sábado, 25 de setembro de 2021

Tenho pena de não ter comprado castanhas

 Primeiro fim de semana de Outono. A chuva cai a espaços e o céu está uniformemente cinzento. 

Todas as janelas estão fechadas. Como se tivéssemos medo de nos molhar, vontade de nos fechar, vergonha de nos mostrarmos cinzentos.

Olho à volta do pátio de trás, onde as janelas dos vizinhos têm estado permanentemente abertas nos últimos meses. Tudo fechado.

Afinal o Facebook só imita a vida. Só nos abrimos ao mundo quando os dias são luminosos.


domingo, 25 de abril de 2021

Em Dia de Censo à Procura do Bom Senso

 Hoje preenchi os Censos 2021. E hoje é 25 de Abril.

E isto tudo acendeu na minha cabeça uma luzinha de antanho: uma vez que abri a porta a uma senhora e respondi a umas perguntas sobre as características da nossa casa.

Se eram uns censos? Não sei. Mas esse dia prolongou-se em mim por muitos anos e muitos medos.

A minha mãe (estranhamente) não estava em casa. Não sei precisar que idade teria: 12 ou 13...ou talvez um pouco mais ou menos. Não sei. Não consigo saber. Não deixei entrar a senhora mas respondi a todas as suas perguntas sobre quantas divisões tínhamos e quantas pessoas habitavam aquele andar alugado. A senhora agradeceu e foi-se embora. 

Quando a minha mãe chegou eu contei-lhe. Ela passou-se completamente! Que eu nunca deveria ter respondido! Que isso ia ser a nossa desgraça, porque agora que viam que éramos poucas pessoas numa casa grande iam trazer outras pessoas para morar connosco, para dividir o nosso espaço e nós não podíamos fazer nada para impedir e íamos ter que dividir as nossas coisas com pessoas que não conhecíamos. 

Sarnou-me tanto a paciência! Durante anos sentia um aperto nas entranhas ao lembrar-me dessa cena. 

Durante meses suava frio cada vez que batiam à porta, imaginando as várias pessoas que nos obrigariam a aceitar na nossa casa e como a minha mãe me ia culpar disso.

Logicamente as pessoas nunca vieram e eu creio firmemente que respondi a um inquérito nacional ou municipal, ajudando a criar as primeiras estatísticas da Liberdade. A construção e organização de um país novo, que também se conta em números, estatísticas, inquéritos e agora aplicações e formulários inteligentes.

Tive tanto medo! Nem era das pessoas que iriam viver connosco, mas do mal que eu tinha feito, de como tinha desiludido a minha mãe, de mais uma coisa (má) de que era culpada, de como o facto de ser desastrada e irreflectida ia afectar outras pessoas.

Tudo isto se relacionava com os mitos associados a uma via comunista para o nosso país. Com que a minha mãe até concordava, vamos lá perceber isto!

Hoje lembrei-me disto tudo, ao preencher os Censos, em dia de comemoração da Liberdade, em dia de ajudar o país a conhecer-se por estatísticas...em dia de uma ato de Cidadania, que traz consigo o sabor amargo de ser um preenchimento obrigatório, cujo incumprimento é sujeito a multas. E das pessoas terem medo das multas. E das pessoas fazerem as coisas por obrigação. E da Liberdade ser uma palavra cada vez mais oca, porque, ocupados que estamos com todas as obrigações, as proibições e o medo das retaliações, não pensamos por nós, não sabemos decidir, aceitamos sem pensar.

Nesta pandemia também tenho feito muitas coisas com que não concordo, mas que acho que devo fazer por ser obrigatório ou por não querer prejudicar ninguém.

E esse talvez seja o fio condutor desta narrativa: o de me encontrar na mesma, com o mesmo desamparo da adolescência a tentar fazer o que está certo, sem prejudicar ninguém e com medo de errar. Bolas, não era suposto ter crescido? 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Exterior Meu

 Nasci num terceiro andar no meio de uma grande cidade (na realidade, à época, uma mega-vila, que pouco tempo depois se transformou em cidade) e o andar que habitávamos tinha uma varanda, comprida e estreitinha, toda ao longo do espaço coberto que nos pertencia. Desde cedo convivi com a varanda como espaço exterior. Primeiro só podia frequentar esse espaço com supervisão e acompanhamento, depois podia usufruir dele, o que fiz e muito, de dia e de noite, recordando aí belas tardes de sol, ou de refrescante sombra no final do dia, noites quentes e observações inenarráveis de luar.

Na casa da minha avó - que habitei durante vários anos na adolescência - havia um quintal. A casa era um rés do chão no centro da cidade, com duas entradas: a principal e a das traseiras, pelo quintal. Três degraus separavam a porta do acesso pleno ao quintal, onde a minha avó chegou a cultivar couves e jarros. Muito brinquei nesse quintal! Aí vivi alegrias e tristezas (enterrámos lá uma vez um pardal que morreu pequenino), aí partilhei risos e arrufos com a vizinha do lado (outro prédio, quintal contíguo) que tinha exatamente a mesma idade que eu, nascidas no mesmo dia. Esse quintal tinha um poço, fresquinho de água, que uma vez serviu para fornecer aos leões do circo que estava acampado atrás do prédio, numa época em que a água faltou nas torneiras. E que orgulho da minha avó, que cedeu gratuitamente a água, mesmo quando o tratador queria pagar por ela!

Vivi brevemente num apartamento sem varanda (um andar partilhado com vários outros trabalhadores aí colocados por um ano), no ano seguinte num pequenino apartamento que abria para um pátio. Só chão de pedra mármore, sem terra nem plantas, o lugar onde estendia a roupa, mas que achava demasiado exposto para apanhar sol: a rua era mesmo ali e quase não havia muro. A esse espaço nunca chamei quintal, mas sim pátio, talvez por não ter natureza ou por ser noutra província e a designação mais comum ser pátio. (Achava eu que se escrevia com 'e', páteo, mas o corrector emendou e o dicionário confirmou: pátio. Clara constatação de que é uma palavra que digo, mas não escrevo).

Mais uma habitação partilhada com outros que tinha um quintal para trás. Mais uma vez quintal: terra, plantas e animais também, desta vez.

A primeira casa mesmo minha - comprada com o meu dinheiro e a ajuda do banco - tem um enorme terraço. Um exagero de espaço ao ar livre, que corresponde exactamente à área coberta do apartamento e serve de telhado ao apartamento do piso de baixo. E por isso um dia todas as necessárias obras de substituição do piso, com impermeabilização, foram inteiramente pagas pelo condomínio. Isso foi muito contestado na altura e alguns vizinhos ainda alvitraram que, uma vez que aquilo era considerado espaço comum, tencionavam ir lá apanhar uns banhos de sol durante o dia ou beber umas cervejitas ao cair da noite. Atividades que eu fiz muito. Do alto daquele terraço muitas vezes contei estrelas, aliviei o calor do verão ou varri imensa água da chuva para os escoadores que não estavam bem colocados e por isso a água tinha de ser encaminhada.

Devido a ter um tão grande espaço exterior durante tantos anos, quando procurei uma nova casa recusei-me a ficar confinada entre quatro paredes: o que eu iria adquirir tinha de ter algum espaço exterior, meu. A casa tinha de ser composta por espaço interior e exterior. Para eu poder estar na rua, mas ainda dentro do meu espaço.

Assim é! Apartamento com duas varandas, razoáveis, com possibilidade de ter uns vasos com plantas, o caixote dos gatos, os estendais e uma mesinha para tomar as refeições e ler um livro em dias bons.

Mas esta nova casa tem um outro espaço exterior com um nome novo: um logradouro. Um espaço comum a todos os moradores do condomínio, onde há plantas, animais e estacionamento. Um espaço que hoje - hoje mesmo - ganhou um novo significado quando eu, confinada por decreto da pandemia, logrei aperceber-me de pormenores extraordinários da natureza aí presente, que também me pertence e que me serve de bálsamo nesta obrigação de stay at home.

Desci a escada e observei as plantas, dei uns passos no exterior sem o perigo ou o constrangimento de me cruzar com alguém em tempos de isolamento; observei folhas e botões, "olhinhos" e flores e voltei para casa convencida que a Primavera está a chegar, que já é possível sentir isso no meu logradouro.

E concluí que a possibilidade de ter um espaço exterior que complementa o interior de um apartamento é um privilégio, ainda mais apreciado nos tempos que vivemos: seria tão mais difícil não poder ver e usufruir de um bocadinho de ar, elevar os braços e rodopiar num espaço exterior legalmente meu, sem receio de que me denunciem, de que me apontem como infringindo algo. Tão bom poder ser livre, afinal, ainda, no interior e no exterior. 

E com esta narrativa, que percorre os espaços que habitei, compreendo a importância de ter sempre (sempre!) um espaço exterior que me pertence, me completa, me liberta, mesmo em prisão domiciliária.