sábado, 30 de novembro de 2019

Preparação para a China

O livro Crónicas do Shaolin, de Patrícia Morais, insinuou-se-me na Livraria da Porto editora em Setembro último.
Sendo um ano especial de pesquisa e construção de vários projectos, mas sobretudo de mim própria, tinha-me deslocado àquela livraria para adquirir livros de Mindfulness e Educação para fundamentar melhor alguns projectos apenas delineados.
Por coincidência (ou talvez não) bato com os olhos neste livro, de escrita autobiográfica agradável e fácil, de uma experiência vivida por alguém que também decidiu fazer uma paragem com vista a uma viragem.
Mais jovem, escritora, praticante desde jovem de artes marciais...talvez pudesse estabelecer mais diferenças entre mim e a autora do que semelhanças...mas aquele motor motivacional era o mesmo. "Vou levar", decidi, "Vou ler! E vai-me servir de preparação."
Vai-me fazendo companhia em pequenas horas mortas.
Vai-me despertando receios, sobretudo alertas para a extraordinária diferença e dificuldade que vou encontrar, mas ainda não me diminuiu a motivação e as expectativas.

Aqui ficam alguns excertos, de uma leitura que apenas vai a meio:

"Uma das perguntas mais frequentes na Academia é «Porque é que vieste aprender Kung-Fu?»
É sempre seguida de uma resposta genérica: «Porque gosto de artes marciais»; «Porque decidi experimentar a verdadeira experiência chinesa»; «Porque tive curiosidade»; «Porque vi o último filme de Yip Man».
É uma resposta que esconde por trás o verdadeiro motivo: um passado de drogas, de violência, de abuso sexual, de homicídio entre outros. É uma resposta que esconde a necessidade de absolvição e a necessidade de se sentir mais forte. (...) apesar de não estarmos a treinar para lutar contra vampiros e lobisomens, rapidamente descubro que neste sítio todos lutamos contra os nossos próprios demónios." (pp. 50-51)

"Entrar na rotina não é fácil. Acordar às 5 h 40  da manhã (...)
Depois do Taiji e Qigong (chikung), as primeiras aulas de artes marciais internas que têm início antes das refeições, tomo o pequeno almoço. (...)
O treino da manhã começa com uma pequena corrida na rua, para aquecer. Isto é, se fosse possível aquecer quando o frio nos entra pelas narinas, queima as fossas nasais e o oxigénio desce com dificuldade até aos pulmões. (...)
Isto para já não falar das escadas, as escadas sobre as quais a minha tia me avisou, quando disse: «Eu já vi o Kill Bill! Sabes que vais ter de subir degraus com baldes de água às costas.» A parte dos baldes não se concretiza, mas o resto faz-me pensar: Porque é que me meti nisto?" (pp.25-26)

"Depois começa o verdadeiro trino: cerca de duas horas a subir degraus sem parar.
Na China tudo parece ser feito de degraus e de cimento. (...)
Quanto mais subimos mais o vento decide juntar-se a nós, mas não é uma aragem bem vinda que nos ajuda a relaxar. Não! São 35 km/h de ar, que tornam os nossos passos pesados e fazem com que o suor que se começara a acumular nas costas se torne gélido contra a pele, e só vai piorando conforme subimos." (p. 68)

"A jornada é cansativa, mas a vista começa a tornar-se cada vez mais magnífica, até mesmo através da neblina no horizonte. O verde dos arbustos espreita por entre o castanho e cinza das rochas, e o nevoeiro que os envolve confere-lhes uma aura de mistério. O local ideal para quem deseja sentar-se, inspirar-se e criar a metáfora perfeita para o seu estado de espírito. Um espírito pertencente a quem, como eu e os colegas que me acompanham, abandonou o seu país à procura de se transformar numa pessoa melhor, à procura de uma mente mais calma." (p.68)

"(...) Taiji é um tipo de artes marciais internas, uma espécie de meditação móvel que fornece calma e foco. É também bastante útil para fortalecer as articulações, para progredir no balanço e na agilidade, assim como para melhorar as posturas em «stance training». Para quem viu o Panda Kung-Fu 2, é com Taiji que Po tenta alcançar a «paz interna»." (p. 71)

"(...) mas sei que o que tenho de trabalhar não é só o meu corpo, mas também o cansaço mental que a minha mente insiste em sentir enquanto corro. O verdadeiro instrumento de motivação é a minha cabeça, e é esta que precisa de ser reeducada." (p. 72)

"Quase conseguimos sentir os nervos dos examinantes ao aproximarem-se dos mestres e apresentarem a sua saudação. Os seus movimentos são tensos e hesitantes. Alguns relaxam quando chega o momento de iniciar as suas formas, mas noutros é possível ouvir até a respiração. Contudo, no final, pouco importa se relaxam ou não, pouco importa quem apresentou uma forma digna de louvor e quem fez asneira, a verdade é que eles tiveram coragem de se colocarem diante de sete pessoas mais experientes e ser avaliados. Uma rápida observação dos sorrisos cúmplices que alguns dos Shifus oferecem aos alunos que bloqueiam faz-me perceber que os mestres entendem os nervos dos estudantes. E os restantes? Bem, quem se senta confortavelmente no chão não tem o direito de apontar o dedo a quem é corajoso o suficiente para mostrar os seus erros diante daquela multidão. (...)" (p. 74)

"Não deve ser surpresa descobrir que algumas das pessoas que decidem envergar (sic) pelas artes marciais não são as mais emocionalmente controladas. Eu enquadro-me bem nesse grupo. Os lutadores são pessoas com um passado ou presente doloroso e escolhem tentar eliminar a sua dor em lutas. É o que os motiva e os faz continuar. Mas nem todos podemos andar à pancada no meio de um bar ou concerto, por isso, os que tentam mudar a sua maneira de ser e de lidar com os problemas escolhem as artes marciais como forma de balanço. Muitos vêm para Kunyo Shan à procura de algo que os ajude no autocontrolo e lhes providencie uma certa paz mental. Algo que lhes mostre como ver o mundo com outros olhos, e como alterar a forma pela qual nos habituamos a reagir, devido ao condicionamento que tivemos enquanto crianças. Transportamos as nossas memórias de infância até à nossa vida adulta, e se não fizermos nada para as deter estas podem acabar por explodir. Lutar faz com que enfrentemos os nossos próprios demónios, não o adversário. Não é incomum ver pessoas a chorar depois de uma luta intensa." (p. 84)

"Há pessoas que vêm aqui parar em busca do que precisam, sem saberem bem o que será isso.  E há pessoas, como o Théo, Lajos e outros, que vêm para aqui porque sabem que é aqui que está o que precisam. A sua paixão é contagiante (...). (p. 89)

"É verdade que o feedback negativo pode ser forte e fazer-nos desejar melhorar e provar aos outros que estão errados. Ainda caía vítima de tal na minha relação. Mas é o reforço positivo que nos permite manter o bom trabalho, enquanto o desânimo pode ser mais potente e fazer-nos acreditar que somos realmente apenas as nossas falhas. Ouvi dizer uma vez que são necessários sete elogios positivos para compensar uma crítica negativa. E concordo." (p. 184)

"Sim, eu tinha ido para Kunyo Shan para aprender a ser forte, porque a minha vida até ao momento me tornara insegura e temerosa, mas a força não vinha só dos meus músculos. Talvez uma das maiores lições que aprenderia na China seria a de que iria sempre encontrar pessoas cuja energia seria oposta à minha. Eu valorizo a honestidade, a moral e a honra, e encontrarei toda a vida pessoas cujas ideologias desafiam as minhas. Os relacionamentos românticos, familiares e de amizade, seriam sempre desafiadores. Se quisesse ser forte, o primeiro passo precisava de ser aceitar as pessoas como eram e concentrar-me nas áreas da minha vida que desejava melhorar, ao invés de tentar mudar os que me rodeiam.
Admito que é difícil e talvez seja sempre um progresso contínuo.
Naquela altura, em vez de apenas enfiar a cabeça num livro para esquecer os meus problemas, começo a falar com os outros e a observa-los mais atentamente." (p.185)

Até ter chegado ao fim, hoje, dia da publicação dos excertos recolhidos.


quarta-feira, 27 de novembro de 2019

A posição do observador faz toda a diferença

Um dia destes fui passar um fim de semana a Amesterdão.
De facto, com as viagens cada vez mais acessíveis, viajar deixou de ser complicado. Planeada a viagem com bastante antecedência os gastos podem ser parecidos com os de um qualquer fim de semana em Portugal.
Assim, desafiada por uma amiga que vinha do Brasil à Bélgica em trabalho e queria rever Amesterdão no fim de semana antes de regressar ao Brasil e entusiasmada com a perspectiva de rever a minha irmã que mora em Bruxelas, lá combinamos tudo e um quarto de três camas esperáva-nos numa noite de Amesterdão. Muito fria, daquelas de usar gorro, cachecol e luvas (a condizer, claro).
Associamos Amesterdão à tolerância religiosa e tenho ideia que maioritariamente serão protestantes, mas que existem por lá todas as religiões.
As nossas visitas versaram várias religiões. Começámos por um monumento associado ao catolicismo e também fomos a uma sinagoga.
O primeiro monumento foi uma visita muito curiosa. Eu não fazia ideia da existência daquelas igrejas e foi a minha irmã que trouxe a ideia da visita. "Our Lord in the Attic" é uma espectacular igreja num sótão de um prédio de habitação, (sem quaisquer indícios exteriores) e corresponde a um período de dominação protestante na Holanda (séc. XVII) em que os cultos de outras religiões eram oficialmente proibidos, mas podiam existir, "desde que não se soubesse, ou mais exactamente, desde que não se visse". A mesma hipocrisia que marca o capitalismo durante todo o seu percurso: se pagares os impostos e fizeres o que é proibido longe da vista fazemos de conta que não vemos".
Mas enfim, nem era sobre estas considerações que vim escrever, mas sobre as explicações (excelentes!) existentes nesse monumento.
Pela primeira vez na minha vida deparei-me com explicações dos rituais e símbolos católicos como nunca tinha visto. Explicavam-me todos os preceitos de uma missa como se eu nunca tivesse assistido a uma.
É lógico, é óbvio, mas foi tão estranho.
Comentei isso com a minha amiga, museóloga de profissão, também de uma família e um país católico. "Tão estranho! O catolicismo como excepção."
E isto fez-me reflectir muito sobre o ensino da História, cada vez mais difícil, porque os alunos não lêem, mas também porque não trazem consigo um conjunto de valores , de conceitos e de imagens que temos agora de lhes explicar.
É lógico. Agora é lógico. E talvez tenha sido mais uma das coisas a que eu estou com dificuldade em me adaptar: ter de lhes explicar o que dantes vinha adquirido. Mas eles não têm culpa. Não vão à Igreja, não sabem o que é. E eu tento compreender...mas acho que até estar em Amesterdão não tinha verdadeiramente compreendido.
E esse é mais um dos aspectos vantajosos das viagens. Sair. Olhar de fora. Mudar a perspectiva.
Claro que não me resolve o problema de ter de acrescer mais uma explicação ao já escasso tempo para o programa, mas...fez-me compreender a necessidade deles. Se não sabem tem de ser explicado. Deve ser. É um direito que lhes assiste. E é necessário para compreender a dinâmica da disciplina.
Isto fez-me muito bem.
Mas não deixa de ser estranho ouvir explicar detalhadamente o que é a comunhão, na missa, ou - e esta é a cereja no topo do bolo - ouvir designar a hóstia como "holly waffle".
Escusado será dizer que não consegui comer nenhuma waffle em todo o fim de semana!



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Rifão reencontrado

Aguinha fervida aumenta a vida

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Gente real

Foi um fim de semana fantástico!
A viagem, as aprendizagens, as partilhas, a comida, os jogos, a cumplicidade.
Os risos e as piadas, os olhos de aprender...não tínhamos idade. Éramos todos meninos e meninas numa visita de estudo.
Dos milhares de registos fotográficos, alguns já começaram a chegar.
Olhar as fotografias por vezes não é fácil: estamos velhos, gordos, olheirentos, narigudos, barrigudos. Nenhum de nós é bonito!
Prefiro recordar o som das gargalhadas.
Volto a olhar para as fotos e agora aceito-as melhor.
Somos todos gente real, sem maquilhagem e sem photoshop. Gente real. Que se ri, que chora, que se aflige, que se ilude e se desilude; que já fez longos caminhos e que no dia a dia tem saudades de muita coisa: dos familiares que partiram, do tempo que não volta, de uma profissão que nos uniu a todos mas que é hoje marcada pelo desencanto e pelo sofrimento.
Aquele fim de semana foi um tempo mágico. Suspenderam-se as mágoas, as saudades e as desilusões; celebraram-se as presenças, as permanências, as solidariedades e as capacidades de nos emocionarmos.
Gente real! Nós mesmos!