sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Parece Bruxedo!

"E logo hoje a minha vassoura não anda!
Já a abanei, já a virei ao contrário...nada. Parece uma vassoura normal.
Eu precisava de sair hoje! E a minha vassoura não anda!
Tenho de suportar toda a gaiatada a brincar às bruxas...Gostava de saber quem foi o idiota que divulgou as nossas tradições! (Alguma bruxinha que teve um flirt com um "civil", só pode!).
Antigamente era tudo muito mais sossegado: esta era uma noite normal para todos (menos para nós, claro, as verdadeiras).
Na minha infância (há milénios) quando ainda não estava autorizada a frequentar as nossas festas, dormia ansiosa pela manhã do dia seguinte - o Dia de Todos os Santos, em que, em bandos, corríamos as casas todas a pedir "Pão por Deus".
Era tão bom! Poucos negavam às crianças uma dádiva da época: nozes, castanhas, ou bolos, os preferidos das crianças. Algumas pessoas faziam fornadas de bolos especialmente para os meninos, que pediam candidamente "Pão por Deus", que guardavam em saquinhos de pano (a recordar piqueniques familiares) e depois dividiam mais logo, já longe dos olhares dos benfeitores.
Era uma tradição muito bonita, que aliava um espírito religioso a uma troca de mimos entre gerações.
Agora andam todos encantados com a "americanice" do Dia das Bruxas e tornam isto mais insuportável que o Carnaval (porque aí sempre há uma diversidade temática).
Também não sei o que andam a fazer os professores de História, os antropólogos e os "culturólogos" deste país, que deixaram morrer a tradição do Dia de Pão por Deus, sepultada pela importação deste...Até me custa dizer! E a minha vassoura que não arranca, para eu me poder livrar deste Carnaval ridículo, organizado por arruaceiros que não conhecem verdadeiramente o tema!
Vou estar toda a noite sem dormir, revoltada por perder a festa dos meus!
Que porcaria de vassoura! E logo hoje: Parece bruxedo!"

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

A minha camisola grená

Quando tivemos de empacotar os restos da vida da nossa mãe (ou os restos das muitas vidas que ela coleccionou e inventou) encontrámos muitos pedaços de nós de que já nos tínhamos esquecido: desenhos, roupas, brinquedos, fotografias...Era lógico, todos o esperávamos.
Mas eu encontrei também palavras que só tiveram sentido ali, expressões que nunca mais usei, um vocabulário que – sem nenhum de nós notar – deixáramos ali, há muitos anos.
“- A minha camisola grená!...” Foi uma exclamação, uma constatação, um reencontro com uma peça de roupa de que gostava muito e que a minha mãe também gostava. De repente ouvia-a a dizer “Porque não vestes a camisola grená?”, “Onde está a tua camisola grená?” e coisas assim.
E de repente percebi que já ninguém usa a expressão "grená". Aliás, de repente, ao dizê-lo também a mim a palavra soava estranha. Tinha ar de palavra antiga, cheirava a bafio e a memória, como o sabor do capilé, com uma casca de limão, que tomávamos nas tardes de calor.
Estupidamente, a minha imagem, vestida com a camisola grená, a beber um capilé, com a minha mãe, era uma imagem a preto e branco!
Hoje estou vestida de bordeaux (que dantes era grená), procurei e encontrei nas prateleiras do supermercado uma garrafa de capilé, mas já não me apeteceu compra-la.
Afinal, as cores, os sabores, as palavras, têm os seus contextos e só neles fazem sentido...
A minha camisola grená era uma peça de roupa extraordinariamente durável, ainda estava boa. Não conseguiria usa-la de novo, mas também não consegui deita-la no lixo. Ficou junto ao contentor, limpinha, a espreitar de um saco que convidava a ser levado. Talvez viva agora com outro nome, com outra cor, com outro contexto...Talvez tenha ganho uma vida nova, a vida que a minha mãe e as nossas memórias nunca mais poderão ter.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A Fonte das Palavras

“A fonte das palavras
É uma fonte de água viva
Que jorra desde Adão e Eva
Para dar o nome às coisas
Que eram orfãs à deriva”

A Fonte das Palavras
“Cabeças no Ar” (2002)