terça-feira, 30 de novembro de 2010

Companhia Maior

"E a memória é um trapézio..."
Reportagem da RTP1, 30 minutos, Jornal da noite, Hoje

A liberdade do «saber-ser»

"Todos os outros seus filhos tinham sido ensinados por homens enérgicos, pessoas duras, resistentes irrepreensíveis, pessoas que mantinham os rapazes quietos, distribuíam pancadas com determinação, não sorriam, impunham a ordem, procurando fazer de cada criança um obediente, para que se obtivesse um bom trabalhador. A própria escola de São Sebastião tinha quatro janelas que davam para a rua. A cada uma delas era raro não haver uma criança com uma máscara de asno, com orelhas de ourelo e uma fila de dentes exposta. (...) o mais novo estava destinado a ser instruído por um incompetente recém-chegado, um homem pequeno, de cara completamente lisa, que fazia lume sobre a secretária, queimava papel, cabeças de fósforo, álcool e algodão-em-rama dentro de frascos. Que volta e meia levava as crianças até aos montes cinzentos de São Sebastião, mandava observar a natureza, mandava espiar os animais. Mandava-as medir o desvio do Sol com metros de pedreiro, obrigava-as a irem de noite à escola para explicar os eclipses, levava-os a registar coisas tão inúteis como a posição das patas das éguas quando corriam e quando marchavam. Não lhes ensinava nada. Ele mesmo construía canudos especiais pelos quais fazia as crianças olharem as aves, contra a necessidade das próprias crianças que era saber, sobre os pássaros, quais os úteis e os inúteis, os que davam bons exemplos aos homens com os seus hábitos, e escrever isso em boa caligrafia.
(...) esse homem acabara por ser empurrado de São Sebastião mediante um abaixo-assinado, em que muitos haviam escrito em vez do nome uma dedada de polegar. (...) Que esse professor haveria de desaparecer do ensino, haveria de morrer cedo, sem nada para fazer, cercado de olhos por todos os lados, mas entretanto já havia deixado estragos insapagáveis por onde tinha passado."
Jorge, Lídia, O Vale da Paixão, pp. 48-49

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Lido com a mágoa de quem também pensa em partir...

"A profissão de professor desaparece...

Segue-se um extracto duma entrevista de Mário Crespo a José Gil, que passou na Sic Notícias. São palavras absolutamente sinceras e verdadeiras as do filósofo e professor, tão sinceras e verdadeiras que deviam fazer parar o país para pensar no rumo que tomará, ou que está a tomar, pelo facto de os bons professores serem obrigados a desistir de ensinar: por abandono da profissão, por fadiga, por desnorte...

Mário Crespo: Uma estratégia seguida por este Ministério (…) é exigir ao professor uma ocupação total na sua tarefa, total, para lá das horas do humanamente aceitável (…) para lá das 35 horas obrigatórias, para dentro das pausas lectivas – expressão nova –, o trabalho do professor deve integrar e devorar o tempo de vida privada, de lazer (…), professor só pode ser professor (…) deixa de ser homem, deixa de ser mulher...

José Gil: Isso é quase um homicídio da profissão. A profissão de professor desaparece. Desaparece, porque é impossível fazer isso (…). Estou a lembrar-me de Paul Lenoir, um poeta, que dizia que para fazer boa poesia é preciso não fazer nada (…). É preciso que haja pausa, desafio, reflexão ruminação (….). Eu sou professor, sei que estou a defender a minha causa, mas há vocações extraordinárias, muito maiores que a minha, muito mais admiráveis que eu vejo em professores do secundário, por exemplo (...) pessoas que gostam de ensinar, que adoravam fazer o que estavam a fazer e essas pessoas vão-se embora, foram-se embora (…) sobretudo (…) porque ficam tão desgostosas por elas mesmas, por terem que fazer qualquer coisa que não gostam, que lhes destrói uma missão..."

colhido em:
http://dererummundi.blogspot.com/2010/11/profissao-de-professor-desaparece.html
"Esperamos que seja menina", Calzedónia

A memória das coisas que são coisas da memória

"Mas ela queria dizer que havia objectos que não desapareciam, que apenas deixavam de ser matéria e de ter peso para passarem a ser lembrança. Passavam a ser fluído imaterial, a entrar e a sair do corpo imaterial da pessoa, a incorporar-se na circulação do sangue e nas cavernas da memória, para aí ficarem alojadas no fundo da vida, persistindo ao lado dela, e naquela noite, bastaria aproximar o candeeiro a petróleo do corpo da filha, em camisa e agasalhada pela colcha, para confirmar que esses objectos se encontravam morando dentro da sua cabeça." Jorge, Lídia, O Vale da Paixão, p. 31

domingo, 28 de novembro de 2010

Cobardia

"Sentia agora que não podia haver humilhação maior. Como? Como é que ela não tinha percebido? Porque insistia em tentar que a chave coubesse na fechadura? Como não lhe tinha ocorrido?...
Não sabia o que a magoava mais: se o acto dele, se a pena do vizinho da frente quando abriu a porta e lhe disse: "Então não percebe que ele mudou a fechadura? Vá-se embora. Ele não a merece."
Odiava-se agora por ainda ter dito: "Não, não pode ser. Foi ele que me deu a chave...sem eu pedir..."
O homem fechou a porta frente à sua solidão, deixando-a assim, humilhada, impossibilitada de ignorar, de inventar explicações, de tentar protelar o fim.
Desfeita. Era como se sentia agora, na estação de comboios, no meio de toda aquela gente que não a podia ver, que a ignorava, que não queria saber dela, que não lhe exigiria a explicação que não queria dar a ninguém. Nem mesmo a si própria."

Discussão

"- O que é que eu fiz de errado?
- Nada...
- Nada? Nada? - o tom subia, perigosamente - É só o que consegues dizer?
- Mas...m...mas é isso mesmo: não há nada de errado e isso...simplesmente, não está certo."

sábado, 27 de novembro de 2010

Lema

"Para quem viaja ao encontro do sol, é sempre madrugada" Helena Kolody

Há mais de uma semana que não vejo o mar...

Sábado: atulhada de trabalho.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Literacia: Conceito Novo?

"Entende-se por literacia como a capacidade de cada indivíduo compreender e usar a informação escrita contida em vários materiais impressos, de modo a atingir os seus objectivos, a desenvolver os seus próprios conhecimentos e potencialidades e a participar activamente na sociedade. A definição de literacia vai para além da mera compreensão e descodificação de textos, para incluir um conjunto de capacidades de processamento de informação que os adultos usam na resolução de tarefas associadas com o trabalho, a vida pessoal e os contextos sociais.

A atenção crescente que a literacia tem tido nos últimos anos é em parte atribuída ao crescimento exponencial da quantidade de informação disponível, bem como, ao predomínio crescente dos formatos digitais."

colhido em:
http://literaciadainformacao.web.simplesnet.pt/Literacia_da_informacao.htm

Combates pela Leitura e pela Literacia

Durante um ano, nos concelhos de Alcobaça e Nazaré, dedicados a professores, mas abertos a outros «combatentes».

O arranque foi muito bom. Agorinha há pouco.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Greve que eu queria

O dia amanheceu glorioso, com um sol quentinho que parece um S. Martinho retardado. Este e o rom-rom feliz do meu novo gato, garantem-me a paz e a tranquilidade de um lar feliz.
Existe no entanto um desconforto que não se coíbe perante as mais simples noções de bem-estar, como o acordar tarde ou o passeio pelos campos que reservei e executei hoje, durante a manhã. Eu não estou convicta e confortável com a minha manifestação de greve hoje.
Não podia deixar de a fazer, pois considero que o estado a que chegámos neste país é miserável, sobretudo ao nível moral. Não me identifico com nenhuma das forças políticas que compactuam no Parlamento com leis de excepção para o que lhes interessa; sinto-me o Zé Povinho albardado e montado pelos políticos, que passeiam felizes, depois de alimentados com o leite da Porca-Mãe:A política. Sinto-me roubada e gozada no meu protesto que, dando ao governo um sinal de descontentamento, o ajuda a embolsar umas massas que, como não estão contabilizadas em nenhuma medida de austeridade, talvez possam ser facilmente desviadas para um saco cor-de-burro-quando-foge, ou melhor, cor-de-esperto-que-se-abotoa quando o burro já sem cor e sem energia para fugir só espinoteia, fazendo uma triste figura.
Mas que poderia eu fazer?
Ouço frequentemente a voz da «camarada cassete Ana Rita», sindicalista estúpida e obtusa que dirige por vezes as reuniões sindicais na minha escola e que me disse uma vez, perante a minha posição de não integrar uma greve marcada para ima sexta-feira: "Quer dizer, como não fazemos a greve quando a colega quer - a meio da semana - não concorda com esta e não faz. Assim não faz nenhuma e não mostra a sua posição."
Não fiz nessa altura, mas integrei com muito gosto a mega-manifestação marcada para um feriado, em que podia, sem receio de perda de credibilidade face à opinião pública, mostrar que o meu desagrado é real e que não faço greve para ter um fim de semana maior.
Esta greve é ao meio da semana. Porquê então o meu desconforto? Porque não acredito que a greve resolva nada, as medidas do governo não podem voltar para trás, estão a fazer o que tem de ser feito, depois de séculos (verdadeiramente) a fazer o que não podia ser feito.
Para quê fazer greve então? Para mostrar ao governo que não estamos contentes? Isso é uma evidência. Nem mesmo políticos precisam que isso lhes seja mostrado!...
Para ficarmos de bem com as nossas consciências? Talvez...sim, claro. É isso.
Mas a greve que eu queria era a greve da acção e da inteligência, do esclarecimento. Eu hoje queria estar na escola, a falar com os meus alunos sobre as razões do descontentamento, os perigos da situação política e económica, a necessidade de um esforço colectivo. Eu queria substituir as minhas aulas por sessões de esclarecimento, feitas por cada um de nós, mostrando que somos cidadãos activos, conscientes e empenhados.
Mas a greve que eu queria não existe. Se eu estivesse lá, a esclarecer os meus alunos (e por contágio, os pais) os meus colegas iam achar que eu não estava a fazer greve, os sindicalistas iriam arrumar-me na caixa dos fura-greves, o Ministério não leria os sumários, e parte dos pais não se importaria com nada disso, porque os miúdos estiveram guardados e é isso que à maior parte interessa.
Eu não posso fazer a greve que creio ser necessária. Eu só posso fazer esta greve.
Tomo posição à minha maneira, vendo os testes dos alunos (que, felizmente, me vêm recompensando o esforço) e esclarecendo-os amanhã que o dia da greve foi dispendido em prol deles, porque, apesar de me irem descontar este dia de ordenado, eu nunca disse que não queria trabalhar.
E aproveito para tomar, aqui, outra resolução: tenho de deixar de usar o plural, porque, afinal de contas (que é o que interessa numa sociedade capitalista) quem é que eu penso que represento? Onde estão os "nós" na sociedade do «salve-se quem puder»? Creio até, que também esta expressão já está desactualizada, pois ainda revela - apesar de tudo - um espírito colectivo. Agora é mesmo «Eu por mim e os outros por eles».
Eu não queria viver nesta sociedade. Eu queria poder fazer a greve que de facto se opusesse, com inteligência e eficácia, a este estado de coisas: esclarecendo, agitando, minando o futuro com bombas de solidariedade e entre-ajuda...

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Greve Geral

"O refúgio mais seguro do mundo é a liberdade do nosso ser."
 Tarthang Tulku

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A «Combinação» continua a ser uma peça íntima...

"Não importa o quanto às vezes seja difícil, o quanto às vezes eu me atrapalhe, o quanto às vezes eu seja a densa nuvem que esconde o meu próprio sol, quantas vezes seja preciso recomeçar: Combinei comigo não desistir de mim."

Ana Jácomo

domingo, 21 de novembro de 2010

sábado, 20 de novembro de 2010

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Te Queria...

"Para jardim te queria.
Te queria para gume
ou o frio das espadas.
Te queria para lume.
Para orvalho te queria
sobre as horas transtornadas.


Para a boca te queria.
Te queria para entrar
e partir pela cintura.
Para barco te queria.
Te queria para ser
canção breve, chama pura."
 
eugénio de andrade : variações em tom menor
colhido em: http://serportuguesserportugues.blogspot.com/

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Amor Clandestino



"A noite vinha fria
Negras sombras a rondavam
Era meia-noite
E o meu amor tardava


A nossa casa, a nossa vida
Foi de novo revirada
À meia-noite
O meu amor não estava


Ai, eu não sei aonde ele está
Se à nossa casa voltará
Foi esse o nosso compromisso

E acaso nos tocar o azar
O combinado é não esperar
Que o nosso amor é clandestino

Com o bebé, escondida,
Quis lá eu saber, esperei
Era meia-noite
E o meu amor tardava

E arranhada pelas silvas
Sei lá eu o que desejei:
Não voltar nunca...
Amantes, outra casa...

E quando ele por fim chegou
Trazia as flores que apanhou
E um brinquedo pró menino

E quando a guarda apontou
Fui eu quem o abraçou
Que o nosso amor é clandestino"

Clandestino (Deolinda)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

"XXXV - Por que ainda ninguém se lembrou de pintar uma mulher nua de óculos?"

Mário Quintana; Coisas Numeradas de Um a Trinta e Cinco

terça-feira, 16 de novembro de 2010

José Saramago teria feito hoje 88 anos

Uma coisa bonita, que tenho observado nas homenagens que vão sendo notícia, é a leitura de excertos das suas obras. Parece-me a melhor homenagem para um escritor.

Solitude (para lá dos dicionários)

Não foi em vão

"Agora posso ir e não olhar pra trás
Passado tudo aquilo que se desfaz
Foi bom  tever mais uma vez, saber te perdoar
E dar por finda a mágoa desse mal amar


Hoje quero crer que não foi mesmo em vão
Escolho solitude à solidão
Foi bom te ter mais uma vez, poder te abandonar
E dar por finda a mágoa de um mal amar


Quem feriu meu coração fui eu, mais ninguém
Quem feriu meu coração foi você também

Agora posso ir e não olhar pra trás
Passado tudo aquilo que se desfaz
Foi bom te ver mais uma vez, poder te perdoar
E dar por finda a mágoa de um mal amar

Hoje quero crer que não foi mesmo em vão
Escolho solitude à solidão
Foi bom te ter mais uma vez, saber te abandonar
E dar por finda a mágoa desse mal amar


Quem feriu meu coração fui eu, mais ninguém
Quem feriu teu coração foi você também
Quem feriu meu coração fui eu, mais ninguém
Quem feriu teu coração foi você também"

Samba interpretado pela Orquestra Imperial
Letra: Thalma de Freitas

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Para o melhor e o pior:

"Para aperfeiçoar o casamento e torná-lo mais feliz, nossos legisladores criaram o casamento com separação de bens. Mas falta ainda um passo para que a felicidade dos cônjuges seja completa: a criação do casamento com separação de males."  Ruben Alves

domingo, 14 de novembro de 2010

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A partir de hoje

sou dona de apenas uma gata.

Haverá um paraíso dos gatos?...

Não mata...mas mói!

Mas há a vida

Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.

Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

Clarice Lispector  (1920-1977)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Televisão

Hoje tive «uma aberta» e resolvi vir almoçar a casa, a pé, fazendo umas pequenas compras pelo caminho.

Cheguei agora a casa e fui separar e arrumar o que tinha comprado.

Por norma, nunca vejo televisão antes do almoço, quer porque não tenho tempo, quer talvez também por ter sido habituada - no tempo em que não havia televisão a toda a hora - a ver os noticiários e os programas da noite.

Olhei para o relógio e resolvi ligar logo a televisão, pois assim não deixaria passar as ´primeiras notícias.

RTP1: «Matou o vizinho e diz que isso lhe foi ordenado pelo Diabo»

SIC: «Regou a namorada com ácido e agora é ininputável»

TVI: depoimentos da casa dos segredos.

Não valerá a pena comentar este inventário (que, infelizmente, não é inventado), pois não?

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Prémio Ironia (ou Desespero?)

José Carlos Malato, num programa Quem Quer Ser Milionário, incrível pela ignorância dos concorrentes:
- Amigo João: técnico de bibliotecas...Nós temos sempre ideia que o homem da biblioteca é um homem que sabe muito. Você é mais lombadas, não é?

Nove de Novembro

Esta data assim, um bocadinho cacofónica, era a data de aniversário da minha mãe.

Hoje pensei nela o dia todo...era inevitável.

Procurando o que escrever aqui, quase sem inspiração, "tropecei" nesta frase:

«O umbigo é uma cicatriz profunda da nossa primeira separação»
Georges Najjar Jr., Desaforismos, p. 134

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Portugalidade

Falava-se de Portugalidade ontem, no Jornal da Noite, a propósito do Portugal dos Pequenitos em Coimbra. Soube-me a Estado Novo o discurso e recordei a minha visita ao referido parque temático, já em adulta, e a sensação estranha que me causou, como se aquele Portugal nada tivesse a ver comigo...Ontem falou-se em contextualização das coisas e que não podíamos recusar ou abandonar (ou fingir que nos esquecemos) de algo que teve o seu sentido e a sua época, tal como não vamos apagar parte da História; antes explicá-la integrada no seu contexto próprio.

Reconheci razão no que ouvia. Fiquei a pensar no «destino» deste «povo pequenino», espalhado por todo o lado.

Nem de propósito conseguiria encontrar, se quisesse, um texto tão apropriado a esta temática, como o que encontrei, por acaso, ao continuar a leitura do discurso de D. Manuel Clemente, aquando da distinção com o prémio Pessoa:

"Vieira [o Pe. António Vieira] vê a exiguidade territorial como causa providencial do destino pátrio. Chegaria para berço, mas não para a sementeira  nem para o túmulo, porque Portugal só no mundo inteiro descansaria, sendo essa a sua glória, mesmo que trágico-marítima."

De facto, esta alma irrequieta, este desejo de se espalhar por aí, esse destino de viajante, aventureiro, «fura-vidas», saltimbanco e contador de histórias, parece habitar o «ser português», como se o torrão não nos chegasse, como se só «lá fora» nos realizássemos plenamente; nos cumpríssemos, enquanto Nação.

Mas a exiguidade das terras, é-o também, frequentemente das vistas. Desprezamos o que é nosso para louvar o que vem de fora...mesmo os nossos só são por nós verdadeiramente louvados, quando voltam carimbados do estrangeiro.

Que fado é este? Que destino é este que precisa de se exteriorizar antes de se interiorizar? Que estranho fenómeno nos faz não admirarmos companheiros do dia-a-dia, reduzindo-os na sua pequenez, ao invés de nos elevarmos na sua companhia?

Também D. Manuel Clemente evoca as palavras de António Vieira para vincar estas características do «ser português»:

"De várias maneiras reprovava Vieira a nossa incapacidade de mútua admiração, mesmo quando teríamos todas as razões para ela. Não resisto a citar aqui duas delas, por me parecer o autor por demais certeiro. Oiçamo-lo sempre a propósito de Santo António e ainda mais a nosso propósito: «Os mesmos que agora amam e veneram tanto a Santo António, se viveram em seu tempo, o haviam de aborrecer e perseguir; e as mesmas maravilhas que tanto celebram e encarecem, se foram obradas na sua pátria, as haviam de escurecer a aniquilar. (...) é consequência própria e natural da inveja perseguir os presentes e estimar os passados, matar os vivos e celebrar os mortos.» Como se dissesse que tanta luz nos ofusca e só a toleramos ao longe ou na sombra que deixe. Ainda hoje?
Pior ainda a segunda alusão, permanecendo a dificuldade em olharmo-nos de frente quando isso signifique o simples reconhecimento da qualidade do outro. Escreve Vieira: «(...) é necessário que advirtamos primeiro uma notável habilidade e astúcia, que usa a inveja para desluzir e escurecer as boas obras e para lhes envenenar e destruir a mesma bondade. E qual vos parece que será esta habilidade e astúcia? É que nunca olha para toda a obra boa de claro em claro, assim como é em si mesma; senão que sempre a procura tomar por um lado e por aquela parte ou ponta donde menos claramente se descobre a sua bondade, para ter em que morder e que arguir.» De novo nos perguntemos: ainda hoje?"

Sim, hoje, ontem, daqui a bocado, amanhã...

Será isto inevitável? Fará parte da Portugalidade uma certa pequenez mental, um certo bafio intelectual que nos enviesa o olhar e nos impede de medrar, procurando seguir o exemplo dos nossos melhores pares? Será que reconhecer o valor dos que nos estão próximos nos diminue em alguma coisa? Será que não conseguimos admirar por termos inveja de, nas mesmas condições, no mesmo contexto, um ter tido a coragem de fazer mais, de ser mais, de exigir mais de si, que nós próprios? Seria assim tão difícil reconhecer o mérito do outro? Será a inveja a causa da ferrugem do tempo que nos tolhe os movimentos em direcção ao futuro?...Não sei, mas dá que pensar!...

(As citações foram recolhidas em Revista Actual, Expresso, nº 1958, 8 de Maio de 2010)

domingo, 7 de novembro de 2010

Fábula sobre os currículos escolares, com proposta de banda sonora

"O galinheiro estava em polvorosa. Cocorocós de galos, cacarejos de galinha, tofracos de angolinhas, pios de pintinhos – tudo se misturava num barulho infernal. É que todos haviam sido convocados para uma assembléia para tratar de um assunto de grande importância qual seja, o fato de que vários ovos de um ninho terem sido comidos por um ladrão. E as pegadas eram inconfundíveis: o ladrão era uma raposa. Com um sonoro cocoricocó o galo Chantecler, pediu silêncio, expôs o problema e franqueou a palavra. Encarapitado no galho de uma goiabeira um galinho garnizé cantou estridente, sacudiu a crista para um lado e a barbela para o outro e se pôs a discursar. Era o Mundico, que viera de uma cidade grande e era formado em sociologia. . Ele adorava discursar. “Companheiros”, ele começou, “peço a sua atenção para as ponderações que vou fazer acerca da crise conjuntural em que nos encontramos. Charles Darwin foi o primeiro a mostrar que a história dos bichos é marcada pela luta de classes: os mais fortes devoram os mais fracos. Os leões comem os veados, os lobos comem os cordeiros, os gaviões comem as pombas, as raposas comem as galinhas. Os mais aptos sobrevivem; os outros morrem. Assim, a crise conjuntural em que nos encontramos nada mais é que uma manifestação da realidade estrutural que rege a história dos bichos. E o que é que faz com que as raposas sejam mais aptas do que nós? As raposas são mais aptas e nos devoram porque elas detém o monopólio de um saber que nós não temos. Somente nos libertaremos do jugo das raposas quando nos apropriarmos dos saberes que elas têm. E como se transmitem os saberes? Através da educação. Sugiro então que empreendamos uma reforma em nossos currículos e programas. Se, até hoje, nossos currículos e programas ensinavam aos nossos filhos saberes galináceos, de hoje em diante eles ensinarão saberes de raposa. Primeiro, teremos de educar os nossos olhos para que eles passem a ver como vêem as raposas. Onde é que as raposas tem os seus olhos? Na frente do focinho. E os nossos olhos, onde estão? Do lado. Educaremos os nossos olhos para que eles aprendam a olhar para frente. Segundo: teremos de re-educar o nosso andar. Raposas andam com quatro patas. Por isso valem o dobro que nós, que só temos duas patas. Como transformar duas patas em quatro? É simples. Por meio de um processo de adição. Nós, galinhas e galos, bípedes, passaremos a andar aos pares, um na frente, outro atrás, o de trás segurando o traseiro do que vai à frente, e assim seremos quadrúpedes. Terceiro: as raposas têm pêlos enquanto nós temos penas. Teremos de nos livrar de nossas penas para que no seu lugar cresçam pêlos. E os nossos rabos, ridículos uropígios, estimulados pelos pêlos, se alongarão para trás e se transformarão em rabos de raposa. Quarto: as raposas têm focinhos e nós temos bicos. Mas, o que é um focinho? Focinho é uma coisa sem bico. Ora, bastará então que extraiamos os nossos bicos para termos focinhos como as raposas. Assim, pela educação, nos apropriaremos dos saberes das raposas, espécie que por tantos milênios nos tem dominado. Será, então, o advento da liberdade!” Mundico se calou. Todos estava biquiabertos com a sua eloquência. Todos o aplaudiram. E todos concordaram com o seu projeto educacional. Galos e galinhas arrancaram umas às outras as suas penas e, peladas, aguardavam o crescimento dos pelos. Por meio de exercícios apropriados movimentavam seus olhos para que eles aprendessem a olhar para a frente. Desbicaram-se, lixando seus bicos em pedras ásperas. E andavam, como Mundico dissera, aos pares, um na frente e outro agarrado atrás… Mas parece que o curriculo de raposa não deu resultado. A raposa continuou a comer ovos dos ninhos e chegou mesmo a devorar um pintinho distraido. Começaram, então, a imaginar que ela tivesse também devorado o Sesfredo, um galo velho de pescoço pelado, vermelho, e que cantava com sotaque caipira e que desaparecera. Convocou-se então uma outra assembléia para discutir providências a serem tomadas, ante o fracasso do curriculo proposto por Mundico. Toda a população do galinheiro compareceu. E, para surpresa de todos, até mesmo o Sesfredo, que tomou lugar num galho de uma árvore muito alta, onde nenhum galo ou galinha jamais fora. “A gente pensava que você tinha sido devorado pela raposa”, cantou o Godofredo, forte galo índio. “Que nada”, disse Sesfredo. “É que me internei no spa do Urubuzão prá fazer uma reciclagem de vôo. Urubu é ave como nós. Mas raposa não come urubu. Raposa não come urubu porque urubu sabe voar. Raposa come galos e galinhas porque desaprendemos o uso de nossas asas….” Nesse momento uma angolinha que ficara de sentinela deu o alarme: “ Aí vem a raposa, aí vem a raposa, aí vem a raposa…” Foi o pânico, correria, cada um correndo para um lado. Mas ninguém sabia voar. A raposa, valendo-se da confusão, abocanhou uma galinha garnizé, já depenada e desbicada… Todo mundo entrou em pânico. Menos o o Sesfredo. Lá de cima ele abriu as asas e voou alto, muito alto, até parecia um urubu… Assim é: ave que sabe voar não há raposa que consiga pegar…"

Rubem Alves
colhido em http://rubemalvesdois.wordpress.com/

"Aprende a voar, companheiro
aprende a voar, companheiro
Que a maré se vai levantar
que a maré se vai levantar
Que a liberdade está a passar por aqui
que a liberdade está a passar por aqui
que a liberdade está a passar por aqui
Maré alta
Maré alta
Maré alta"

Adaptação da letra de Sérgio Godinho, "Aprende a nadar companheiro"

De Alma Lavada

por uma interessante Conferência do Professor Rui Vieira Nery, no Armazém das Artes, em Alcobaça, sobre As Músicas da República.

O "Saber" e o "Saber Dizer" deste musicólogo são notáveis!

sábado, 6 de novembro de 2010

Necessito Naufragar

"Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar


Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.


O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...


Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.


Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas."


Cecília Meireles (1901-1964)

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Arquitectura Da Sedução

"A mulher e a casa


Tua sedução é menos
de mulher do que de casa;
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la."

João Cabral de MeloNeto  (1920-1999)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

"A rapariga regressou ao balcão da loja de telemóveis: - Repare que, apesar de dizer que posso consultar a net no telemóvel, isto não liga. Colocou o cartão agora mesmo...
O jovem funcionário dispõe-se a resolver o problema: - Deixe-me ver...Ah! Claro! O cartão é novo, ainda não assumiu!
Ela, com ar matreiro: - E acha que ele vai demorar muito a assumir-se?
Ele, com ar de resposta: - Estas coisas às vezes demoram...embora hoje tudo seja mais rápido..."
A seta de Cupido atravessou, lesta, o balcão de atendimento.
O sentido de humor era, para ambos, uma qualidade irresistível: o namoro tornou-se uma barrigada de riso!

Hopeless

"Já tudo foi dito, mas como ninguém escuta, é preciso dizer tudo novamente."
André Gide
colhido em http://www.malhatlantica.pt/lestrangeiras_esag/frases-d-eantologia.htm

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ai!...

"Um dos alunos de uma turma do 9.o ano que visitou recentemente o núcleo da exposição "Ver a República" na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra perguntou - e parecia ser uma dúvida genuína - se o Latim era um país..."
colhido em
"Ser pessoa é acontecer em relação com os outros."
D. Manuel Clemente, Discurso de aceitação do Prémio Pessoa 2009

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dia dos Fiéis Defuntos

E os cemitérios transformam-se em jardins floridos, altares dos que habitam a nossa memória.

Um dos primeiros sinais da «hominização do Homem» é a existência de sepulturas, que, por analogia com as sociedades posteriores, associamos a um culto dos mortos pelas sociedades dos vivos.

É um bom dia para visitar um cemitério.

Ainda o Tempo

"Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim de sessenta segundos..."

José Saramago, Pequenas Memórias, p. 65

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Ilustração do Dia



















(Mirandela)

Dia de Todos os Santos

Os de casa não fazem milagres, já se sabe...