As leituras - como tudo na vida - têm tempos, ritmos, léxicos próprios: «Tudo tem o seu tempo», diziam os Antigos, e é bem verdade.
E vêm estas reflexões a propósito de quê? Da minha relação com um livro.
Deve haver cerca de dois ou três anos que o enfiei numa mala - maneirinho que ele é - para lhe ir dando uma vista de olhos entre o aqui e ali de um dia de muitos afazeres na capital. Anunciava-se o «missal» como uma síntese, acessível ao grande público.
Achei-o intragável! Comecei duas ou três vezes a mesma página, tentei lê-lo «na diagonal», espreitar mais à frente...um horror - não tinha ponta por onde se pegasse, pensei enfastiada.
Correram os dias e muitas outras leituras, nesta minha empreitada de estudo.
Hoje, antes de partir por aí, «bati com os olhos» nesse mesmo livro e pensei: Talvez tenhas alguma coisa que me interesse...
Cativo, de novo, dentro da mala, lá me acompanhou no meu périplo ensolarado.
E não é que foi «amor à segunda vista»?...
Mal abri o livro, as frases desfilavam-me diante dos olhos e do espírito como uma escrita coerente, interessante; vários parágrafos me despertaram o interesse e a possibilidade de os utilizar em citações, algumas tiradas me fizeram sorrir e - sobretudo - achei o livro muito bem escrito e muito pertinente.
Surpreendida comigo mesma recordei o nosso primeiro encontro: o que mudara? O livro não, certamente!
10 comentários:
Ah, nunca ouviu falar no bichinho da letra?!
São os animalinhos que andam a mudar o sentido do que está escrito, de modo que quando o vamos reler seja sempre uma novidade...
Claro que isto apenas acontece nos livros bem escritos, mas os de poesia são constantemente mudados pelos bichinhos da letra – essa a mais-valia extra que possuem.
Ah, bem, também fazem o mesmo nos grandes filmes. E nos quadros muito bem pintados... E na forma como vemos a vida...
Há quem identifique o bichinho da letra com a íris dos nossos olhos, mas devem ser boatos...
Ah, pode dizer essas coisas, que eu não vou levar «à letra».
Mas isto recorda-me (mais) um (triste) episódio em que não compreenderam a minha ironia.
Numa sala de professores, tentando eu inverter o sentido da conversa sobre calorias, em que me vi envolvida (sem culpa nenhuma, só porque estava a comer um bolo) disse: "E as meninas sabem o que são calorias? São uns bichinhos que vivem nas nossas gavetas e roupeiros e trabalham durante toda a noite para nos encolherem a roupa!"
O silêncio que sucede a uma piada marca o desastre de qualquer comediante.
Enquanto duas delas olhavam para mim, piscando os olhinhos e mantendo um meio-sorriso que dá para quase todas as situações, a terceira disse com a maior seriedade: "Ah a ti encolhem-te a roupa? Mas é que a mim alargam-me toda!"
Como não me podia rir, usei a desculpa dos filmes: "Vou à casa de banho retocar a maquilhagem", esperando que nenhuma delas me chamasse a atenção para o facto de eu não ter maquilhagem.
Óptimo, porque também detesto ter que levantar a bandeira dizendo: "Estava a brincar...".
Quanto aos bichinhos que encolhem a nossa roupa durante a noite chamam-se traças – podia lá ter relação com a comida!...
Mas não concorda de todo que cada vez que lemos, vemos, ouvimos uma obra de arte ela é diferente?
Não acha que na próxima vez que ouvir aquela sinfonia ela poderá ter um violino que não estava lá antes? Que naquela imagem, naquele parágrafo, está desta vez um sentido que nunca tínhamos visto antes?
Eu sei que é assim, não estou brincando... E até já disse antes que acho que o nosso estado de espírito é que lá põe a nuance, a cor pastel que não víramos, o acorde de que nunca déramos conta.
(Lá estou eu a portar-me mal, escrevendo demasiado. Desculpe, sim?)
Claro que concordo.
Por isso é que há obras que são intemporais: porque o presente sempre lhes vai encontrando sentido, que nunca é, certamente, o mesmo que outros encontraram.
Por isso eu proclamo a toda a hora a impossibilidade (e felizmente!) da objectividade.
Como dizia a minha avó: «Enquanto houver dois homens, há duas opiniões». Como diz o Poeta: «Vê moinhos? São moinhos/ Vê gigantes, são gigantes».
Ah, o "meu" Gedeão é ele próprio um gigante...
Estamos então de acordo em pelo menos uma coisa, voilà!, em quase um ano apenas ficámos a partir de agora a discordar de tudo o resto...
Demos a voz a outro poeta:
Canção do dia de sempre
Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...
Viver tão-só de momentos
Como estas nuvens no céu...
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...
Mário Quintana
(Concordo noutra coisa: não há nada mais descoroçoante do que explicar uma anedota...)
Mário Quintana e Paulo Leminski foram-me aqui apresentados por si, e aumentaram a minha paixão pelo Brasil.
Gedeão foi a minha «figura de convite» para a poesia. Por causa de um Professor que nos passou «Lágrima de Preta», que procurei para também passar aos meus alunos e encontrei o Gedeão todo e também lá volto muitas vezes.
Afinal estamos de acordo em muitas coisas! Até em que é bom discordarmos em muitas coisas!
:-)
Claro que é bom! Se concordássemos em tudo, sobre que "falaríamos"?
Mas, atenção:
«Ser diplomata é discordar sem ser discordante.
Millôr Fernandes
Não sou nada diplomata: quando discordo sou mesmo discordante, mas tento ser tolerante.
Tolerante soa-me sempre a paternalista, condescendente...uma forma superior de deixar os outros persistir no erro, coitados...
Prefiro a expressão Respeito, respeitador (embora, infelizmente, com muitos não consiga ir além do meu conceito de tolerância :-)
Tem razão (duas vezes no mesmo dia?), foi uma palavra mal escolhida.
Respeito é a palavra certa.
Peço desculpa pela insensibilidade.
Ah, Mestre. Não tem que pedir desculpa. Acho até um desassombro dizer assim que eu tenho razão! Estas coisas da convivência com diferentes opiniões nem sempre são a preto e branco. Não me parece que tenha sido uma insensibilidade...
Sonhos felizes, com sombras chinesas.
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