo vermelho, promessa de uma despedida condigna e nesse dia queria espalhar simbolicamente os cravos sobre a sua campa, para assinalar a todos os passantes que, mesmo depois de morto, aquele comunista continuava a manter vivo o espírito do 25 de Abril.
A custo, com o chapéu de chuva e os cravos, procurei a indicação da rua e subi-a enfrentando o vento e misturando nas faces a água da chuva e das lágrimas.
Encontrei a campa. Não tinha a pedra, tal como a minha mãe me tinha dito, pois era necessáro passar um tempo para que a terra abatesse para voltar a colocar a pesada pedra de mármore da campa de família.
A terra escura da chuva alegrou-se com os cravos encarnados, parecendo sair da terra para comemorar a vida, no meio de um cemitério tristonho e quase deserto, que o feriado nada tem de religioso e a chuva desencorajou as penitências familiares.
Fiz o meu luto, ali, naquele dia em que me custava muito, mesmo muito, que ele não estivesse junto de nós, que ele não estivesse nunca mais, para assinalar a coincidência da data do seu Bilhete de Identidade com a Revolução Libertadora que pôs fim à Ditadura, a Revolução pela qual lutara e que festejava alegremente.
Despedi-me então definitivamente da sua presença na Terra, da sua presença na nossa família, assegurando-lhe que seria sempre recordado como um pai e como educador dos valores revolucionários que ambos considerávamos certos para reger a nossa vida e o país.
(Espero que lá em cima não acompanhem as notícias políticas, senão o dia de hoje só terá de bonito o sol...)
Olhei para a campa uma última vez. Limpei as lágrimas do rosto e dispus-me a descer de novo para o carro.
De pé, só então olhei verdadeiramente à minha volta. E uma sensação estranha me invadiu: Não era aquela a campa! Não era...Nem sequer era naquele sector do cemitério.
Oh, meu Deus! Invadiu-me um pânico e um desalento. A minha mãe estava já muito baralhada e deve ter-se enganado a dar-me o número. Como saber?...O cemitério é enorme e sem qualquer indicaçao sobre a campa...
Olho de novo para a campa juncada de cravos vermelhos...Paciência! O que conta é a intenção...Só espero que não tenha feito todo este cerimonial na campa de um salazarista.
De repente este pensamento divertiu-me. E sorri.
Hoje penso que, se dependeu de ti, a campa era mesmo de um salazarista e o último acto da minha despedida para ti foi um sorriso e um certo desconcerto por esta troca, que te teria divertido imenso.

domingo, 24 de abril de 2011

Domingo de Páscoa

Se o Domingo de Páscoa não fosse uma data móvel, era hoje que eu completaria mais um aniversário.
Foi na noite de um domingo de Páscoa que eu nasci, quando a minha mãe tinha 33 anos - facto que ela, em dias de aguilhoada verbal, gostava de associar à data de crucificação de Cristo.
Parece que o parto foi muito menos complicado que a gravidez, culminando na desilusão de, afinal, ser mais uma menina a nascer.
A minha parteira vaticinou que eu era uma sobrevivente, pela forma tenaz como me agarrei à manga larga do seu casaco de malha.
Como parece que não há fadas madrinhas (só nas histórias de encantar...), gosto de recordar este vaticínio, como se de uma benção se tratasse.
Gosto de pensar que, habituada a ver nascer muitos bébés, ela saberia distinguir-lhes as qualidades em tempos em que não tinham sido ainda inventados os testes de Apgar.
Sobre a volatilidade da celebração da Páscoa, em tempos em que me cria jornalista, publiquei uma pesquisazinha, que resolvi salvar, aqui ao lado, no Salvo Seja.
Páscoa Feliz!

sábado, 23 de abril de 2011

"ELA:

Quem sou eu então se não me vês?
Que solidões dos anos que passaram
e dos futuros densos nos separam
neste escuro impensado?
Quem és tu afinal e que não seja
esta ofuscante imensidão
que nos amarra?"


extraído de Um Teatro às Escuras, de Pedro Tamen, Publicações Dom Quixote, 2011, p. 11

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Guia de conceitos básicos

"Use o poema para elaborar uma estratégia
de sobrevivência no mapa da sua vida. Recorra
aos dispositivos da imagem, sabendo que
ela lhe dará um acesso rápido aos recursos
da sua alma. Evite os atolamentos
da tristeza, e acenda a luz que lhe irá trazer
uma futura manhã quando o seu tempo
se estiver a esgotar. Se precisar de
substituir os sentimentos cansados
da existência, reinstale o desejo
no painel do corpo, e imprima os sentidos
em cada nova palavra. Não precisa
de dominar todos os requisitos do sistema:
limite-se a avançar pelo visor da memória,
procurando a ajuda que lhe permita sair
do bloqueio. Escolha uma superfície
plana e deslize o seu olhar pelo
estuário da estrofe, para que ele empurre
a corrente das emoções até à foz. Verifique
então se todas as opções estão disponíveis: e
descubra a data e a hora em que o sonho
se converte em realidade, para que poema
e vida coincidam."


Nuno Júdice

colhido em poedia

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Equipamentos de origem

"Caminhar perto do mar, ou num qualquer sítio inóspito, sempre a fazia pensar em tempos primordiais, em lutas pela sobrevivência, em atitudes tão temerárias como construir barcos e partir à descoberta...
Frequentemente (e cada vez mais) os seus pensamentos orientavam-se na procura de compreender sentimentos e instintos que terão sido os responsáveis por coisas incompreensíveis para nós(os civilizados, os da vida confortável) que obliterámos tempos difíceis e pouca importância damos à História, ao devir, aos desígnios insondáveis do Destino, da Criação, de um caminho percorrido sabe-se lá porquê e que envolveu muito mais sacrifício que aquele que poderemos compreender.
Caminhava três a quatro passos atrás dele. As marcas dos pés na areia explicavam inequivocamente a dianteira dele: era maior, tinha as pernas mais compridas e estava calçado. Ela insistia em sentir a areia nos pés e não conseguia, por mais que quisesse, acompanhar as suas passadas que se intensificavam, em ritmo e tamanho, à medida que o tempo se tornava «mais feio». O vento soprava as nuvens negras para o centro do céu, como se se tratasse de um cão pastor a cuidar das suas ovelhas.
O rebanho de nuvens ocultava agora o céu e as gotas de chuva começaram a cair, primeiro moles e calmas, depois tocadas a vento, fustigando os caminhantes.
Por essa altura os passos dela tornaram-se descompassados; irritada consigo mesma parecia um pequeno pássaro aos pulinhos atrás dele a quem ia tranquilizando quando se virava para trás: «Eu estou bem, segue, segue...»
Por fim a praia ficou deserta, encaminhando-se os banhistas frustrados para os cafezitos de madeira da praia. Ele fez-lhe sinal de que também se deviam encaminhar para um abrigo: aquele cafezinho ali, no cimo de um monte, perigosamente no cimo de uma rocha, sujeita a erosão.
Ela seguiu-o, procurando com dificuldade ver através das lentes molhados dos óculos, disparatadamente escuros.
Quando chegou ao fundo de umas escadas rudimentares não teve tempo de pensar antes que ele a elevasse no ar, por acção do braço com que lhe rodeara a cintura e a colocasse no segundo degrau, ao seu lado.
Consumiram depressa a distância das escadas até ao café.
Lá dentro, comprimidos entre os muitos ex-ocupantes da praia, ele sorriu-lhe com as pestanas escuras molhadas, parecendo ainda mais grossas, e retirou-lhe carinhosamente os cabelos molhados do rosto.
Cada vez mais pensava em sensações primordiais, em situações de algum perigo que terão determinado a união da espécie e uma certa divisão «natural» dos papéis sociais, muito associados às diferenças de género.
Lá em baixo já não se distiguiam as marcas dos pés de ambos: os dele calçados e grandes e fortes, os dela descalços, três ou quatro passos mais atrás.
Respirou fundo e decidiu que nunca iria confessar a ninguém como lhe tinha sabido bem o enlace protector do braço dele quando a içara para o abrigo."

quinta-feira, 14 de abril de 2011

«Faites vos jeux»

Dizem que a vida é um jogo.
Nunca me debrucei muito sobre este pensamento...
Mas tenho de reconhecer que na Vida, como num jogo, tudo falha se a nossa carta não for a mais alta.
O jogo é classificado como um vício. Poderá a Vida estar na mesma classificação?...

terça-feira, 12 de abril de 2011

Hoje

Eles chegaram!
Mas os miúdos continuam a portar-se tão mal...É uma vergonha.
Mas eles não vinham para pôr ordem nisto?...

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Impossível de explicar!

A Vida é Bela

"Cena 41
Cidade. Rua
Exterior/dia

Pai e filho avançam a pé. Guido empurra a bicicleta pelo guiador. São ultrapassados por uma pequena companhia de soldados alemães. Os dois param na pastelaria Ghezzi. Na montra os bolos são poucos, mas há um cartaz com a escrita «Proibida a entrada a judeus e cães».
(...)
Guido segue em frente enquanto a criança lê o cartaz. Depois, alcança o pai.

Giosué: Porque é que cães e judeus não podem entrar, pai?
Guido: Eh, não querem lá judeus e cães. Cada um faz aquilo que quer! Há uma loja além, uma loja de ferragens...aqueles não deixam entrar espanhóis e cavalos. E aquele ali, o farmacêutico, mesmo ontem estava eu com um amigo...um chinês, que tem um canguru: «Não! Aqui chineses e cangurus não podem entrar!»; antipatizam com eles.

Pai e filho afastam-se, de costas, ao longo da triste rua da cidade.

Giosué: Mas nós deixamos entrar toda a gente!
Guido: Não, a partir de amanhã, também nós vamos escrever. Com quem é que tu antipatizas?
Giosué: Com aranhas! E tu?
Guido: Eu com visigodos! Amanhã vamos escrever: proibida a entrada a aranhas e visigodos.

E apressa o passo.

Guido (quase para consigo): Chega! Estou pelos cabelos com os visigodos!

Dobram a esquina."

Begnini, R. & Cerami, V. (1999). A Vida é Bela. Terramar. pp. 105-106.

domingo, 10 de abril de 2011

Fábula Política

Recebi-a hoje por mail.
Pesquisei para descobrir quem foi Tommy Douglas e descobri o político canadiano que instituiu o Sistema de Saúde do Canadá, onde, segundo creio, há verdadeiramente qualidade de vida. Descobri também que foi o avô do actor Kiether Sutherland e vi e ouvi vários testemunhos do neto sobre este homem como avô, como político, como pessoa com disponibilidade para pessoas.
Todo e qualquer texto sobre Tommy Douglas referia o seu discurso fabuloso (na verdadeira acepção primordial da palavra) «Mouseland».
Tentei (muito) encontrar uma versão sem a legendagem em espanhol (sempre este meu preconceito...) mas o texto - com a voz original do seu criador - torna-se de difícil compreensão.
Rendi-me, pois.
Aqui fica, em tempo de campanha eleitoral, de crise e de oportunidade, Mouseland - uma fábula política que não perde actualidade.

Intemporal e Irresolúvel

Estava eu a ler, num blogue, um texto interessante e divertido sobre a facilidade com que hoje se podem resolver mal entendidos e desencontros, com o simples uso do telemóvel (celular, escrevia o autor, que é brasileiro); dissertava ele sobre a incompreensão de que irão ser alvo os grandes dramas de outros tempos como Romeu e Julieta, Penélope e Ulisses e (não sisse ele, mas digo eu) o Frei Luis de Sousa. Tudo reduzido a atrapalhações de uma medievalidade pré-tecnológica....
De repente, sustive o sorriso: não, o cupido ou qualquer outro ser mitológico, com um sentido de humor frequentemente difícil de perceber a quente, arranjará sempre forma de criar desencontros mesmo à revelia de todo o desenvolvimento tecnológico.
Por muito desenvolvimento que tenhamos, não creio que nenhuma tecnologia consiga decifrar o genoma do amor, abrindo a porta para a cura do «mal d'amore».

QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Pela lei e pela grei, eu me calarei

"Tu que sabes
e eu que sei
cala-te tu
que eu me calarei"

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Tarde

Só depois de ter comido o hamburguer é que soube que era Dia Mundial da Saúde e que está a ser assinalado pela Associação Portuguesa de Nutricionistas com uma publicação sobre Alimentção Saudável.
Mas, procurando bem, sempre se encontram aspectos positivos em tudo.

colhido em Comer bem até aos 100

quarta-feira, 6 de abril de 2011

O que é isto?!?

Volta uma funcionária do almoço, ouvindo conscienciosamente as notícias, para se informar do «estado da Nação» e retém: "S. Bento desmentiu a notícia de que o Governo português estava a desenvolver contactos com Bruxelas para conseguir ajuda europeia."
Regressa a mesma funcionária à noite (pós-formação creditada em horário pós-laboral) e liga a televisão para um canal de notícias para, conscienciosamente, se informar do «estado da Nação» e depara-se com: "É oficial: Portugal pediu ajuda europeia. O Primeiro-Ministro disse que ficou sem margem de manobra e que foi muito pressionado..."
E é assim: eu não gosto do Bagão Félix, mas não posso deixar de recordar uma das suas primeiras afirmações como Conselheiro de Estado, em que deixava a conclusão de que o Primeiro-Ministro é mentiroso.

terça-feira, 5 de abril de 2011

segunda-feira, 4 de abril de 2011

"Prega o Evangelho sempre, se necessário usa palavras", S. Francisco de Assis

Falta-nos Fé, em toda esta situação bamba, confusa, conturbada...
A comunicação social só serve para alarmar. A pergunta recorrente é «Vêm aí tempos difíceis?», «Mais difíceis?», «Quão mais difíceis?».
Em quem devemos confiar? Os políticos acusam-se e contradizem-se, num circo que dispensa a opinião do espectador. Que fica assim especado. Que não tem exemplos para seguir, linhas mestras por que se guiar, uma bóia de salvação à vista em todo este naufrágio...
Usam-se palavras demais. Há demasiado ruído. Sentimo-nos perdidos. Sem luz, sem guia...
Por ter voltado a lembrar S. Francisco, recordo aqui a sua frase.

«O Rating que os parta!»

"O que é o Rating?

O rating é uma opinião sobre a capacidade e vontade de uma entidade vir a cumprir de forma atempada e na íntegra determinadas responsabilidades."


Informação colhida em CPR - Companhia Portuguesa de Rating, S.A.

É que...pronto...andamos todos a falar do mesmo...e serei só eu que não sei bem o que é?...
Talvez não.
Eu confesso publicamente a minha ignorância e talvez esta seja uma palavra que (dolorosamente) tenhamos de guardar.

Parece-me que as palavras Fiabilidade ou Confiança serviriam perfeitamente, mas isto deve ser o meu espírito pequenino a pensar. Rating tem um ar muito mais científico, cosmopolita e aterrador.

Aqui fica, pois, e talvez sirva a alguém que por aqui passe.

Povoamento

"No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera"


Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

domingo, 3 de abril de 2011

Domingo

Talvez porque uma tarde de domingo a trabalhar se adia o mais possível, talvez por ter aqui escrito o nome do texto, lá fui eu ler a entrevista com o Tolentino, que desconhecia completamente. Padre, Escritor e Professor Universitário, também me cativou pelas palavras, sobretudo sobre a Bíblia, que eu tenho tentado explicar aos meus pequeninos como um texto muito complicado, absorvente e fascinante na perspectiva histórica, de tentar considerá-lo um documento, ainda que seja impossível eliminar completamente a parte mística, a Fé. Tenho tido uns interessantes diálogos com os meus pupilos sobre as contradições e guerras entre a Ciência e a Religião, entre a Razão e a Fé, procurando que eles compreendam que o desejável é a convivência e mesmo miscigenação entre ambas as perspectivas, que não são estanques.
Gostei então particularmente desta palavras de Tolentino:
"Penso que mesmo antes de folhearmos a Bíblia já a folheámos. A Bíblia ensopa a experiência de todas as nossas histórias e a experiência espiritual que o cristianismo é." A que gostaria de acrescentar «ensopa a nossa cultura, porque o sistema de valores no qual tem estado assente a nossa civilização é o conjunto de valores veiculados pelo Cristianismo».
E "São Francisco de Assis dizia que caminhar a pé é ja rezar. Se for assim, já tenho rezado muito."
Com esta frase identifiquei-me muito e recordei o fascínio que tive quando fiz um trabalho, ainda na Licenciatura, sobre Francisco de Assis. Como fiquei fascinada pela sua vida, pelo seu pensamento, pelo abalo que inicialmente criou numa Igreja materialista e presa das tradições que vem acrescentando à Bíblia ou ao Cristianismo inicial.
Sempre sinto que caminhar - como uma actividade consciente, planeada - em locais escolhidos, me conduz a uma maior proximidade com a minha fé, com os agradecimentos que faço à Natureza de me ter incluído nela, com o fascínio que tenho pela possibilidade de apreender diversos aspectos deste mundo magnífico e deste país fascinante que somos. Sempre que volto de uma caminhada - pelas palavras ou pelo espaço - sinto que fiz uma renovação da minha alma e dos meus votos de felicidade pela fruição de tudo o que a vida me tem dado.
Talvez por ser domingo - e a educação e a tradição não deixam que este seja um dia asséptico em termos de sentimentos e emoções - este texto teve muito impacto em mim.
O mínimo que posso fazer agora é tentar conhecer algum texto de Tolentino Mendonça, em prosa ou em poesia.

A Sedução das Palavras

A minha relação com os jornais e as revistas deixa-me muito curiosa, intrigada...
A sedução nunca é à primeira (ponho-me a pensar se será só com a leitura...).
A tabacaria perto da minha casa tem uns escaparates cá fora que são quase sempre os causadores das nossas primeiras trocas de olhares.
A primeira coisa que vejo são os aspectos desagradáveis, designadamente, os slogans autopromocionais. «Super Interessante», que arrogância! «i: o jornal com o melhor design do mundo», francamente!...
Com esta coisa da moral cristã em que me educaram devemos ser humildes. Mas, depois, existe toda esta sociedade bacoca onde os medíocres são saudados e os bons (incluindo na humildade) são esquecidos, atropelados, estropiados, caluniados e preteridos num jornalismo que vive de néons e de apostas no mediático de qualidade duvidosa.
Já por aqui contei como me rendi à Superinteressante e este texto é motivado por outra rendição, pela capitulação perante o reconhecimento da justeza da autopromoção. Desta vez foi o jornal i. Estou a um passo de passar a considerar a arrogância como autoestima e coragem da sua proclamação aos 4 ventos.
A semana passada comprei o i, também muito pelo design da capa e pelos títulos de capa, entre os quais uma entrevista com Tolentino de Mendonça, que ainda não tive tempo para ler.
Este domingo, sentei-me na mesma mesa de café que o i, que o filho da dona do café tinha comprado e disponibilizado aos clientes.
Rendi-me completamente. Cheguei a casa, registei-me online no jornal para fazer um comentário - irresistível - a um artigo de opinião sobre o chicoespertismo português e deliciei-me com uma entrevista a Luis Miguel Rocha, apelidado de «o Dan Brown português» que também evidencia uma autoestima que lhe permitiu o sucesso. O que achei mais curioso foi a reacção dele perante as péssimas críticas dos colegas e amigos ao seu primeiro texto: «É tão bom que eles não conseguiram perceber.»
Por isso aqui dou a mão à palmatória: talvez a humildade em excesso não seja uma virtude. Vamos então passar para o certeiro slogan do Matinal: «Se eu não gostar de mim, quem gostará?»
'Bora lá para a autopromoção!