segunda-feira, 28 de junho de 2010

«Adultos à força»*

"- Álvaro: tens mesmo de ter uma conversa com o miúdo! - disse ela, na cozinha, num tom entre o implorativo e o impositivo, com os dentes cerrados, enquanto espreitava o filho no sofá da sala.
O homem fez um ar de sacrifício, de condenado sem fuga e dirigiu-se à sala. O puto fixava os olhos na televisão, mas, notava-se a tensão que precede «uma conversa séria».
O pai desligou a televisão e o miúdo continuava a fitar o écran, como se a acção se continuasse a desenrolar lá. O pai colocou-se à fente dele. Ele concentrou o olhar nas sapatilhas.
- Vamos lá a ver... - o pai olhou para a porta da cozinha com esperança que a mulher estivesse concentrada noutra coisa, mas ela lá estava, de pé, com um ar tão ameaçador, que ele aclarou a voz e assumiu um tom muito grave: (Na realidade o que lhe apetecia dizer era «Meu filho, tenho muito orgulho em ti. Eu também faltava às aulas para fazer coisas bem mais interessantes, mas não podemos dar desgostos à tua mãe...», depois dava-lhe um abraço, talvez consentisse em beberem uma cerveja juntos e arrotariam em sinal de uma cumplicidade mais vivida que dita) Mas as palavras que lhe saíram da garganta foram fortes e convictas: - A tua mãe trouxe informações da escola que nos estão a preocupar e a desgostar - o miúdo engoliu em seco e continuou a fitar os ténis desapertados. O pai olhou para a porta da cozinha, com esperança...para ganhar tempo...a mãe abria muito os olhos e movimentava a boca para dizer, sem som, o que lhe pareceu ser «A mentira» - E o pior são as tuas mentiras... - ganhou confiança, com o aceno da esposa - ainda ontem te perguntámos se tinhas alguma coisa para nos dizer antes da tua mãe ir à escola e tu disseste que estava tudo bem...Não dizes nada?...Sempre é melhor que mentir. Cá em casa não suportamos falsidades!
O telefone tocou no preciso momento em que ele pensava o que fazer se o filho continuasse sem dizer nada e a mulher sem se dedicar ao jantar. Sentiu-se salvo! Atendeu diligentemente, perante o olhar contristado da mulher.
Do outro lado reconheceu a voz da cunhada: «Boa noite. Incomodo? Já estão a jantar?...»
- De modo nenhum! Eu também precisava de falar contigo.
- Álvaro? Sou a Rita.... Quero falar com a minha irmã...
- Agora? Mas tem mesmo de ser agora? Não sei...só se for rápido...
Tapou o bocal e disse, com um ar aborrecido, dirigindo-se à esposa: «É o Jacinto. Precisa de ajuda para resolver um problema com um carro que temos de entregar logo de manhã.»
A mulher encolheu os ombros e, dando meia volta, começou a pôr a mesa.
- Vou já aí! - disse, de novo para a interlocutora que estrebuchava do outro lado («'Tás parvo? O que é que está acontecer aí?...Álvaro!») Deve ser simples. Tu é que não percebes nada da parte eléctrica. Devias de me ter dito antes de vir para casa. Se fico sem jantar, desconto uma bifana do teu ordenado.
Ignorou as imprecações da cunhada - Vou já! - gritou com ar irritado. - Atirou com o telefone e dirigiu-se à porta - Vou tentar não demorar, filha... - e acenando na direcção do sofá, onde o filho continuava imóvel - Ainda não acabámos, menino. Não te safas assim!
Desceu a escada a correr, antes de ouvir o telefone tocar de novo.
Pois...não tinha sido inteligente...mas, que fazer? Não conseguia achar muito mal o que o miúdo fazia...Mas, como ia enfrentar a mulher?... Agora ia comer qualquer coisa ao bar da malta e demorar até, talvez, estarem todos a dormir. Podia ser que o miúdo se emendasse, amanhã..."

Segundo a bibliografia comentada de Saramago, inserta na revista especial Visão/JL, o seu livro infantil A Maior Flor do Mundo (2001) parte de duas perguntas: "E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender o que há tanto tempo têm andado a ensinar?"

*O título alude a uma série televisiva sobre um grupo de jovens que, privados dos pais, por morte num acidente, têm de tomar um conjunto de atitudes muito contraditórias com o que sentem no seu período de crescimento.

domingo, 27 de junho de 2010

Para todos os «Maestros» que vão enfrentando as dificuldades de dirigir a Orquestra!

Ensinar é muito diferente de vender frigoríficos e ventoínhas*

"Quando se concede priporidade à vocação moral e ética do ensino, torna-se imediatamente claro que a importação de métodos empresariais de pesquisa, prestação de contas e pagamento em função do desempenho é particularmente inadequada nesta actividade." (p.221)

"Para apreciar verdadeiramente estas mudanças e reformas, devemos ter em conta este sinal claro: foram os nossos professores mais criativos e voluntariosos quem mais se desencantou com as novas prescrições e orientações." (p. 146)

"Nas escolas, trata-se de um empreendimento inextricavelmente humano e pessoal. Nesta caso, o desespero e o desencanto conduzem directamente a um ensino sem inspiração e ao desperdício de oportunidades de vida dos nossos alunos." (p. 135)

Ivor Goodson, Conhecimento e Vida Profissional: EStudos sobre Educação e Mudança, Porto Editora, 2008

*sem qualquer desrespeito pelos profissionais de comércio de aparelhos de refrigeração.

sábado, 26 de junho de 2010

É isso aí...

Minha medida

Meu espaço é o dia
de braços abertos
tocando a fímbria de uma e outra noite
o dia
que gira
colado ao planeta
e que sustenta numa das mãos a aurora
e na outra
um crepúsculo de Buenos Aires

Meu espaço, cara,
é o dia terrestre
quer o conduzam os pássaros do mar
ou os comboios da Estrada de Ferro Central do Brasil
o dia
medido mais pelo meu pulso
do que
pelo meu relógio de pulso

Meu espaço - desmedido -
é o pessoal aí, é nossa
gente,
de braços abertos tocando a fímbria
de uma e outra fome,
o povo, cara,
que numa das mãos sustenta a festa
e na outra
uma bomba de tempo


Ferreira Gullar

colhido em poemblog e postado aqui, em homenagem ao «espírito brasileiro» de que tanto gosto.

E, para completar, «fulanizar» era a palavar do dia no Priberam, a que tive de recorrer, por causa de uma dúvida quanto a empregar, na escrita, um termo mais popular.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Insónia

«Esta noite, não é noite
não é noite de dormir.
Nem esta, nem a que vem
nem aquela que está pra vir.
As nossas noites, nunca serão noites
de dormir...»

Gabriela Schaff

Distraída ou Selectiva?

Cada vez mais me convenço que a nossa Memória tem diferentes idades (Idades Memoriais...dava um título bonito para qualquer coisa...).
Há uma idade especial para fixar os nomes dos artistas: dos cantores, dos actores...que nos marcam...ou não...
Ora bem, vamos ver se eu me consigo explicar: «dou-me conta» de que, quando era mais nova, fixava com muita facilidade os nomes dos artistas do momento (os que gostava, os que não gostava e os que «tinha dias») e agora só fixo - e com esforço - aqueles que me marcam, a quem tento, conscientemente, homenagear com a minha memória, com evocações frequentes, com referências em público. Depois reparo que os meus sobrinhos e os meus alunos fixam tudo com facilidade, como eu fazia antes. Será que há mesmo uma idade em que absorvemos quase toda a informação e outra em que a filtramos? Estarei a «perder qualidades», por já não fixar tudo, ou a «ganhar competências», retendo apenas o que me interessa? Distraída ou selecctiva?...

E perguntam vocês, porque me deu este ataque de verborreia?
Eu explico (só estava mesmo à espera que perguntassem):
Está aí, em força, a promoção do álbum de regresso de Rita Guerra, artista que me agrada, sem me fascinar. Na respectiva promoção do CD passa frequentemente na rádio a sua música de lançamento «Eu só quero».
Sempre que a ouço tenho a sensação de que ela não está certa, de que aquela música me evoca outra voz, outra toada, uma cadência lânguida e quase miada...e desperta em mim a memória de outros versos:

«Põe os teus braços à volta de mim
leva-me ao cinema, em sessões contínuas...»

Esta música foi-me embalando e embalando, até «acender na minha memória» o nome de Gabriela Schaff, de que eu achava que me tinha esquecido completamente (quer dizer, não achava, porque se achasse era porque sabia...adiante!)
Feita a pesquisa na net lá descobri a moça - um pouquito mais velha que eu - que vive actualmente em Zurique.

Não consegui encontrar o video da canção que me embala, mas encontrei esta pérola - a preto e branco - que não sabia nada que tinha na memória, mas que saiu do armário, limpinha e a brilhar, fascinando-me, mais uma vez, com as capacidades mnemónicas.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Fitas

«Para que sejas uma boa contadora de histórias» é uma das minhas frases preferidas das que estão inscritas nas minhas fitas de licenciatura (também porque, na altura, nutria uma paixão, que me consumia inteirinha, pelo dono da mão que escreveu aquela frase).

Estou numa fase da minha vida em que preciso e quero que essa frase/desejo, seja mesmo verdade!

Por isso, onde quer que estejas, preciso que sejas o meu Fado Padrinho e me dês o condão, com que me brindaste em palavras, num outro momento muito importante da minha vida.

SARL - a toada de um poema

Ontem, vim aqui, já «tarde da noite», antes mesmo de ir dormir, e vi o poema e ouvi o poema. Não conhecia. Gostei muito.

E recordei a imagem do poeta, entregue aos seus versos na televisão. Creio que continuei a vê-lo depois da sua morte: guardo-lhe sobretudo o jeito arrabatado e a entrega às palavras, ditas com amor e raiva, muitas das quais não me era compreensível o sentido.

Depois fomo-nos deitar.

É sempre um momento de alegria se eu deixo as gatas aninharem-se na minha cama. Ontem lá deixei a porta aberta e senti-as subir - uma de cada vez - para os seus lugares favoriros: uma nos pés, a outra no meu lado esquerdo. Ficamos as três quietinhas por uns momentos - elas a fazer rom-rom, eu a embalar-me naquele carinho felino, tão quentinho.

Elas ronronam de forma diferente, de acordo com as suas personalidades: a Menina, mais tímida e recatada, ronrona sempre na mesma melodia; a Shaneka, exuberante e repentina, protagoniza verdadeiras óperas e sinfonias, com um ronronar desmedido e sem ritmo certo. Depois aquieta, mas primeiro, tem de dar conta da sua presença e da sua satisfação numa forma quase agressiva; parece que tem medo que eu não dê pela sua presença...

Uma festa com o pé numa, um afago com a mão na cabeça de outra, são as boas-noites transmitidas no nosso triângulo amoroso.

Depois o quarto vai mergulhando mais fundo, na escuridão, os sentidos vão adormecendo um a um, com breves momentos de semi-inconscoência...E foi num desses momentos que eu reparei (reparei mesmo?!) que a minha gata mais discreta recitava em rom-rom o poema de Ary dos Santos: SARL; SARL; SARL; SARL; repetia cadenciadamente, embalando o berço da infância em que sempre me deito quando adormeço feliz.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

«Cada vez sobra mais mês no fim do dinheiro»

terça-feira, 22 de junho de 2010

Epidemias de Verão

"- Ó D. Dulce, eu com o abatanado quero dois pacotes de açúcar, se faz favor.
- Tem razão. Levo-lhe já o segundo.
A mulher beberricava um chá, esticando a ponta dos beiços. Já nos temos cruzado pelo café, mas nunca trocámos mais que uma «boas tardes».
- A senhora não sabe que o açúcar engorda?
- Na minha família sempre me ensinaram a aproveitar as minhas qualidades: a magra não chego e para gorda já vou bem lançada.
A criatura ficou boquiaberta a olhar para mim, o que me deu ensejo para acrescentar: «A minha mãe quando ficou magra morreu. Não me parece um exemplo a seguir.»
Ela continuava a fitar-me e por fim disse: «Não é nada comigo...»
«Pois não!», rematei, com um sentimento vencedor, enquanto mexia o líquido já adoçado com dose dupla de açúcar."
Francamente! Sempre há gente com uma lata! Agora então, que chegou o Verão, vem aí aquela epidemia de anorexia mental que me irrita...só por saber que vem aí. O melhor é cortar o mal pela raiz!

Poder Temporal e Poder Espiritual

Ainda imbuída do espírito da reconstituição histórica de domingo e do choque pela reacção da Igreja (a Santa Sé!) à morte de Saramago, mas sem tempo para escrever muito, lembrei-me que tinha aqui na estante um livro de trovas populares sobre a Gerra Civil, que acaba por versar estes temas todos ao mesmo tempo.
É a terceira edição do Cancioneiro Popular Político, de A. Tomás Pires, integrada na colecção Reaver (só sobre este título/tema apetecia-me falar tanto...) e comprada na Amadora uma Livraria que se chamava Abril/Abril (já fechou, claro!)

Trovas dos Liberais:


"O cheiro de um só corcunda
Enterrado na igreja,
É capaz de empestar
Quanta gente nela esteja

(...)

Até os próprios pastores,
Encostados ao bordão,
Gritam todos à porfia:
Liberal Constituição

(...)

Senhor padre, largue a moça,
Não seja tão maganão,
Pegue nas contas e reze:
Liberal Constituição.

(...)

Com carne, pão e vinho
Sustenta-se o Miguelinho
Sem carne, vinho e pão
Sustenta-se a Constituição."


(este último merecia umas observaçõezitas, mas pode ser que alguém as faça por mim...)

Trovas dos Miguelistas:

"(...)

Ando triste pelos montes,
Nem por isso passo mal,
Antes triste realista,
Que alegre const'cional.

(...)

Quando o Silveira se viu
Entre o meio dos liberais,
Prantou as mãos ao céu:
«Ó meu Deus, que determinais?»

Os anjos lhe responderam:
«Silveira, não tenhas medo,
Podem mais as Cinco Chagas,
Que as constituições de Pedro.»

(...)"


Eu sei, eu sei, sou parcial: coloquei uma trovazita a mais nos liberais...

Além Alma

(Uma grama depois)

Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
Não tem vaga neste lugar.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
eu estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?


Paulo Leminski (colhido em poemblog)

domingo, 20 de junho de 2010

Tenho uma borboleta azul na garganta
que esvoaça no silêncio do telefone

Triste Passeio

Vou pela estrada, sozinha.
Não me acompanha ninguém.
Num atalho, em voz mansinha:
"Como está ele? Está bem?"

É a toutinegra curiosa:
Há em mim um doce enleio...
Nisto pergunta uma rosa:
"Então ele? Inda não veio?"

Sinto-me triste, doente...
E nem me deixam esquecê-lo!...
Nisto o sol impertinente:
"Sou um fio do seu cabelo..."

Ainda bem. É noitinha.
Enfim já posso pensar!
Ai, já me deixem sozinha!
De repente, oiço o luar:

"Que imensa mágoa me invade,
Que dor o meu peito sente!
Tenho uma enorme saudade
De ver o teu doce ausente!"

Volto a casa. Que tristeza!
Inda é maior minha dor...
Vem depressa. A natureza
Só fala de ti, amor!


Florbela Espanca (1894-1930)
colhido em poemblog

sábado, 19 de junho de 2010

Faleceu Ontem José Saramago, com 87 anos

Intimidade

"No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade"


José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

sexta-feira, 18 de junho de 2010

(...)

"Estavam sentados no muro que dividia o mar e a terra, ou melhor, a areia e o asfalto, que a Foz do Arelho estava cada vez mais assoreada. O mar quedava-se lá longe, com as ondas a quebrar sem susto.
Ela deixou-se escorregar até ficar encostada no ombro dele. Ele estendeu os braços e envolveu-a, num carinho fôfo e quente, como os xailes traçados das mulheres da Nazaré.
- Em que pensas? - perguntou-lhe ao ouvido.
- Em nada - respondeu ela, com os olhos fechados - Deixo-me mergulhar neste momento, como um biscoito no café com leite.
Ele achou-lhe graça e mordiscou-lhe a orelha."

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Literatura popular

As palavras que se guardam nem sempre são bonitas.

E vou já fazendo este aviso de início, pois conheço alguém (que faz anos hoje) que não vai gostar nada de ler isto, e, se comentar, vai ser com os cantos da boca franzidos em desagrado e dirá "Não achei nada bem; não é próprio!"

Colocada então a bolinha vermelha para os impressionáveis, as palavras de que me lembrei hoje, guardo-as há muito tempo: desde que estudava no Liceu da Amadora. Estavam inscritas na porta de uma das casas de banho do polivalente e, compreendo hoje, que se inserem em toda uma literatura espontânea, de carácter popular, que escolhe como suporte, as divisórias que abrigam os momentos de intimidade, aflição e alívio de cada um.

A quadra é então a seguinte:

"Quem diz que cagar não custa
É porque pouco tem cagado
Quando o cagalhão é grosso
Vê-se um gajo atrapalhado"


Parece-me genuína, espontânea e verdadeira. Recordo-a em momentos a propósito, claro. (Ai, Amiga! Não leias mais!)

Depois, a propósito de tudo isto (e porque as memórias são mais como as ginjas do que como as cerejas, mas esta fica para desenvolver outro dia) recordei-me de um livro que dei a uma amiga no seu aniversário. Chamava-se O Guardador de Retretes e era, nem mais nem menos, que uma recolha de espólio literário deste género. Li-o todo antes de lho oferecer e como a quadra citada não constava, foi a minha escolhida para dedicatória, escrita por minha mão.

Éramos então jovens licenciadas; ela de Sociologia, onde aquele tipo de pesquisa, fazia todo o sentido, achava eu.

Demasiado dependentes das opiniões das mães, na altura, ela teve de comprar uma moldura barata, para dizer à D. Olga que tinha sido a minha prenda, pois achava que a mãe não me iria olhar com bons olhos depois de tal presente.

A minha mãe foi dizendo, convenientemente "Que disparate! Só tu...", mas leu muitas das páginas sobre o meu ombro, incitada pelas minhas gargalhadas.

Já agora aqui fica a referência encontrada agora na net: o autor é Pedro Barbosa e a publicação de 1976 (embora eu só o tenha comprado mais de uma década depois).

A vida atirou-nos para longe e hoje não sei nada dessa amiga. Mas que nos divertimos muito e com literatura «de nível» é um facto incontestável.
"Roendo uma laranja na falésia
Olhando à minha frente o azul escuro
Podia ser um peixe na maré
Nadando sem passado nem futuro"


Porto Côvo (Rui Veloso/Carlos Tê)

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A tijela voadora

Isto da Felicidade é uma coisa com muito pouca explicação. Há momentos em que parece que temos tudo para ser felizes e a chamazinha não se acende, sem se vislumbrar razão para essa falta e outros, singelos, sem nada de especial (aparentemente) em que nos sentimos a irradiar luz.

Hoje à tarde eu era completamente feliz. O sol aquecia-me os ombros, a saia longa do vestido roçava-me ondulantemente os tornozelos, em cada mudança de pedal, e eu volteava, volteava, nas curvas da estrada entre a Marinha Grande e S. Pedro de Moel. De repente, eu já não estava ali, mas num longínquo Verão da minha adolescência, quando os carroceis acamparam na pequena aldeia da zona de Sintra, para as festas anuais. E eu volteei, volteei como nunca mais, numa tijela voadora.

Éramos inseparáveis as três. Elas as duas, irmãs, residentes na aldeia, eu, a forasteira de fins de semana e férias. A festa anual era uma emoção! O Rossio ficava cheio de cores e som e o cheiro do algodão doce enchia o ar durante seis ou sete dias. Naquele ano estávamos mais crescidas, sentíamo-nos muito crescidas.

O rapaz do carrocel encantou-se pelos cabelos louros da Amélia e, com uns olhos doces, pedia-nos para vir à feira, para estar na feira.

Tinha os cabelos aos caracois negros e usava sempre o mesmo blusão de ganga, já muito ruço e pequeno demais. Também ele estava a crescer...

Indicava-nos a tijela mais veloz e passava toda a volta ali perto, empurrando, dando velocidade, criando emoções que nos saíam em gritinhos agudos de donzelas indefesas.

A Amélia queria fazer-se esquiva, que parecia mal, que os pais iam trancá-la em casa...e fugia do carrocel, com os olhos baixos. Eu, ficava para trás e, furtivamente - num gesto com sabor a aventura dos livros que eu lia - ele deixava nas minhas mãos muitas senhas de cartolina, que nos garantiam muitas e muitas voltas de felicidade. Para todos.

Hoje senti-me transportada àquele carrocel, àquele Verão, à assimetria daquela situação de garotos que, todos da mesma idade, enfrentavam situações tão diferentes: ele, trabalhava sem pausas, dormia em caravanas e trocava senhas por gritinhos de emoção, nós, de férias, a crescer com a segurança da cama fôfa, da sopa quente, dos mimos dos gelados e da praia.

Foi um Verão de emoções, de olhares doces, de cumplicidades fugazes...como aquelas voltas de carrocel, numa tijela voadora.

Que será feito de todos nós? Eram 6 horas. Estacionei em frente ao mar. Completamente feliz!

terça-feira, 15 de junho de 2010

Ritmos novos, mensagens intemporais

"Mais um dia, mais um mês, mais um ano
Pouco a pouco, de repente o tempo voa
Estamos cá e amanhã estivemos
Perdemos tempo, lamentamos e queixamos
Acordamos mal dispostos sem vontade e nada fizemos
Life's a bitch and then you die
Aproveita, não te queixes, dá graças ao que tens
Há quem nada tenha
Damos tanta importância a coisas que nada importam
De repente alguém nos deixa e vemos que temos senha
Estamos todos na mesma fila, não sabemos o nosso nome
Nada é certo, amanhã pode não chegar
Tão fácil falar o que é difícil é fazer
E quando as coisas não tão bem podem piorar

Ei! Vive a vida
Tira proveito até ao fim da corrida
Põe-te de pé e grita bem alto
Eu estou vivo e vou viver a vida!

Vive a vida
Tira proveito até ao fim da corrida
Põe-te de pé e grita bem alto
Eu estou vivo e vivo!

A ver o copo meio cheio, meio todo, falta pouco
É ver o lado de lado da mesma moeda
Planos traçamos mas depois adiamos, desistimos
E a vida é sempre a mesma merda
Ninguém te ajuda quanto tu não te ajudas
E não fazes nada para mudar a tua vida
É bom sonhar mas é preciso acordar para concretizar
E encontrar uma saída
Falo contigo e comigo e para todos
Os que vivem o presente com medo do futuro
Nós não pedimos para nascer, já cá estamos
É viver porque amanhã é um tiro no escuro
É relativo, o teu drama mais terrível
Ao pé do drama do outro parece um filme para crianças
A vida dá-nos prendas e as vezes só damos valor
Quando essas prendas já não passam de lembranças

Ei! Vive a vida
Tira proveito até ao fim da corrida
Põe-te de pé e grita bem alto
Eu estou vivo e vou viver a vida!

Vive a vida
Tira proveito até ao fim da corrida
Põe-te de pé e grita bem alto
Eu estou vivo e vivo!

Tem calma, não te estiques, abranda o carro, dá espaço
Pé pesado dá multas mas também dá condolências
Faz brindes bebe shots
Parabéns, felicidades, tás feliz?
Mantém-te assim sem imprudências
Vai de táxi, vê se dormes, olha a ressaca
Acorda bem, toma banho, desperta e faz-te à luta
Todos temos que partir um dia
Vamos parar mas a parar, ao menos que não seja à bruta
Há quem pense que é de ferro
Que só acontece aos outros
Não te enganes, pensa bem, o outro dia és tu
Dei por mim capotado, vi a vida por um fio
Flash back na A1 eu e o Xuxu
A gritar tipo gajas, grande susto
Não foi desta, estamos bem e a esperar pela assistência
Moral da história: vive a vida, aproveita
Porque a vida dá voltas e não avisa com antecedência

Ei! Vive a vida
Tira proveito até ao fim da corrida
Põe-te de pé e grita bem alto
Eu estou vivo e vou viver a vida!

Vive a vida
Tira proveito até ao fim da corrida
Põe-te de pé e grita bem alto
Eu estou vivo e vivo!"

Boss AC, Estou Vivo

Letra (com erros ortográficos) e vídeo (com a linguagem mais livre omitida!) em http://letras.terra.com.br/boss-ac/1459721/

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Gostinho

"Gostamos de quem gosta de nós. É um cliché. Mas a pura verdade. Gostamos de quem gosta de nós. Nada a fazer. Contra a estima, a admiração, a simpatia, o respeito, o afecto, não há nada a fazer. Uma pessoa gosta de nós e exerce o seu direito potestativo de nos fazer gostar também. Desse modo, apesar de não escolhermos as pessoas de quem gostamos, acabamos por ser escolhidos pelas pessoas que gostam de nós.
Claro que este «gostar» é meramente amigável e social(...). Esse «gostar» não vale, note-se, para o amor."


Mexia, Pedro, "Gostar" in Primeira Pessoa, p. 46

domingo, 13 de junho de 2010

Mensagem

"Você nasce sem pedir e morre sem querer. Aproveite o intervalo!"

(Recebida por email, de alguém que se preocupa comigo; difundida por blogue, para aqueles com quem me preocupo)

Anónimos Famosos

Por causa da brincadeira do «comentador que se identifica como anónimo» recordei-me de um episódio «educativo» que vivi há anos.

De visita de estudo ao Museu Nacional de Arte Antiga, tinha construído um guião de observação que me garantia a atenção das crianças a certos pormenores, pelo menos áqueles sobre os quais tinham de elaborar respostas.

A visita correu bem, os questionários pareciam todos preenchidos e foi com uma certa esperança que no sábado seguinte me dispus a avaliá-los. Qual não é o meu espanto ao ver como resposta maioritária para a questão: Indica o nome de um pintor do séc. XVI, as palavras "Autor Desconhecido", seguidas de perto por "Anónimo".

E a guerra que foi para eles perceberem que não podia ser?! Pois se era o que lá estava indicado! "Professora! Dizia assim na etiqueta. Autor: Desconhecido".

Recortiçando

Quem sabe o que é um escanção? (em versão alentejana)

Hoje é o Dia Dele

"Santo António nasceu em Lisboa, em 1195 e foi baptizado com o nome Fernando de Bulhões e Taveira de Azevedo e faleceu em Pádua a 13 de Junho de 1231, data em que se assinala o seu dia.
Com 15 anos ingressou num convento de Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, mas é em 1220, com 25 anos que se torna franciscano e muda o seu nome para António. Conhecido pelo seu amor aos pobres e pela sua capacidade para converter os heréticos, os seus dotes de orador conduziram-no às cátedras universitárias onde ensinou teologia. Tornou-se o primeiro franciscano “Doutor da Igreja” (título oficialmente reconhecido pelo Papa Pio XII em 1946) e foi porta-voz da Ordem de S. Francisco junto do Papa, que desenvolveu por ele grande admiração.
Morreu em Pádua, com 35 anos e detém o recorde de canonizações da Igreja: foi considerado Santo a 30 de Maio de 1232, menos de um ano após a sua morte!
Desde 1934, por declaração de Pio XI, é considerado segundo padroeiro de Portugal, a par de N. Sra. da Conceição.
Com uma vida e obra notáveis, Santo António ficou associado na tradição popular ao amigo dos pobres, à solução para encontrar objectos perdidos e à felicidade dos casais. Ao que parece os seus dotes oratórios foram utilizados frequentemente para conciliar casais (Santo António foi assim o nosso primeiro conselheiro matrimonial!)
O carinho que o povo tem por ele permite certas liberdades e tropelias como roubar o menino da estátua até conseguir o pedido (prática muito comum no Brasil e que conduziu a que o Menino Jesus, para evitar sequestros, fosse colado à estátua do Santo) ou colocar a estátua de cabeça para baixo até obter o pedido (forma de pressão que me parece, para além de anticonstitucional, muito pouco cristã) e a realização de festas populares em torno de fogueiras."


Extraído de uma crónica que em tempos escrevi sobre o Dia dos Namorados, com o tema Valentim versus António.

sábado, 12 de junho de 2010

Os Reis da Cortiça

"«O rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia.» Todos conhecemos esta história, aquilo que talvez não saibamos é que, qualquer que fosse a garrafa do Rei da Rússia, a rolha que o rato roeu era, seguramente, portuguesa.
As rolhas portuguesas são as melhores do mundo."

(Coelho, Carlos, Portugal Genial, p. 148)

Em centenário da República e com o ecletismo que nos caracteriza, celebremos pois, a Monarquia da Cortiça. E salta a rolha, que é festa!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Paisagens...

Professoras chegadas à terra de novo, víamos-lhe mais defeitos que qualidades. Sobretudo aos fins-de-semana, quando a vila ficava deserta perante a debandada da população para a beira-mar, ali tão perto.
Sem carro, passeávamos frequentemente as duas, tentando encontrar substitutos para as palavras monotonia e marasmo, congratulando-nos por não haver poluição, buzinadelas constantes e quase não ser preciso olhar para a estrada, na segurança da passadeira.
Claro, isso eram vantagens, mas, lá no fundo, ficava por dizer, o medo de nos estarmos a perder, enterradas na pacatez, felizes com a ausência dos bulícios em que havíamos sido criadas: ela em Coimbra, eu, perto de Lisboa.
O Verão sumiu-se pelo Outono dentro e as folhas começaram a cair, a cair, num tapete muito mais fofo do que os de lá, nas nossas terras de asfalto. Aos fins-de-semana, percorríamos os mesmos caminhos, mas passeávamos no meio das folhas, com ruído; os sapatos desapareciam no amarelo-castanho e, no fim das calças de ganga só se via o mar de folhas, estaladiças…a nossa neve outonal crocante! Tinha a sua graça.
Depois o vento ficou cada vez mais frio e as folhas desapareceram, deixando as árvores nuas contra o céu cinzento, frio, de chumbo…tétrico.
Por essas alturas eu também já tinha percebido que as nossas conversas estavam a ficar tão nuas como as árvores e os silêncios eram cada vez maiores, dando um ar ainda mais soturno aos nossos passeios de fim-de-semana. Para mais eu não a considerava propriamente confidente e não me apetecia falar-lhe da minha vida. Íamos arrastando os cafezinhos de fim-de-semana pontuados por uns «cá estamos…», «os putos estão cada vez piores…», «a papelada da escola é cada vez mais…», «quando eu era aluna achava que os professores tinham as mesmas férias que nós…» e outras trivialidades, no mesmo tom, que, quem me conhece sabe bem que não é nada meu. A rapariga deprimia-me. Via sempre o lado pior de tudo e eu estava a ficar sem paciência para ela (sentimento que se calhar era recíproco, sei lá eu…)
Naquele sábado, depois de almoço, ela lá telefonou, como acontecia sempre, quinzenalmente, no fim-de-semana em que não ia a Coimbra. “Pois que sim…estava…podíamos tomar café…desço já.”
O dia estava particularmente invernoso: era final de Novembro, o frio era cortante, o céu opressivo, as árvores nuas de dar pena.
Lá íamos nós, no passo manso que me irritava, ainda por cima porque eu, interiormente, estava num alvoroço!... Mas não era nada que fosse partilhar com aquela personagem sorumbática, que passeava comigo por falta de opções.
Parámos no meio do parque de estacionamento, agora vazio, com as raízes das árvores a rebentar o alcatrão e preparávamo-nos para nos despedirmos. Instalou-se um daqueles silêncios enervantes… E eu, fixo o olhar nos galhos da árvore e nunca tinha visto paisagem tão bonita. Salta-me do peito para a voz: “Esta árvore é tão linda, não é?”
O olhar que a outra levantou dos sapatos, rapidamente passou de assombrado e incrédulo a uma das raras expressões risonhas que lhe vi: “Tu estás apaixonada!” – gritou-me com uma força que eu não sabia que ela tinha.
Corei. Baixei os olhos. Balbuciei qualquer coisa…
E ela, com uma energia que eu desconhecia, sacudia-me insistentemente: “Quem é? Quem é? O que foi que aconteceu? Deixa-te de coisas: só um coração apaixonado acharia esta árvore bonita.”
Acabei por confessar: “Eu e o Vítor beijámo-nos ontem…”- confusa de não conseguir esconder os sentimentos e confusa por não compreender…eu só tinha dito que a árvore era bonita…e era…a árvore mais bonita que eu já vi! Não sabia como é que a minha colega não via a beleza da árvore…
Aliás, essa árvore deve ter sido removida, pois já passou tanto tempo e nunca mais a vi, assim tão linda!

É isso aí...

" (...)

Eu não sei parar de te olhar
Eu não sei parar de te olhar
Não vou parar de te olhar
Eu não me canso de olhar
Não sei parar
De te olhar

É isso aí!
Há quem acredite em milagres
Há quem cometa maldades
Há quem não saiba dizer a verdade

(...)

Não vou parar de te olhar!"


Composição: Damien Rice - versão: Ana Carolina
som, letra e imagem em:
http://letras.terra.com.br/ana-carolina/258918/

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Os Desesperos do Herói do Dia

"O dia em que eu nasci, morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!"


Luiz Vaz de Camões

Interessantes discussões sobre este soneto em http://dererummundi.blogspot.com/2007/06/o-primeiro-aniversrio-de-cames.html

Pobre Camões! Se ele soubesse tudo o que se diria e se usaria sobre ele!...
E Viva Portugal: «uns vão bem, outros mal»!

Que Palavras Guardamos?...Isso é outra História!?...

"As fontes não «falam por si próprias» e nunca falaram. Falam por outros, já falecidos e desaparecidos para sempre. As fontes podem ser vozes - no plural - que sugerem direcções e levantam questões que conduzam a fontes adicionais. Falta-lhes porém, vontade: ficam vivas quando o historiador as reanima. E embora as fontes sejam um início, o historiador está presente antes e depois, utilizando competências e fazendo escolhas." Arnold, J. H., Compreender a História, (p. 78)

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Os escombros da realidade adentro das brumas da minha memória

Cada vez me interesso mais pela Memória e pelas Memórias Individuais.

Guardo alguns livros de memórias, em que me perco, por vezes devagarinho, por vezes sôfrega, procurando resgatar, com a memória dos outros a minha própria memória, absorvendo estilos e modos de relatar memórias. Talvez um dia pense em escrever as minhas...talvez, talvez seja um interesse egoísta, de encontrar inspiração. Não sei... Mas, sobretudo, fascinam-me - cada vez mais - as capacidades e as cambiantes da memória de cada um.

Pequenas Memórias, de José Saramago, é um desses livros-recurso, com que vou pincelando os meus dias de uma ou outra linha das memórias de outros, em tempos em que é a memória colectiva que absorve os meus pensamentos mais sérios (ou mais profissionais? os outros não deixam de ser sérios,também).

"Já não existe a casa em que nasci, mas esse facto é-me indiferente porque não guardo qualquer lembrança de ter vivido nela. Também desapareceu num montão de escombros a outra, aquela que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais íntimo e profundo, a pobríssima morada dos meus avós maternos, Josefa e Jerónimo se chamavam, esse mágico casulo onde sei que se geraram as metamorfoses decisivas da criança e do adolescente. Essa perda, porém, há muito tempo que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder reconstrutor da memória, posso levantar em cada instante as paredes brancas, plantar a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a cancela do quintal onde um dia vi uma pequena cobra enroscada, entrar nas pocilgas para ver mamar os bácoros, ir à cozinha e deitar do cântaro para o púcaro de esmalte esborcelado a água que pela milésima vez me matará a sede daquele Verão." (p. 18)

É verdade: o "poder reconstrutor da memória" faz-nos viajar. A menos que outras memórias se interponham. E, nesse sentido, tenho inveja de Saramago. As ruínas das duas casas em que habitei enquanto criança e adolescente impõem-se às minhas memórias. Já não consigo imaginar a minha avó à janela, porque as paredes esventradas do prédio e o cadeado que o portão ostenta para evitar o alojamento dos sem-abrigo, hoje, me embaciam a memória de antes. Não consigo imaginar a casa como era. Tenho por vezes sonhos tristes com a casa em que nasci, porque ela aparece em toda a sua decrepitude e perigosidade, no estado cada vez mais degradado que exibe. O presente atrapalha as minhas memórias. Quem me dera que as casas tivessem desaparecido para se manterem intactas, sempre, na minha memória, para não criarem escombros e ruína em memórias que deveriam ser sempre límpidas e soalheiras.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Ética e Política

"A independência não é uma abdicação, mas a neutralidade é uma falta, grave, em relação aos deveres de cidadania. Não é por acaso que Dante, no Inferno, reservou os lugares mais tenebrosos para aqueles que se mantiveram neutros em tempo de crise moral."

Grilo, E. Marçal, Se não Estudas Estás Tramado (p. 149)

Exausto

"o parafuso que se apaixonou pela rosca sem-fim"

Georges Najjar Jr., Desaforismos

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Antídoto

Vai-me hoje um negrume na alma, que não consigo compreender.

Até porque, se fizer aquelas contas entre o que foi bom e mau no dia, o saldo é positivo, mas...pronto...vá-se lá tentar perceber a alma: hoje está de cortina preta, não há nada a fazer.

Não há...quer dizer...eu não sou de entregar os pontos assim. Eu vou fazendo tudo o que posso para não sucumbir a maus pensamentos. Eu sou daqueles que trabalham muito pelo sorriso, desde que me lembro.

E então, lá fui à procura de um antídoto, para as notícias colhidas na televisão sobre a nossa economia.

Na economia eu tenho uma grande vantagem: não percebo nada! Por isso é fácil decidir: entre um discurso optimista e um pessimista, ambos verdadeiramente inacessíveis para mim, escolho o melhorzinho (assim me fosse possível manter a esperança no campo da educação...)

Portanto, cá vai, esperando que o homem tenha razão:

"Portugal foi, a par da Irlanda, da Suécia e Reino Unido, um dos países pioneiros do mundo a criar, em 1996, uma agência de gestão da dívida pública, o Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP), dando um claro exemplo de ousadia face à mentalidade dominante na Administração Pública e de um pacto de regime, que colocou os interesses do Estado acima das questões partidárias.
(...)
Constituímos um «case study» internacional nesta matéria, somos realmente bons gestores da nossa dívida pública. Soubemos, rapidamente, recuperar do isolamento do passado, ajudámos a definir os «standards» internacionais e colocámos Portugal como um país sério e muito credível neste tão sensível e importante mercado."
(A Gestão da Dívida Pública, Janeiro de 2005)

Sim, sim, tem uns aninhos, o texto, mas continuamos a invocar textos pessimistas centenários, porque não podemos reler um texto optimista com uns aninhos? Há sempre duas perspectivas para as coisas. Esta não vende jornais, mas faz parte de um livro, que quem me conhece bem, me ofereceu, para que eu possa - com citações apropriadas - remar contra as depressões (as minhas e as dos outros que por aí andam, neste país - de novo - cinzentão).

O texto é do livro Portugal Genial - que já aqui referi - da autoria de Carlos Coelho, que faz a compilação das suas crónicas publicadas no Diário Económico, em 2004-2005. Tenhamos fé e espírito positivo!...

domingo, 6 de junho de 2010

Temporais de Palavras

"O tempo pergunta ao tempo
quanto tempo o tempo tem
e
o tempo responde ao tempo
que o tempo tem o tempo
o tempo que o tempo tem"

Eu gostava muito de escrever sobre o tempo.
Acho um tema fascinante. O tempo cronológico, o tempo mitológico, o tempo cíclico, o tempo metafórico...«por todos os séculos e séculos...» Mas não tenho tempo.

Lembro-me que, há quatro anos, andava tudo "açudado" a falar do número da besta: 06/06/06! Invocando interpretações bíblicas e razões escatológicas prescrutava-se o tempo, a ver se vinha lá o fim dos tempos.

A seu tempo, o tempo prova-nos que estas questões temporais são temporárias, cíclicas, passageiras e omnipresentes, por paradoxal que isso pareça.

Acho, de facto, o tema do tempo fascinante. Acho mesmo que é um tema inesgotável; ao contrário do próprio tempo, que se esgota, para cada um de nós, parecendo-nos a vida uma grande ampulheta e os grãos de areia os nossos dias...

Há sempre a esperança de virar a ampulheta e começar tudo de novo, outra e outra vez...menos escatológica, mas não menos religiosa esta perspectiva. Será o tempo inesgotável, irrepetível?

Adoraria discutir estas questões, mas não tenho tempo!

sábado, 5 de junho de 2010

Dois Loucos no Bairro

"um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também"

Paulo Leminski(1944-1989), colhido em poemblog

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Pied-de-nez

"Lá anda a minha Dor às cambalhotas
No salão de vermelho atapetado -
Meu cetim de ternura engordurado,
Rendas da minha ânsia todas rotas...

O Erro sempre a rir-me em destrambelho -
Falso mistério, que não se abrange...
De antigo armário que agoirento reage,
Minh'alma actual o esverdinhado espelho...

Chora em mim um palhaço às piruetas;
O meu castelo em Espanha, ei-lo vendido -
E, entretanto, foram de violetas,

Deram-me beijos sem os ter pedido...
Mas como sempre, ao fim - bandeiras pretas,
Tômbolas falsas, carroussel partido..."


Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) - colhido em poemblog
O primeiro alperce do (meu) ano!

Ficções

"Paço das Necessidades

Resistindo delicadamente às objurgatórias de D. Maria Pia, que queria absolutamente ver toda a família na Ajuda, D. Manuel vem passar aqui o resto da noite. Mas, ao chegar. não se retira para os seus aposentos. À saída do hospital, pediu a João Franco - não já como simples infante mas como regente do Reino - que fosse ter com ele ao paço, depois de convocar os altos responsáveis da polícia. E quando o chefe do Governo lhe fez notar o adiantado da hora, D. Manuel olhou-o fixamente e baixou a voz para dizer com uma terrível secura:
- Senhor Presidente, dormiu-se bastante durante todo o dia, para que sucedesse o que sucedeu. Agora, é tempo de acordar. Se o regente pode passar a noite em branco, as autoridades também podem."

João Aguiar, Seis Momentos em Tempo Real (p. 26) in A República Nunca Existiu: Antologia de Contos Sobre Um Portugal Onde o Regicídio de 1908 Falhou, Parede, Saída de Emergência, 2008

quinta-feira, 3 de junho de 2010

João Aguiar

Morreu João Aguiar. A literatura portuguesa está de luto.

Mas, como o próprio João Aguiar sabe, um escritor não morre. Para um escritor, a morte é um dos momentos da sua vida, o momento em que deixa de poder estar presente e tomar posições sobre assuntos, para ficar (apenas!) nas opiniões e situações que imortalizou nos seus escritos - o lugar que garantiu na estante da Eternidade.

Eu gosto muito de ler João Aguiar e tem sido um autor que me tem influenciado e ajudado muito:
- nas suas crónicas da Revista Tempo Livre e da Super Interesante, que me deram coragem e modelo para também eu me inspirar numa aventura cronística que durou três anos
- com a colecção infantil «O Bando dos Quatro», quando achei que era preciso incutir no meu sobrinho hábitos e técnicas de leitura
- nas suas «brincadeiras com a História», em obras colectivas como "A República Nunca Existiu", "Eça Agora" ou "O Código de Avintes"
- por puro entretenimento em livros como «O Navegador Solitário» ou «Os Comedores de Pérolas»
- numa escrita que não é História, nem Romance, mas sim uma tradução literária de temas da História muito áridos, num livro que não cansa de me surpreender: Lapedo - Uma Criança no Vale.

Alice Vieira recorda-o como «um príncipe» e eu, que nunca o conheci pessoalmente, também o via assim.

Às vezes sonhava que um dia iria conhecer pessoalmente o João Aguiar, ter coragem de lhe mostrar as minha crónicas e dizer-lhe o quanto e como me influenciou. Agora sei que ele nunca lerá as minhas crónicas. Felizmente eu guardei muitas das dele para me inspirar e tentar escrever cada vez melhor.

Na minha estante João Aguiar vai estar sempre vivo, sempre à mão, para me inspirar, para me ajudar, para me ensinar, para me acompanhar.

Não consigo não ficar triste com a tua morte física, mas sei que vou contribuir para a tua imortalidade, embora não saibas, que a mim, me ajudaste bastante.

Será que se escreve lá do outro lado?... Será que o Paraíso tem mesmo essa componente de Livraria de que falava José Luis Borges?...

Um escritor srá sempre um escritor e o João Aguiar fez muito pela literatura em Portugal, para adultos, infantil, de divulgação e soube narrar muito bem a História.

Eu tinha de fazer uma homenagem, pois as tuas palavras e o teu exemplo marcaram muito a minha vida. Eu tinha que guardar aqui estas palavras. Devia-te isso.

"Justamente, neste fim de tarde, com um Sol já a escorregar para o ocaso, uma criança decidiu partir à aventura, em sua perseguição; porque, no fundo do vale, anoitece mais cedo e para continuar a ver o Sol é preciso ir até ao alto da ribanceira. (...) E como eles são pequeninos, vistos daqui de cima! É agora que ele percebe inteiramente que a distância diminui o tamanho das coisas e das pessoas. Deste ponto onde se encontra, no topo da ribanceira, o acampamento inteiro cabe nas suas mãos. Mais uma das maravilhas que tem vindo a descobrir."
extracto de Lapedo - Uma Criança no Vale, edições ASA, 2006, p. 22

Obrigada, João Aguiar!

Feriado

DIÁLOGO

- O que é o tempo?
- Um martelo de plumas.

- O que é a vida?
- A eterna ausente.

- O que é a família?
- Uma catástrofe. Loucura circular histérica com convulsões de penitência.

- Quem é Deus?
- Um pobre diabo.

- Que faz ele?
- Sobrevive sempre às suas vítimas.

- Onde mora?
- Num tinteiro?

- O que é Portugal?
- Uma cave cheia de mofo.


Ernesto Sampaio e João Rodrigues, Cadavre exquis, in Ernesto Sampaio Feriados Nacionais, Fenda, 1999,colhido em http://ofuncionariocansado.blogspot.com/

Cruzeiro Seixas: Um Surrealista, meu conterrâneo


Era um pássaro alto como um mapa
e que devorava o azul
como nós devoramos o nosso amor.

Era a sombra de uma mão sozinha
num espaço impossivelmente vasto
perdido na sua própria extensão.

Era a chegada de uma muito longa viagem
diante de uma porta de sal
dentro de um pequeno diamante.

Era um arranha-céus
regressado do fundo do mar.

Era um mar em forma de serpente
dentro da sombra de um lírio.

Era a areia e o vento
como escravos
atados por dentro ao azul do luar.



Poema (1950) colhido em:
http://canaldepoesia.blogspot.com/2008/10/cruzeiro-seixas-poema.html

Serigrafia (2007), colhida em:

Facebook, Cruzeiro Seixas, Mestre do Surrealismo Português

terça-feira, 1 de junho de 2010

Eles merecem, mas...

Eu não percebo a loucura com o futebol.
Eu não percebo a loucura e o orgulho nacional com o Mourinho, mas, pronto´...aceito, que o homem leva longe o nome de Portugal e uma arrogância-monstra que não me parece que nos caracterize (aos portugueses, em geral, porque, claro, também há os mete-nojo).
Mas o que eu não percebo mesmo, é que ninguém comente a estranha intervenção que ele teve ontem: Eu ouvi - com estes dois que a terra há-de comer (digo eu, apontanto para os ouvidos) - que o homem disse «importante é esganar o Real Madrid», e ninguém comenta; acham todos que foi uma bela aquisição e vão pagar (principescamente) ao homem que anunciou publicamente que era importante esganá-los.
Eu, por mim, não me importo: são espanhóis; mas que é estranho, é.
E aí, até fiquei a acreditar que o homem tem coragem e carisma: ninguém lhe pega!
Problemas de viabilidade na relação amorosa tinha a mulher-a-dias que se apaixonou por um guarda-nocturno!