sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Crónica de Ricardo Araújo Pereira

 «Após alguma reflexão sobre o assunto, ocorreu-me que talvez fosse importante que alguém apresentasse Vítor Gaspar a um ser humano.
Podia ser um encontro discreto, a dois, ...
só com um terceiro elemento que começasse por fazer as honras: "Vítor, é o ser humano. Ser humano, é o Vítor." E depois ficavam a sós, a conviver um bocadinho.
Perspicaz como é, o ministro haveria de reparar que, entre o ser humano e um algarismo, há duas ou três diferenças. O ser humano comparece com pouca frequência nas folhas de excel, ao contrário do algarismo. E o algarismo não passa fome nem morre, ao contrário do ser humano.
É raro encontrarmos uma lápide, no cemitério, com a inscrição: "Aqui jaz o algarismo 7. Faleceu na sequência de um engano numa multiplicação. Paz à sua alma." Mal o ministro tivesse percebido bem a diferença entre o ser humano e os números, poderia voltar às suas folhas de cálculo. Admito que se trata de uma experiência inédita, mas gostaria muito de a ver posta em prática.
Houve um tempo em que quem não soubesse de economia estava excluído da discussão política. Felizmente, esse tempo acabou. Os que percebem de economia são os primeiros a errar todos os cálculos, falhar todas as previsões, agravar os problemas que pretendiam resolver.
As propostas de um leigo talvez sejam absurdas, irrealistas e inexequíveis. Não faz mal: as do ministro também são. Estamos todos em pé de igualdade.
A realidade não aprecia economistas. Se um chimpanzé fosse ministro das Finanças, talvez a dívida aumentasse, o desemprego subisse e a recessão se agravasse. Ou seja, ninguém notava.
Como toda a gente, também tenho uma sugestão para reduzir a despesa. Proponho que Portugal venda uma auto-estrada para o Porto. Temos três, e não precisamos de todas. Há-de haver um país que esteja interessado numa auto-estrada para o Porto. Não há nenhuma auto-estrada para o Porto no Canadá, por exemplo. Nem na Noruega. (Eu confirmei estes dados.) São países ricos, aos quais uma auto-estrada para o Porto pode dar jeito. Fica a proposta. Não é a mais absurda que já vi.»

Ricardo Araújo Pereira, Visão, 29 novembro 2012

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Telha de vidro


"Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz do dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão bem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!"

Raquel de Queiroz (1910-2003)

terça-feira, 20 de novembro de 2012

POEMA QUADRAGÉSIMO SEXTO

"Peço-te. Não pises as violetas
que trago no olhar.

Falemos dos brilhos estilhaçados
desta casa súbita que é o teu corpo
devoluto. A noite devora as palavras possíveis,
o sofrimento que pulsa em tua boca
e torna a minha boca vulnerável.
O amor é um nada que a liberta, uma luz
que desce dos ombros para o ventre
e fecunda as sementes da tua virgindade,
essa que faz agora parte de uma dor quase
amigável, na lividez do tempo,
e que entregas em minhas mãos, beijando-as,
tornando-te parte dos meus versos, da
minha forma mais profunda de gostar
de ti.

Amar-te, é escrever-te.
Amar-te é deixar que me toques até ser teu,
até que te deites no meu corpo e adormeças
inteira dentro de mim.

Peço-te. Não pises as violetas
que trago no olhar. Cheiram a ti. São para ti.
Um "bouquet" de palavras que floriram
neste tempo de amor."
 
Joaquim Pessoa
 

domingo, 18 de novembro de 2012

Vazio

Quem diz que um gato é apenas um bicho?
Quinta e sexta foram dias muito ocupados. Sábado prolonguei a presença na festa dos amigos até deixar de ser decente e delicado continuar por ali pendurada...a tentar não voltar para casa.
Hoje...é domingo.
E apercebo-me que, afinal, toda a minha independência, o meu gosto por viver sozinha, não eram verdade. Eu não estava sozinha, eu nunca estive sozinha: até agora!
Há um vazio enorme nesta casa!
Como é que um animal silencioso, que caminhava sobre almofadinhas para não fazer barulho, pode tornar um pequeno apartamento, numa casa grande e enormemente silenciosa?
Mistérios da amizade. Da saudade.

sábado, 17 de novembro de 2012

Hoje, não.

 
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
 
Adiamento - Fernando Pessoa

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Outono

Hoje à tarde

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Eterna Saudade

Ha um relogio parado, um candeeiro estragado e um coraçao partido nesta casa hoje.
A Gata Menina saiu hoje de casa para nunca mais voltar, dezasseis anos depois de ter aqui entrado pela primeira vez.

domingo, 11 de novembro de 2012

Estimação

Durante muito tempo a morte era o centro da vida.
Vivia-se falando na morte, preparando a morte.
A religião católica consagrou divindades à "Boa Morte" e "ao Bom Fim". O desejo de todos era ter uma boa morte, uma vez que essa seria o início da verdadeira vida.
A morte, porque muito frequente, era vivenciada por todos com a maior naturalidade.
Honravam-se os mortos, velavam-se os mortos em casa (Alice Vieira tem ums crónica maravilhosa sobre a forma como a mesa da sala de jantar da casa de suas tias se tornava periodicamente suporte para os caixões de familiares e amigos, voltando depois a desempenhar a sua principal missão, com naturalidade), esperava-se a morte quando ela se aproximava. Não se afastava a morte de casa, das conversas, dos sonhos. Ela era omnipresente.
Depois chegaram os hospitais, os lares, as famílias assoberbadas de trabalho e nucleares - seja lá isso o que for - a rude realidade de uma família pequenina, arrumada num T1, onde mal cabiam a saca de batas e o garrafão de azeite que a família da terra fazia de questão de meter na mala do carro na visita anual dos familiares.
Os velhos estavam lá longe, no campo, que a vida da cidade não dava para aqueles ritmos que envolviam pores do sol e orvalhos.
A electricidade eliminou os horários. Todo o tempo é tempo de tudo e o descanso faz-se entre apitos de desperatdores e lembretes de telemóveis.
Família mais pequena e longínqua, corresponde a menos mortes e vividas de forma mais apressada, com direito a tempo legislado conforme a quantificação do desgosto em lei. Pai, mãe, avós, cônjuge, os amigos nem lá estão e só a complacência de um médico poderá avaliar o estrago causado em nós pela partida de alguém com quem não tínhamos outro laço senão o de termos criado uma empatia para a vida toda.
A morte foi sendo afastada do nosso quotidiano. Mas, em vez de a tornar um acontecimento de somenos importância, parece que nos apanha sempre de surpresa e nos magoa cada vez mais. Não estávamos preparados...Mas não devíamos estar? Se há coisa certa é a morte. Mas...
As crianças deixaram de ir a funerais. Ficam em casa com amigos, enquanto a família se dirige à Casa Mortuária, de preferência lá perto do cemitério, longe do centro da cidade que continua a borbulhar, alheia a "toques de finados" e terços rezados por semi-profissionais do velório.
A morte é um assunto muito raro...e perturbador. "Não devíamos passar por isto", não sabemos passar por isto. E criamos profissionais e grupos de ajuda para nos ensinarem a superar as perdas.
A morte, adiada o mais possível, é hoje vivida como algo de exceção, que todos sabemos que existe mas não nos preparamos para lidar com ela. Porque durante praticamente toda a vida a afastamos dos nossos discursos e das nossas vivências.
E hoje a vida pode prolongar-se...parece até que para sempre.
"Professora: acha que a ciência um dia vai descobrir maneira de sermos imortais?"; "Não sei, talvez. E queremos ser imortais?" - "Eu quero", disse o coro.
Eu não sei se quero, mas queria que os outros fossem. E que fossem eles a viver a minha partida e não o contrário.
Eu não sei viver as perdas. E desde tão nova lidei com elas!
Eu não sei sequer como vou enfrentar a perda da minha gata, companheira de 16 anos, que está por dias.
Podia ter sido ontem. Apagava-se como uma velinha, o corpo a esfriar, uns gemidos ténues. E eu pensei que era capaz de a deixar morrer, mas não fui.
Está lá agora, com as agulhas de soro enfiadas nas patas. O corpo já aqueceu. Toma agora medicamentos para que a bexiga funcione, porque ela quer parar.
Queria ter coragem para ir lá amanhã e trazê-la para casa. Deixá-la apagar.se assim, como será natural, mas não sei se sou capaz.Queria embrulhá-la num cobertor, fazer-lhe festas na pata e deixa-la partir. Ela está preparada para partir. Eu é que não estou. Tenho de saber deixa-la ir. Tenho de saber parar com isto, com este prolongamento artificial aos arranques de uma vida que não tem mais tempo.
Curiosamente apercebo-me que nunca co-habitei 16 anos seguidos com ninguém. Só mesmo com esta teimosinha peluda, miona, exigente e meiga, que vai partir.
O que será que aconteceu aos gatos do Manuel António Pina? Como estarão a encarar a partida do dono?

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O Silêncio da Palavra

A palavra anoitece
...veste a escuridão
segreda-me os intuitos
com um hálito de cacimba.
Rotas e rotas
desenhadas no tempo
contam-nos histórias
momentos,
de intensos saberes…

A palavra é o silêncio.
Um chilrear,
acorda-nos devagar…

A luz brilha
no horizonte
vestindo a palavra
de um nenúfar
apoteótico
coberto de ilusão.

A palavra arrefece
na mudança de mão
de voz
esquece-se
e na solidão
fica quieta
presa
na escuridão…

A palavra é o silêncio
a pedra,
a história
ou o tempo que morreu…

despida,
perdida,

cala-se então!

Paulo Afonso Ramos, 2011

Vózinha:

- O que é o almoço?
- Cascas de tremoço.
- E o jantar?
- Bordas de alguidar.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Oh!

Hoje estou doente.
A minha avó Mila fazia sempre "um arrozinho de manteiga" quando eu estava doente.
Arranjei uma cebola pequenina, coloquei uma nozinha de manteiga...eu achei que estava tudo igual...
Afinal não é um arroz qualquer que cura. Era mesmo o "arrozinho de manteiga da avó Mila".

E como a minha avó era muito divertida e tinha os mais inusitados versos para todas as ocasiões, assim que exclamei um 'Oh' desiludido, ecoou no meu espírito: "Oh, disse o Diabo quando viu o cú à avó".

Tenho saudades da minha avó.-Oh!

Herança

E recebi resposta do médico.
Que afinal era o filho.
O médico que me salvou faleceu há 15 anos. Parece ter sido uma pessoa excepcional e ter contribuído muito para o avanço da Pediatria e do Hospital D. Estefânia, do qual foi Diretor.
O filho resumiu-me, com muito orgulho, a carreira dele e agradeceu o email.
Fica-lhe em herança mais esta recordação do pai, a quem devo a vida, que poderia ter terminado ainda na infância.

Sinto-me feliz por ter enviado o email, mesmo não sendo ao próprio médico, porque as recordações são também um patrmónio que se herda.

Achei muito curioso que, pelo meio do resumo (emocionado) que faz da carreira do pai, este Dr. refere que ele tinha o Curso de Piano do Conservatório. E fico a pensar nos pormenores que seleccionamos de alguém quando o apresentamos. Do muito que temos para dizer, o que escolhemos referir.

A História é sempre um relato pessoal e, como tal, selectivo.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

A Linha da Fortuna

Creio que era ainda muito nova quando li - provavelmente numa revista feminina - que devíamos fazer um exercício diário de contabilizar o que foi bom e mau ao fim de cada dia, para dar o valor real ao que temos, blá, blá, blá...
Entusiasmada, passei a receita à minha mãe depressiva, que com a mestria que lhe era característica,  destruiu os meus argumentos todinhos. Não sobrou nada. Com uma negatividade tenaz destruiu cada elemento da minha lista, justificando com sólidos argumentos, a sua passagem para o outro lado da barricada. Tudo podia ser melhor, tudo era uma conspiração do universo para a prejudicar, todos os outros tinham mais sorte que ela.
Embalada por aquele fado, tentei ainda por uns largos tempos, inverter a coisa, até perceber que nada havia a fazer.
Ficou-me o hábito do exercício (não diário, verdadeiramente) de pesar numa balança valorativa os eventos que vão marcando a minha vida. E o saldo é quase sempre positivo. Não sem esforço, é certo. Mas o final é positivo.
Num desses esforços de encontrar a linha cor de rosa que eu quero que conduza a minha vida - o que exige um esforço cada vez mais elaborado, reconheço - dei comigo a recordar momentos dramáticos e felizes em que a minha vida tem beneficiado de encontrar as pessoas, os lugares, os contextos certos. Como na apendicite que enfrentei aos 11 anos, numa operação de urgência. Recordava-me do nome do médico. Era muito novo e acho que andava sempre a ver "a paciente". De tal maneira que aproveitaram para me dar alta quando ele foi de férias. Era um verão muito quente e a estadia no Hospital D. Estefânia soube-me a colónia de férias.
Recordo os momentos ternurentos em que me deixavam colocar os termómetros aos bébés ou a aventura que era escaparmo-nos, com as luzes já apagadas, para a sala da televisão para não perder o Espaço 1999.
Injeções e pensos à parte, eu recordo mesmo umas férias muito divertidas.
De repente penso: Que será feito do médico? Ainda exercerá medicina? Será que o consigo encontrar num motor de busca?
E vá de buscá-lo.
Ah, maravilhas da técnica moderna!
Encontrei-o num hospital privado. Escrevi para o mail geral do Hospital e dias depois ele respondeu, a agradecer o contacto e a pedir pormenores que o levassem a recordar a situação.
Acabei de lhe escrever, agora que cheguei a casa, feliz por ter sido cumprimentada por uma ex-aluna, agora caixa num supermercado, que eu já não via (e não reconheceria) há muito tempo. Senti-me bem por ela me ter cumprimentado com uma alegria genuína.
Resolvi contar a história "ao meu doutor" e agradecer-lhe por poder estar aqui hoje, a ele, ao Serviço Nacional de Saúde e ao Estado Social de poderá ser afundado, perdão, refundido...não, refundado, um dia destes.
Foi uma "conversa" catártica. Sinto-me bem de o ter feito. Espero ter feito também bem ao médico, que hoje já nem é Pediatra.
Maravilhas da comunicação moderna!

domingo, 4 de novembro de 2012

Um iogurte de soja e um chá de limão depois tenho de interiorizar que o quotidiano recomeça amanhã.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Feriado

O Feriado é um dia excepcional, verdadeiramente.
Diferente dos fins-de-semana, esperados, ritmados, sincopados, o feriado surge assim "das brumas da memória" para nos interromper as nossas rotinas.
O Feriado não tem nada programado. (Já estou a ver os leitores, de cenho franzido, indignados com tal afirmação: "Como não tem nada marcado? Tanto que eu esperei por ele, para ir ver a família, realizar aquele passeio ou para, tradicionalmente, assinalar o seu verdadeiro sentido e homenagear os mortos da família").
Talvez...não sendo católica praticante e tendo sido massacrada toda a minha infância e juventude com as revoadas de flores para o cemitério, para agradar aos que já tinham morrido, deixando à míngua de atenção os que poderiam morrer a qualquer momento (ou que se calhar ia morrendo, pelos menos em partes) não assinalo o Feriado no seu sentido (a). Sei-o, comunico-o, respeito-o, mas para mim é um bónus inesperado que irrompe na minha semana e que rasga um sol de preguiça no seio de mais uma semana.
Nem para o "Pão por Deus", para o qual tinha abastecido a despensa ontem, me apeteceu abrir a porta, perante os toques impertinentes (se calhar eram só alegres, sei lá) dos jovens que provavelmente eram meus alunos e a quem não me apetecia enfrentar com o cabelo desgrenhado e o fofo roupão cor de cereja que sempre me faz pensar em lordes a fumar cachimbo, enquanto lêem preguiçosamente o jornal.
Não abri. Não fui tomar café. Não me vesti.
Arranjei um belo tabuleiro de café. O seviço da Vista Alegre ficou ainda mais alegre com as coloridas frutas de que me servi. O tabuleiro estava digno de uma Lady servida por criadagem.
Depois...o Feriado é o dia ideal para terminar um livro.
Quando nos apaixonamos por um livro, os poucos tempos livres da semana sabem a pouco, a uma traição a uma paixão: uma paixão precisa de tempo inteiro.
Acolhi no colo a prosa de José Eduardo Agualusa para o desenlace da vida daquelas personagens que misturam a realidade com a fantasia, os seres naturais com os sobrenaturais...
Lágrimas e risos depois estava tudo terminado num espanto de descoberta.
Gostei. Gostei muito da prosa de Agualusa. Só o conhecia das crónicas. Fiquei com vontade de ler mais.
Agora a casa cheira a cozinhados. Talvez alguém passe na escada e aspire hoje o perfume de lar que daqui se emana, como eu costumo fazer nos outros dias, nos dias normais que não são Feriado.
Filmes, séries, gavetas arrumadas.
O dia de amanhã é só o resto da semana. Uma interrupção num descanso que me parece legítimo.
Não sem culpa.
Quatro turmas de testes acumulam-se acusatoriamente na mesa da sala.
Mas o meu ordenado diminuiu, o meu tempo de trabalho presencial na escola aumentou, as turmas cresceram em alunos cada uma e mais uma no total. São sete turmas, a mais de 20 alunos cada uma. A minha direção de turma tem 27 alunos. E os pais, e os filhos e os papeis.
Deveria trabalhar no Feriado? Não, não deveria.
A minha motivação diminuiu ainda mais que o meu ordenado e contra isso pouco há a fazer.
Sou um número, sou um código, sou um risco na estatística e daqui a pouco uma exceção numa sociedade de desempregados. Ou não, que o que tomei por seguro já não dá garantias e este ano letivo bem notório está a ser.
Cumprirei o que devo, para com os meus alunos. Continuo a acreditar muito no que faço, a sentir-me compreendida por alunos que já perceberam tudo: um, um dia destes, disse-me que eu vivo no mundo do «devia ser» e que penso como os filósofos. Ele disse-o com ar de desprezo, eu aceitei-o como um elogio e uma condenação. Que tenho de cumprir. Fiel que me sinto a mim mesma. Isolada, Espantada com o que vejo em volta.
Penso em todos os que devem ter sentido coisas parecidas - o mundo a desmoronar - noutras crises que a Hstória alberga, arrumadinhas, em páginas com número limitado de caracteres, que nos lembram dos outros. Como alguém um dia se vai lembrar de nós. Vai?

"Não se atormente mais. Os erros nos corrigem. Talvez seja necessário esquecer. Devíamos praticar o esquecimento.
Jerónimo abanou a cabeça irritado. Rabiscou mais umas palavras no pequeno caderno. Entregou-o ao filho.
O pai não quer esquecer. Esquecer é morrer, diz ele. Esquecer é uma rendição."
Teoria Geral do Esquecimento, p. 221.

E porque não quero esquecer nem relevar o que me estão a fazer, o que nos estão a fazer a todos, culpando-nos da crise, envolvendo-nos na nossa culpa para legitimar todas as perdas de direitos, talvez vá começar mais um livro, para gastar em tempo próprio o Feriado. Um livro que me leve para o mundo do «deve ser» ou do pode ser, porque preciso que a ficção me salve da realidade. 

(a) Nota: Eu sei que o Dia dos Fieis Defuntos é amanhã, mas também sei que grande parte das pessoas aproveita o feriado para guarnecer as campas para que os seus entes queridos estejam confortáveis no dia certo e para que as línguas dos vizinhos não tenham motivos concretos, num dia que se assinala de saudade e elevação de orações.