quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Lá no centro do mar

"Lá no centro do mar, lá nos confins
...
onde nascem os ventos, onde o sol
sobre as águas doiradas se demora;
Lá no espaço das fontes e verduras,
dos brandos animais, da terra virgem,
onde cantam as aves naturais:
Meu amor, minha ilha descoberta,
é de longe, da vida naufragada,
que descanso nas praias do teu ventre,
enquanto lentamente as mãos do vento,
ao passar sobre o peito e as colinas,
erguem ondas de fogo em movimento."


José Saramago in Provavelmente Alegria

31 de Janeiro

Em 1891 foi neste dia, no Porto, que se realizou a primeira tentativa de implantação da República em Portugal.
Antes de o aprender na Escola foi com a minha avó que eu soube.
Foi também o dia escolhido para a seu casamento, cerca de 30 anos depois. E penso que não foi por acaso.
Hoje, tantos anos passados, a muito menos daquele em que se vai esquecer a data e os herois da 1ª República Portuguesa, pensei que seria importante recordar esta data.
Hoje, que se fala em refundação, em crise do estado social, que se discute a escola pública...talvez fosse bom reler muitos dos textos dos verdadeiros republicanos, daqueles que, por todo o país, se desdobraram em colóquios e conferências, enchendo salas na crença de que o saber deve ser partilhado por todos e é condição de escolhas acertadas, incluindo as escolhas que se fazem para o rumo do país.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Uma preciosidade

http://youtu.be/G6p8dyKG1XQ

Sim

Sim.
Todos os poemas
São de amor
Pela rima,
Pelo ritmo,
Pelo brilho
Ou por alguém,
Alguma coisa
Que passava
Na hora
Em que a vida
Virava palavra.


Alice Ruiz  (1946 )

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Pedido Silenciado

"FICA COMIGO ESTA NOITE

Fica comigo esta noite
...
deixa que amanheça nos teus braços
embalada pelo rumor das tuas águas
abraça-me devagar
sem tempo
desenha com a tua boca o contorno do meu corpo
grava em mim o sabor deste momento
numa linguagem de beijos e suor

não me olhes
na ausência dos barcos que partiram
e talharam na memória não mais que um adeus
fica comigo esta noite
desvenda essa luz que a treva esconde
cala a urgência dos beijos que não demos
não perguntes quanto tempo dura a eternidade."


Clara Maria Barata (pré publicação em Quem Lê Sophia de Mello Breyner Andresen)

domingo, 27 de janeiro de 2013

Comunicado

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.

Miguel Torga (1907-1995)

O Sentimento de Si

A consciência é um tema que me fascina. A consciência histórica, a consciência pessoal, a consciência coletiva, a consciência da própria consciência... E a forma como estamos conscientes de nós próprios. A inteligência emocional e a memória emocional são outros temas subsidiários destas mesmas questões.
O título que roubei ao livro do Professor Damásio repousa na minha estante à espera  de dias com mais tempo e muita atenção desperta para raciocinar a cada frase, que o assunto é difícil...
Muito mais fácil é ver filmes ou episódios de séries sobre o assunto e é o que vou fazendo com uma série do AXN que me vem fascinando: Perception.
Daniel Pierce é um especialista em neurologia. Professor (brilhante) da Universidade é esquizofrénico e tem aguda consciência da sua doença que, no entanto, mantém "ativa" pois os seus sentidos apurados (mais agudos que o normal quando desequilibrados) fazem-no um excecional colaborador do FBI. E, claro, há um crimezito por episódio que nos mantém colado ao écran esperando que o nosso heroi nos desvende o vilão e as autoridades o afastem para sempre, dando-nos a paz tranquila com que vamos dormir, iludidos da justiça e previsibilidade deste nosso mundo.
Daniel Pierce é pois uma espécie de superheroi atormentado que tem ainda a vantagem de ser um excelente professor e conseguir esconder da maior parte do mundo o seu o desequilibrio, que é no fundo, também, a sua chancela de excepcionalidade.
Isto fascina-me. Coloca-me imensas questões. "Bebo" as aulas dele, com que quase sempre começa ou termina o episódio. Fico a refletir em tudo aquilo. (Claro que, para além da qualidade do argumento, devo acrescentar - para ser mesmo honesta - que o ar simultaneamente frágil e doutoral do ator exerce também um fascínio que não é só científico ou estudantil).
Mas até isso me faz refletir: o que é que nos atrai ou nos repulsa em cada coisa do nosso dia a dia. Porque escolhemos aquele filme, aquela roupa, aquela pessoa? O que é que determina as nossas orientações na vida? Os nossos gostos, os nossos amigos, os locais que frequentamos? E o que tem isso a ver com um "desenho" que nós ou outros fizeram para a nossa vida? É a educação, a personalidade, os genes, o ambiente socio-económico? O que nos torna quem somos?
No fundo tudo tem a ver com o que desejamos, o que queremos, o que valorizamos, o que priorizamos nas nossas vidas.
Num dos episódios de que mais gostei o Professor Daniel Pierce expunha: "A ambição estimula-nos a todos.(...). Freud quis convencer-nos que todos os ímpetos advém da libido. Lamento, Sigmund. O sucesso é neurologicamente determinado pela capacidade de cada um de se concentrar numa tarefa. A persistência é uma função de um sistema límbico ativo."
Então tudo tem a ver com aquilo que para cada um de nós é o sucesso e o que estamos dispostos a fazer por essa meta. Se para uns é ter muito dinheiro, para outros será o reconhecimento social, para outros os requisitos sociais de uma vida aceitável...para outros nada menos que o estrelato. Enfim.
Mas, no final do episódio, o Professor conclui: "Mas por mais motivados que sejamos por esse impulso neurológico natural a ambição não é algo de imutável.
Os sonhos mudam e mesmo que não sejamos capazes de escalar montanhas ainda temos hipóteses de poder movê-las."
Assim, o nosso sucesso talvez também possa ser medido pela nossa capacidade de adaptação, em cada momento, de reequacionar os nossos desejos (sonhos, ambições, metas, propósitos) à luz do que é possível de realizar. A justa medida entre a utopia que nos faz mover e a noção da realidade que nos permite não esmorecer e continuar.
E isto tem de ser medido em cada momento, constantemente, avaliando os sentimentos e consciência de nós mesmos e dos meios que nos rodeiam.
Que pena Daniel Pierce ser uma personagem de ficção...

Esclarecimento: o episódio estava gravado e isso permitiu-me citar as frases do Professor, não tenho uma capacidade assim tão grande de fixar "as deixas", mesmo as do fascinante Daniel Pierce.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Mudança de Idade

" Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
...
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer."


MIA COUTO  No livro "Tradutor de chuvas"

domingo, 20 de janeiro de 2013

Dá que pensar

Mais um Microconto roubado

"Namoravam há dois anos e conheciam-se melhor do que o caminho para casa. Quando discutiam, era sempre ela que dava o braço a torcer. Mas um dia ele usou demasiada força e ela teve de andar três semanas com gesso."

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Amor é...

decorar os sms dele como se fossem citações de Shakespear.

Neste Outono

" Neste outono, as pedras agasalham-se no cobertor
...
do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente
aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama
e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor,

saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste
(e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias
não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos

depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa
desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se
para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta
a que ninguém virá bater. Pergunto-me onde anda a tua
sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes

os solavancos de uma vida pequena ― bordar uma toalha
para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância
do punhal, viver à espera de uma dor que há-de chegar."


Maria do Rosário Pedreira

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Ausência

"Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
Ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
Magoa, que se limita à alma, mas que não deixa,
Por isso, de deixar alguns sinais - um peso
Nos olhos, no lugar da tua imagem, e
Um vazio nas mãos, como se tuas mãos lhes
Tivessem roubado o tacto. São estas as formas
Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
As coisas simples também podem ser complicadas,
Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz à tua memória; e a
Realidade aproxima-te de ti, agora que
Os dias que correm mais depressa, e as palavras
Ficam presas numa refracção de instantes,
Quando a tua voz me chama de dentro de
Mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
Como dizer que a tua ausência me dói."


Nuno Júdice

A Meu Favor

"A meu favor
...
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça."


Alexandre O'Neill

domingo, 13 de janeiro de 2013

O eterno retorno

"A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens." J. Le Goff

Hoje, encontrei esta frase no Facebook de uma amiga bem mais nova que eu, que mora do lado de lá do Atlântico e que se dedica, também, a estas coisas da Memória, da História, da Identidade, da presença do Passado no Presente a caminho do Futuro.

E foi um reencontro. Um reencontro com os princípios em que me formei, que nunca abandonei, mas que é bom recordar, com as palavras exatas que tínhamos de saber citar nos testes, nos trabalhos, nos fundamentos dos pensamentos que queríamos muito desenvolver como nossos na esteira dos deles. Recordar assim como as palavras do Passado moldaram o nosso Futuro da altura, que está agora presente no nosso Presente.

E agora, revigorada, vou preparar as aulas de amanhã, que serão o meu Presente a tentar influenciar o nosso Futuro.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

POEMA CIII

Bate a ave no muro do jardim celeste
...
e a alvorada tem um sabor de bosque e de regresso
que invade toda a terra. Quando os muros caem,
soltam-se os corações, exibem-se como laranjas cuja dor
se move entre a cor e a frescura. Feliz é o orgulho
dos escritores medíocres. Os outros batem-se contra os muros
procurando nova morte para o seu destino humano.
Meditam, recordam, acordam no mar.
A proximidade dos outros é uma conversa com a luz
que oferecem as palavras.
A voz perde-se ao longe, em lugares que pesam no peito,
junto de árvores discretamente floridas
como as oliveiras de Jerusalém
e cercada pela beleza juvenil da fala de outros tempos.
O pó das bibliotecas, dos arquivos, é antigo
como o canto dos pássaros,
e por detrás de um livro existe esforço,
existe formosura, e uma só verdade
que prolonga os beijos, chama rosas às rosas
e música à música. Mas o amor tece uma felicidade
menos robusta em regiões molhadas do cérebro,
onde se afundam naturezas impossíveis.
O anjo da memória tem nas mãos um livro
e a tarde interroga-o sobre a sua existência.
Definitivos na sua cegueira, os escritores medíocres
não encontram o mar,
e o campo que os cerca é tão invisível como o vento
ou a simples brisa que sopra das ideias.


Joaquim Pessoa

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Por uma Utopia de Ano Novo (ou uma nova utopia de ano, ou um ano novo de utopia...)

Vai, ano velho

Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.

Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nossso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
- de utopia.

Vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.


Affonso Romano de Sant'Anna

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Maria do Rosário Pedreira

Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas,
mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o
...
verão. E, se de noite as repito em surdina, no silêncio
do quarto, antes de adormecer, é como se de repente
as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses
em busca desses antigos recados levados pelo tempo:

Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo
e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas.
Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde
e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos.

Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão
do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos
do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela
música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever
as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo;
e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes.

Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta
meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias
afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo,
por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo
menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha
boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes.
 

Saudades

Os agradecimentos do novo CD da Ana Moura terminam com "À memória da minha Tessy que esperou que este disco estivesse terminado para me deixar."
Achei que era uma gata. E chorei a minha durante toda a (magnífica!) sequência de canções.