sábado, 22 de maio de 2010

Mais Platão, menos Prozac

Às vezes compramos os livros pelos títulos.

Eu gostei deste, aqui há uns anos e comprei-o. Mas foi uma desilusão. Achei tudo muito básico e nem sequer estava bem escrito. Lamentei a compra e arrumei o livro em qualquer lado e já não o vejo há muito tempo.

Mas hoje, agora, lembrei-me deste título, por causa do poema/comentário que recebi. Que me recordou uma situação engraçada; ou invulgar, ou especial, não sei, mas um bom conselho certamente: Numa consulta médica receitaram-me um livro de poesia!

Aqui há uns tempos o meu médico começou a falar de vários assuntos - ele é um óptimo conversador - e pergunta-me se eu conheço os poemas de Baudelaire, traduzidos por Graça Moura, com ilustrações de Mário Botas. Disse-lhe que não e ele escreveu-me tudo isto num papel, como se fosse uma «receita», para eu aviar.

Achei uma situação muito bonita, muito invulgar e pensei que tinha muita sorte de ter um médico que receitava poesia.

Mas o que é certo é que aviei as outras receitas e fiz certinho o tratamento recomendado, mas guardei, por aí, a receita de poesia e só me lembrei dela agora ao ler o poema de Baudelaire.

Talvez devesse ter seguido todas as prescrições médicas e talvez se todos nós lêssemos mais coisas bonitas não precisássemos de tanta medicação.

Lembrei-me então do título do livro - que vale só pelo conselho que encerra - e da «receita médica» de ler coisas bonitas, de qualidade.

Há médicos que levam a sério a ideia de receitar o que cada doente precisa. Mas alguns doentes, palermas, não cumprem as instruções todas.

20 comentários:

Ninguém.pt disse...

Bem, Miss Escrivaninha, não me parece que a poesia muitas vezes soturna, pessimista, deprimente, de Baudelaire seja indicada para substituir o "Prozac" – mas certamente o seu médico saberá o que receita...


O cachimbo


Trigueiro, negro, enfarruscado,
Sou o cachimbo d'um autor,
incorrigível fumador,
Que me tem já quase queimado.

Quando o persegue ingente dor,
Eu, a fumar, sou comparado
Ao fogareiro improvisado
Para o jantar d'um lenhador.

Vai envolver-lhe a tova mente
O fumo azul e transparente
Da minha boca em erupção...

A sua dor, prestes, se acalma;
Leva-lhe o fumo a paz à alma,
Vai alegrar-lhe o coração!


Charles Baudelaire

(Evito postar poesias que falem de morte, por exemplo, por saber que isso retira brilho às suas ferragens...)

Ninguém.pt disse...


Os mochos


Sob os freixos onde habitam,
Os mochos formam em filas;
Fugindo as rubras pupilas,
Mudos e quietos, meditam.

E assim permanecerão
Até o Sol se ir deitar
No leito enorme do mar,
Sob um sombrio edredão.

Do seu exemplo, tirai
Proveitoso ensinamento:
— Fugi do mundo, evitai

O bulício e o movimento...
Quem atrás de sombras vai,
Só logra arrependimento!


Charles Baudelaire

Ninguém.pt disse...

Como da receita constava o tradutor, informo Vexa. que em ambos os de cima foi Delfim Guimarães a traduzir.

Escrivaninha disse...

Vá lá, vá lá, não seja assim; não embirre com o médico por lhe tirar a exclusividade de Mestre da Poesia!...

Não deixa de ser notável que o médico - para além de ler poesia - fale de poesia com os doentes.

Mas, por acaso, acho que a conversa partiu de Mário Botas e a obra era para eu conhecer sobretudo as ilustrações.

Obrigada por não insistir na morte. Já é um assunto bem presente nos meus pensamentos, não preciso de relembrar.

Se bem que, temos sempre o pensamento optimista, de que, enquanto falamos de morte é sinal que estamos vivos. Esta foi quase tão boa como a frase de Lili Caneças, que estar morto é o contrário de estar vivo. Haverá alguma hipóese de Miss Caneças ser a encarnação de Monsieur de La Palisse?

Escrivaninha disse...

Ai! Estou emocionada. Só agora vi o 3º comentário. Delfim Guimarães? Delfim Guimarães um dos representantes da burguesia de início de século XX que desenvolveu a Amadora (deixando para trás os tempos da Porcalhota)?
Durante toda a minha infância brinquei no Parque Delfim Guimarães. :-)

Escrivaninha disse...

(Estava tão emocionada, que escrevi sem vígulas...Posso sempre dizer que foi ao estilo «Redacções da Guidinha»)

Ninguém.pt disse...

A Miss Escrivaninha lembra-se da Guidinha? Não acredito!

Deve ter lido nalguma republicação ou em talvez em livro – embora não me recorde de ver essas obras de "má" arte da escrita publicadas e livro.

Luís de Sttau Monteiro conseguia fazer passar por debaixo das barbas dos censores as coisas mais incríveis. Os coronéis não entendiam nada de textos que eram de uma clareza imensa.

Que bom recordar a Guidinha:

Eleições no Rebenta Canelas

Ena pai o que para aqui vai por causa das eleições! ena pai! quem não conhecesse o Rebenta Canelas cá da Graça e visse o que está a acontecer até era capaz de pensar que valia a pena tomar conta dele e que os vencedores iam ganhar muito com a vitória! é claro que as pessoas que sabem como as contas andam o que querem é estar de fora ai não! enfim o melhor é eu começar do princípio senão ninguém me entende pois os sócios do Rebenta Canelas da Graça Futebol Clube vão votar uma gerência nova e há os que são do pró e os que são do contra os que são do pró votam na gerência que está à frente do clube e os que são do contra votam contra ela está-se mesmo a ver que não podia deixar de ser assim os que são do pró findam a colar cartazes a dizer que está tudo bem e como têm muito pilim andam a colar cartazes nas paredes nas árvores em toda a parte só ainda não colaram cartazes nas costas da gente porque os distribuidores não têm comissão nisso senão já estávamos cartizados que era uma limpeza os que são do contra coitados não podem colar cartazes porque se os colarem vão parar à chana por andarem a fazer propaganda contra a moral da Graça que toda a gente sabe que é muito boa […]

Luís de Sttau Monteiro

(Desculpe a extensão, mas foi por uma boa causa!)

Ninguém.pt disse...

Não conheço o livro que o médico escrivânico receitou, mas nada tenho contra a receita.

Adoro Baudelaire, gosto do trabalho de tradutor e de poeta do sósia daquele tipo ultra-reaccionário da política e desconheço a ilustração que Mário Botas fez para essa obra.

Portanto, faz favor de não me incriminar junto do médico!...

Quanto ao Delfim Guimarães, é esse, de facto! Na literatura, do que conheço (e não é muito, confesso), gosto mais das traduções dele do que dos poemas que escreveu.

Enfim, gostos.

Escrivaninha disse...

Ser a filha mais nova de uma família onde se lia muito e se valorizavam os livros teve os seus efeitos. Li algumas coisas «antes do tempo» e esse é o caso da «Guidinha», que, confesso, da primeira vez que li só compreendi as piadas fáceis e o estilo «inovador» sem pontuação.
De facto, olhando agora para as datas, não sei como é que eu me consigo lembrar da Guidinha, mas lembro. Terá sido provavelmente lida à mesa, pela minha mãe ou uma das minhas irmãs e terei assim despertado o interesse.
Havia um livro lá em casa...
Mas reencontrei há pouco uma edição da Areal, de 2002 e comprei alegremente. E agora, vejo muito bem, que só percebi um décimo da Guidinha a primeira vez que a li.
Extraordinário!

Ninguém.pt disse...

Mas a Menina Escrivaninha era pequena, muito pequena.

Como explicar o não entendimento dos coronéis censores? Calhaus com olhos que viam muito mal, só podiam ser.

E isso acaba por me fazer sentir mal: fomos tiranizados durante 50 anos por pessoas de inteligência amibiana...

Ninguém.pt disse...

Desconversando...

Uma pergunta para a professora: conhecia esta notícia?

http://www.publico.es/314711?ct=referrer&cf=twitter&cfid=api

Não podemos exportar para lá as nossas múmias paralíticas?

Escrivaninha disse...

Que alegria! Chegar da aula de Yoga e ver estes desafios todos!

Adorei a «inteligência amibiana»! Espero que não haja muitas amibas a ler o meu blog, porque há toda uma «cultura amibiana» neste momento à nossa volta. A única - enorme - diferença é que ainda temos liberdade de expressão. Mas amibas, temos muitas. Creio que cada juventude partidária tem um espaço aquático próprio e que são os líderes em pessoa que as alimentam.

E isso leva-me para os americanos. Para além de - espantosamente ou talvez não - AMIBA ser a sigla da American Independent Business Aliance - a História é um assunto muito «amibiático» para os americanos. Em muitas Universidades americanas está proibido o estudo da teoria da evolução de Darwin, pois advogam o Criacionismo. Esta teoria consiste numa adaptação «politicamente correcta» dos textos bíblicos, defendendo a Criação de tudo, por um ser superior que - para não se chamar Deus, porque poderia afirmar alguma religião - é o ID: Inteligent Designer. (Amazing!)

O ensino da disciplina de História é um dos principais campos de batalha das ideologias no ensino. Isso é muito sensível na França, sobretudo na leccionação da expansão do Cristianismo (por quase dos muçulmanos) e foi nesse país que eu soube que na Suiça há manual único de História.

Por aqui eu defendo muito a necessidade de que a História deve sobretudo ensinar a analisar os documentos, que nos levarão - necessariamente - a julgamentos sobre o passado, que têm a ver com as nossas posições no presente. Claro que devemos «entender os temas à luz dos conceitos da época» para não sermos injustamente anacrónicos. Mas não acredito em História completamente objectiva: a História é vivida e escrita por sujeitos, com tudo o que isso implica.

E analisar a História escrita por cada historiador à luz do seu contexto específico? Um dos meus temas preferidos!

(Escrevi muito, já vi, mas...Não estava à espera que eu fosse parca em palavras no «assunto da minha vida», pois não?)

Ninguém.pt disse...

Não, francamente não estava à espera de monossílabos.

Gostei do filme dos líderes alimentando as amibas! E perguntei a mim mesmo: o que lhe darão?, o que lhes falta cada vez mais será o alimento dos bichinhos? Se assim for, a resposta é óbvia: alimentam as amibas com os seus próprios neurónios.

Também já estavam mortos, não funcionavam!

Quanto à história e ao seu ensino, sempre me fez confusão uma coisa.

Quando ensinamos a família a uma criança, não começamos pelo tetravô, vamos recuando a partir de pessoas que ela conhece: o pai, o pai do pai, o avô do pai, ...
Porque é que no ensino da história se faz ao contrário – primeiro os australopitecos e só depois (quase nunca!) o dia de ontem?

(Se considerar que é um abuso meu fazer consultas on-line sem pagar, ignore a pergunta, o.k.?)

Escrivaninha disse...

Tenho o maior prazer em responder-lhe o que sei, até porque estou perfeitamente de acordo consigo. No meu ano de estágio - um glorioso ano de greves de professores às avaliações - fizemos um trabalho sobre a perspectiva de ensinar a História «de trás para a frente», de hoje para ontem. Adorei fazer esse trabalho e continuo a achar que é possível, mas muito difícil: os quadros de conceitos que eles precisam estão «lá atrás»... por outro lado, agora, há uma dificuldade muito grande de compreender (verdadeiramente) o processo de hominização e as primeiras civilizações, pois a maior parte das crianças ainda não possui a capacidade de abstracção que isso exige. Eu, lembrando-me do meu caso como aluna, não percebi nada; lembro-me - com esta frontalidade e delicadeza que me caracterizam :-) - de ter dado um murro na carteira, em desespero, e perguntar: "Mas são homens ou são macacos?", porque «hominídeo» para mim não era nada.

Mas, para mudar o ensino da História (assunto em que eu estou pessoalmente empenhada) temos de mudar muito a mentalidade de quem manda, de quem dá as aulas e dos encarregados de educação, que agora, em muitos casos, acham que sabem mais e melhor o ofício de professor que o próprio.

E temos sempre - infelizmente - que equacionar que grandes mudanças (e essa era mesmo uma grande mudança) causam agitação, contestação e perda de votos para quem as implementa.

Ah! Voltámos ao espaço aquático e às pequenas grandes amibas!

Ninguém.pt disse...

Fiquei esclarecido sobre a sua posição, stôra!

É que me faz muita confusão os miúdos saberem (?) tudo sobre as características e o uso das ferramentas de sílex e desconhecerem tudo sobre o 25 de Abril, sobre a Revolução Francesa – para falar apenas de 2 momentos fundadores da nossa actual identidade.

É absurdo saberem (?) quem foi a "Lucy" e desconhecerem quem foi Melo Antunes. Acho que um não precisa excluir o outro, mas tendo que optar não tenho qualquer dúvida sobre qual me calaria.

Obrigado!

(Quanto às amibas, já conhece a minha solução: retirar a liderança aos líderes – assumirmos nós o nosso destino nas nossas mãos.)

Ninguém.pt disse...

Peço desculpa por não ter começado por apresentar esta citação, não quis com isso passar nenhuma rasteira à Miss Escrivaninha.

Já que concordamos ambos, aqui fica. Tenho a certeza de que a conhecia, mas é apenas para ilustrar a lição que acabou de nos dar.


”Quando se tem demasiada curiosidade acerca das coisas que se faziam nos séculos passados, fica-se quase sempre na grande ignorância das que têm lugar no presente.”

René Descartes

Escrivaninha disse...

Não me parece nenhuma rasteira. Para mim a disciplina de História não deveria de servir para saber muitas coisas sobre o passado, mas para saber interpretar o presente.

Não querendo «armar-me em carapau de corrida» muitas das aulas de História serão «secas» monumentais.

Costumo dizer aos meus alunos que saber muitos factos e muitos pormenores não é História é erudição; que isso normalmente serve para ganhar concursos televisivos, mas, no dia-a-dia de pouco mais serve (a não ser para impressionar os outros, claro).

É evidente que eu acho que dou bem as aulas de História. Não vou dizer o contrário, até porque me esforço por isso. Mas também lhe digo que está cada vez mais difícil. Os alunos não têm hábitos de pensar e os paizinhos (sei que já «malhei» neles antes, mas está mesmo a ser complicado) querem é que os meninos tenham boas notas. Coisas fáceis de decorar, escrever e esquecer.

Juntando a isto a febre estatística do sucesso (para impressionar a Europa e o mundo), creio que pode avaliar as dificuldades que um professor de História enfrenta hoje.

Creio que a disciplina de História (tal como a de Filosofia) por «ensinar a pensar» também não interessam muito a quem governa. Podem ser «subversivas»...

E, estamos sempre a falar do mesmo, não é?

Mas um dos meus problemas actuais é que a maior parte das pessoas não quer pensar nem ouvir quem pensa. Ter quem mande, quem indique o caminho, é o mais fácil. E a sociedade está a enveredar pelo mais fácil. Assustadoramente.

Escrivaninha disse...

E esta, hem?

Fizemos o nosso próprio «plano inclinado», com citações, opiniões e busca de soluções.

Malhámos nos do costume, concluímos o costume e vamos continuar «na forma do costume».

Era assim que a minha avó e a vizinha escreviam as cartas para os familiares distantes: "Nós cá vamos, na forma do costume."

Não sei se é um bom costume, mas «a gente acostuma-se»...

Ninguém.pt disse...

Tem razão (não costumo dar-lha assim...).

Durma bem, sonhando-se uma Escrivaninha de embutidos de madre-pérola sobre sândalo.

(Já cumpriu mais umas horas extraordinárias sem pagamento...)

josé luís disse...

quando vi que "mais platão, menos prozac" tinha 19 comentários não pude evitar... este comentário não o é, mas arredonda o número...

[na verificação de palavras pedem-me introduza os caracteres «parvon» - nunca foram tão apropriados como comntário ao que não o é :)]