quinta-feira, 30 de maio de 2013

Viagem

'Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: uma linha
de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher o saco. Um pôr-do-sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
indecisa a meio da noite, a constelação
dos teus olhos quando os abres, e algumas
folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
me vem ditar. E se me disserem que tenho
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
e ficarei só com a tua imagem, a estrela
de um sorriso triste, e o eco melancólico
de um adeus.'

Nuno Júdice

terça-feira, 28 de maio de 2013

"No âmbito do reforço do poder do Estado o Marquês de Pombal mandou fazer as igrejas e outros edifícios públicos com paredes mais grossas."

segunda-feira, 27 de maio de 2013

"Enquanto não há amanhã: ilumina-me, ilumina-me" (Pedro Abrunhosa)

Fiquei muito surpreendida (e chocada) por ver as manifestações em França contra a legislação que autoriza o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Nunca me passaria pela cabeça manifestar-me contra a liberdade de outros. Manifestar-me-ia contra qualquer obrigatoriedade, nunca contra a liberdade. Que diferença faz àquela gente que outros se casem com quem querem? Preferem que as pessoas tenham, a vida inteira, relações escondidas atrás de fachadas moralistas de falsos casamentos «normais»?
Eu...não entendo. Perfilho da opinião de Voltaire - naquele tempo em que se fundava um mundo novo - que dizia:
"Não estou de acordo com aquilo que dizeis, mas lutarei até ao fim para que vos seja possível dizê-lo."

Mas isso foi no tempo do Iluminismo!

domingo, 26 de maio de 2013

Descobridores

Fica,
As paredes já estão despidas,
No chão apenas brinca o pó das nossas passadas
E os copos, vazios, ainda mostram as tuas mãos que neles ficaram marcadas.

Fica, 
O teu perfume ainda perdura nas almofadas,
O vazio de ti detém-me, inerte, aquém das barricadas
E as palavras ecoam em cada recanto das almas, que sós, ficaram maceradas.
Fica,
Regaremos cada pétala das rosas que secaram
Com as lágrimas que pelas nossas faces rolaram,
Dançaremos sobre os fogos que os nossos corpos, em uníssono, geraram
Fica,
Selaremos os segredos com os beijos ausentes de medos,
Brindaremos nossos corpos a todos os desassossegos,
Soltaremos os suspiros que a idade nos deixou em desenredos
Fica,
Falaremos pecados ficando abraçados
Seremos escultores trocando amores
Seremos em nós, descobridores
Fica.


Fernanda Paixão (2013-04-24)

sábado, 25 de maio de 2013

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Voz na Pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Risco

"Um poema livre
da gramática, do som
das palavras
livre
de traços

Um poema irmão
de outros poemas
que bebem a correnteza
e brilham
pedras ao sol

Um poema
sem o gosto
de minha boca
livre da marca
de dentes em seu dorso
Um poema nascido
nas esquinas nos muros
com palavras pobres
com palavras podres
e
que de tão livre


traga em si a decisão
de ser escrito ou não"


Oswald de Andrade (1890-1954)

terça-feira, 21 de maio de 2013

"É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou, mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar."

Nuno Júdice

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Boa análise!

O que tem acontecido é "socializar as perdas e privatizar os ganhos".

Prós e Contras, RTP1 (não retive o autor da frase!)

"Quero sempre poder ter um sorriso estampando em meu rosto,
Mesmo quando a situação não for muito alegre...
E que esse meu sorriso consiga transmitir paz
para os que estiverem ao meu redor.
Quero poder fechar meus olhos e imaginar alguém...
E poder ter a absoluta certeza de que esse alguém
também pensa em mim quando fecha os olhos,
que faço falta quando não estou por perto.
Queria ter a certeza de que apesar de minhas
renúncias e loucuras, alguém me valoriza
pelo que sou, não pelo que tenho...
Que me veja como um ser humano completo,
que abusa demais dos bons sentimentos
que a vida proporciona,
que dê valor ao que realmente importa,
que é meu sentimento...e não brinque com ele."

Mário Quintana

domingo, 19 de maio de 2013

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,

guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.


Nuno Júdice in "A Matéria do Poema".

quarta-feira, 15 de maio de 2013

A Ideia do Fim

Não digas nada – a tua boca já me pertenceu
e agora tenho ciúmes das palavras. O que
disseres será um beijo pousado nos lábios de
outra mulher, dor e mais dor, traição maior
para quem acreditou que o teu amor era para
a morte. Não fales – tenho também ciúmes


da tua voz; ouvir-te é ficar só uma vez mais.

Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 14 de maio de 2013

Perda

A partida de alguém coloca-nos sempre a difícil tarefa de saber o que dizer.
Os clássicos "sentimentos" (ou pior ainda, pêsames) soam a frase feita, a despachar a coisa sem nada de pessoal...mas...que dizer: foi a vontade de Deus? temos de ter coragem? não podemos fazer nada? temos de nos conformar?...
Até para guardadores de palavras estas não fluem numa ocasião destas.
Fiquei-me pelas clássicas, formais, de circunstância, enviadas num frio sms que não traduz que estou aqui a recordar o casamento deles, o amor que os unia, na simplicidade de palavras e gestos desprendidos com sabor de "Aldeia da Roupa Branca".
Tudo neles me recorda um país que saía dos filmes nas minhas férias. A moça - agora viúva - ainda solteira, lavava a roupa no rio e servia copos de vinho com um desembaraço impressionante. Ao fim do dia, depois de todos aqueles duros trabalhos que lhes ocupavam os dias, ficavam ali ao fresco, a conversar baixinho, com uma expressão cheia de enleio.
Eram pessoas muito simples, de poucas palavras, que todos os anos me recebiam com alegria.
O filho deles foi o primeiro bébé pequenino em quem peguei. Uma loucura!
Passaram muitos anos.
A última vez que os vi foi no casamento do «bébé», hoje, também ele já pai de bébés.
Todas estas recordações vêm em catadupa.
Gostava muito deles, destas pessoas simples, vagamente aparentadas comigo. Personagens «da Terra» em que passávamos as férias, personagens da minha infância e sinónimos de sinceridade e simplicidade. De pessoas de poucas palavras mas muito fiáveis.
Sei dizer isto tudo, sei sentir isto tudo, estou a escrever isto tudo e pouco mais consegui que "os meus sentimentos", numa mensagem eletrónica que apitará de forma lacónica no bolso da viúva.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Contagem Regressiva

"Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três a quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos"


Ana Cristina César (1952-1983)

domingo, 12 de maio de 2013

Há um Poema

"Há... 
Um poema que sinto 
Há... 
Uma palavra que minto 
Há... 
Um amor que tarda 
Neste labirinto 
De nada!"


José Luis Outono

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Os Justos

"Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que, num café do sul, jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez nem lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de um certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.

Estas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo."


Jorge Luis Borges

Uma aula de hoje

Como de cada vez que se lê um poema (ou qualquer coisa) pode ser sempre a primeira vez, hoje fiquei maravilhada com estes excertos do Poema para Galileu:

"Eu queria agradecer-te, Galileu, 
A inteligência das coisas que me deste"

"por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade"

E tinha sido eu a escolher o poema, a preparar a aula.
Mas hoje, ali, no ambiente da manhã lavada pelos olhos dos alunos, estes excertos pareceram-me de uma justeza tão grande, que dei comigo emocionada a explicar a revolução científica do séc. XVII.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Disritmia


Eu quero me esconder debaixo
Dessa sua saia prá fugir do mundo.
Pretendo também me embrenhar
No emaranhado desses seus cabelos.
Preciso transfundir teu sangue
Pro meu coração, que é tão vagabundo.
Me deixe te trazer num dengo
Prá num cafuné fazer os meus apelos!
Me deixe te trazer num dengo
Prá num cafuné fazer os meus apelos! 
Eu quero ser exorcizado
Pela água benta desse olhar infindo.
Que bom é ser fotografado,
Mas pelas retinas dos seus olhos lindos.
Me deixe hipnotizado prá acabar de vez
Com essa disritmia.
Vem logo! Vem curar teu nego
Que chegou de porre lá da boemia. 
Vem logo! Vem curar teu nego
Que chegou de porre lá da boemia. 
Vem logo! Vem curar teu nego
Que chegou de porre lá da boemia. 
Vem logo! Vem curar teu nego
Que chegou de porre lá da boemia. 
Eu quero ser exorcizado
Pela água benta desse olhar infindo.
Que bom é ser fotografado,
Mas pelas retinas dos seus olhos lindos.

Me deixe hipnotizado prá acabar de vez
Com essa disritmia.

Vem logo! Vem curar seu nego
Que chegou de porre lá da boemia. 
Vem logo! Vem curar seu nego
Que chegou de porre lá da boemia. 
Vem logo! Vem curar seu nego
Que chegou de porre lá da boemia. 
Vem logo! Vem curar seu nego
Que chegou de porre lá da boemia. 
Vem logo! Vem curar seu nego
Que chegou de porre lá da boemia. 
Vem logo! Vem curar seu nego
Que chegou de porre lá da boemia. 
Me deixe hipnotizado prá acabar de vez
Com essa disritmia. 
Me deixe hipnotizado prá acabar de vez
Com essa disritmia.

Me deixe hipnotizado prá acabar de vez!
Zeca Baleiro

terça-feira, 7 de maio de 2013

Habituei-me às tirinhas

nos textos e já não me fazem impressão.
Primeiro estranha-se...depois...«habituamos-se», diriam muitos dos meus alunos.

Se é Paixão


Se é paixão, me nego.
Já resvalei, a alma em pêlo,
neste áspero despenhadeiro.

Se é paixão, não quero.
Conheço seus espinhos de mel,
sei onde me conduz
embora prometa os céus.

Se é paixão, desculpe-me, não posso.
Conheço suas insônias
e a obsessão.

Se é paixão, me vou, não devo...
não adianta teus apelos.
Resistirei, porque aí
morri mil vezes.
Paixão é arma de três gumes,
e ao seu corte estou imune.

Se é paixão, me nego
e não receio que me acuses de medo.
Do desvario conheço todos os segredos.

Se é paixão, recuso-me e sinto muito,
pois foi à custo
que saí do labirinto.


Affonso Romano de Sant'Anna  (1937)

domingo, 5 de maio de 2013

Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos, 
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu amor pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos...

Florbela Espanca (1894-1930)
E se dizemos, sem querer, o que nos vai na alma, é porque, por vezes, o coração consegue ter acesso às cordas vocais mais depressa que o cérebro.

Comemorações

Hoje é um dia muito triste para todos os órfãos.

sábado, 4 de maio de 2013

Ameaça ou promessa...

"Não adianta nem tentar
me esquecer
Durante muito tempo em sua vida
eu vou viver"

Roberto Carlos

Excesso de ternura

"- Gosto tanto de ti! - disse ela num arranque que lhe saiu direto da alma.
Ele estremeceu. Olhou para ela e sentiu que ia soçobrar perante tanta felicidade que, honestamente, cria que não merecia.
Evitando o excesso de ternura fugiu de tudo aquilo com uma frase que mais tarde lamentaria como «muito parva»: - Ora já temos uma coisa em comum. Eu também gosto muito de mim!"

Apelo


Preciso de ti,
chamo-te e não ouves,
ou são os teus ouvidos minerais
como búzios?
Ou perdi eu a voz
com os ventos
em cada onda da tempestade?
Sinto-te como quem apalpa o ar
ou alcança uma nuvem líquida.
Como palmilhar as estrelas
ou querer, sendo cego,
misturar todas as cores do poente?
Sei que estás aí
e és a outra metade do meu corpo.

Não quero ser violentada por palavras agrestes.
Dói-me a ausência
dessa outra parte de mim.

Lília Tavares in Parto com os Ventos