quarta-feira, 26 de maio de 2010

Batalha de Flores

A minha mãe era uma excelente narradora. Coloria de tal forma as histórias que narrava (para o melhor e para o pior) que nos sentíamos lá, vivenciávamos as cenas; éramos envolvidos na sequência dos acontecimentos.

Graças a isso há algumas memórias da minha infância que eu desconfio fortemente que resultam da sua narrativa viva e repetida e não de uma memória verdadeira. Mas isso agora não vem ao caso. Atesta só as qualidades de narradora da minha mãe: a voz, que assumia modulações diferentes, os olhos que ora se esbugalhavam ora se semicerravam e as mãos: as inimitáveis mãos narradoras da minha mãe.

Nunca se conseguia ficar indiferente a uma história narrada pela minha mãe. Arrancava exclamações de maravilhamento e gritos de horror, mas nunca, nunca, nos deixava na indiferença ou aborrecimento.

Hoje ela entrou-me pela memória em toda a sua plenitude narrativa, quando eu, fotografando flores nos jardins da Batalha, disse «de mim para comim»: "Ah! Que lindo! As Flores da Batalha! Faz-me lembrar as batalhas de flores que eram um espectáculo magnífico e que é uma pena terem deixado de se fazer!..."

E, de repente, travo às quatro rodas e digo: "Escrivaninha Maria: tu nunca viste uma batalha de flores! Como podes recordar e ter pena?"

Pois é: foram as narrativas da minha mãe, que lamentava o fim das «batalhas de flores», iniciativa que vivenciou várias vezes e narrou muitas, a ponto de eu sentir a falta de algo que nunca vivi.

Aqui ficam, portanto, algumas flores da Batalha, invocando, a propósito, as «falsas memórias» das «Batalhas de Flores»:










3 comentários:

Ninguém.pt disse...


Poema das flores


Se com flores se fizeram revoluções
que linda revolução daria este canteiro!

Quando o clarim do sol toca a matinas
ei-las que emergem do nocturno sono
e as brandas, tenras hastes se perfilam.
Estão fardadas de verde clorofila,
botões vermelhos, faixas amarelas,
penachos brancos que se balanceiam
em mesuras que a aragem determina.
É do regulamento ser viçoso
quando a seiva crepita nas nervuras
e frenética ascende aos altos vértices.

São flores e, como flores, abrem corolas
na memória dos homens.

Recorda o homem que no berço adormecia,
epiderme de flor num sorriso de flor,
e que entre flores correu quando era infante,
ébrio de cheiros,
abrindo os olhos grandes como flores.
Depois, a flor que ela prendeu entre os cabelos,
rede de borboletas, armadilha de unguentos,
o amor à flor dos lábios,
o amor dos lábios desdobrado em flor,
a flor na emboscada, comprometida e ingénua,
colaborante e alheia,
a flor no seu canteiro à espera que a exaltem,
que em respeito a violem
e em sagrado a venerem.

Flores estupefacientes, droga dos olhos, vício dos sentidos.

Ai flores, ai flores das verdes hastes!
A César o que é de César. Às flores o que é das flores.


António Gedeão

Escrivaninha disse...

Ai, que lindo, Mestre!
Não conhecia este poema de Gedeão.
«ébrio de cheiros»...Gedeão também nos transporta para o que narra em poesia.
Será que também tinha mãos narradoras? Dizem que a falar também ancantava os ouvintes.
Há pessoas que são muito maiores que o seu tempo!
E que ganham batalhas até com flores.

Ninguém.pt disse...


Olho as minhas mãos


Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anémonas do fundo do mar...
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras!
Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai secretando o pensamento
Como tecem as teias as aranhas.
A que mundo
Pertenço?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: "existo".
Porque apenas existem...
Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar...
Nem na estrela do céu nem na estrela do mar
Foi este o fim da Criação!
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos?
Quem faz — em mim — esta interrogação?


Mário Quintana