sábado, 15 de maio de 2010

Ler: «Tão natural como a minha sede»

Não me lembro de como aprendi a ler.
Lembro-me de querer aprender a ler e lembro-me de ler, mas não do processo de passagem de um ponto ao outro.
Há uns anos, quando acompanhei o processo de uma criança aprender a ler, compreendi como para ele era difícil, penoso, por etapas...um sacrifício. Foi aí que eu tentei lembrar-me desse caminho e...não me lembro.
Parece que não deve ter sido difícil, deve ter sido algo natural, fácil, agradável (lúdico, dir-se-ia agora). Quase como se eu já soubesse e não soubesse que sabia. Um processo quase socrático - Meu Deus! Esta expressão agora adquiriu outras conotações... - que já me tem acontecido noutras situações. Será que é verdade? Que nós temos os conhecimentos dentro de nós? Que já nascemos com uma quantidade de potencialidades e que o crescimento não faz mais do que desenvolvê-las? Não estou a falar do destino e da predestinação. Ou estou?...Não, é mais predisposição.
Pensando no meu caso eu nunca tive nenhum interesse pelos números e pelas ciências e sempre fui «toda virada para as letras».
Às vezes ponho-me a pensar no que seria a minha vida se eu não soubesse ler...E sinto um arrepio. E uma imensa solidariedade com todas as mulheres que viveram antes de mim e que viram vedado «o mundo das letras» à sua condição feminina.
Não me lembro de aprender a ler. É uma coisa tão natural ou tão antiga em mim que não o recordo, como o primeiro choro ao nascer, o primeiro banho, a primeira papa. Tudo tem uma aprendizagem e eu devo ter aprendido a ler. Claro que eu aprendi a ler. Mas não me deve ter custado nada.

7 comentários:

Ninguém.pt disse...


Louvor do aprender


Aprende o mais simples! Pra aqueles
Cujo tempo chegou
Nunca é tarde de mais!
Aprende o abc, não chega, mas
Aprende-o! E não te enfades!
Começa! Tens de saber tudo!
Tens de tomar a chefia!

Aprende, homem do asilo!
Aprende, homem na prisão!
Aprende, mulher na cozinha!
Aprende, sexagenária!
Tens de tomar a chefia!

Frequenta a escola, homem sem casa!
Arranja saber, homem com frio!
Faminto, pega no livro: é uma arma.
Tens de tomar a chefia.

Não te acanhes de perguntar, companheiro!
Não deixes que te metam patranhas na cabeça:
Vê c'os teus próprios olhos!
O que tu mesmo não sabes
Não o sabes.
Verifica a conta:
És tu que a pagas.
Põe o dedo em cada parcela,
Pergunta: Como aparece isto aqui?
Tens de tomar a chefia.


Bertold Brecht

Ninguém.pt disse...

Aprendemos com mais esforço o que não é obviamente necessário e aplicamo-nos mais para aprender aquilo de que vemos poder retirar vantagem imediata. Ou aprendemos por mimetismo, macaquinhos de imitação que somos...

(Aprendemos a andar porque isso nos é útil de imediato – primeiro porque a posição de pé nos torna mais altos e depois porque andar nos leva mais longe. E porque queremos imitar os mais crescidos.)

Na minha geração e nas anteriores, com tão pouca gente a saber ler, não tendo ninguém que nos lesse histórias, quando quase todas as saídas profissionais acessíveis não exigiam saber ler – aprender a ler era quase um castigo: "Pra que serve isto?" (O Brecht acima tentava explicar a necessidade aos explorados.)

Agora, a minha neta (4 anos) está ansiosa para aprender a ler porque isso lhe traz vantagens evidentes: pode ler ela própria os livros que sempre lhe leram, as legendas dos filmes, os jogos, os computadores. Tudo apela a (exige!) que aprenda a ler – e até já conhece a maior parte das letras.

Acabei, portanto, de concluir que a Escrivaninha é da geração da minha neta!

(Lá me estou portando mal... Nunca mais aprendo!)

Escrivaninha disse...

Ah, Mestre, é avô! Por isso gosta tanto da palavra ternura.

(A palavra ternura rima muito bem com a palavra avós. E os avós são tão importantes na educação das crianças!)

Claro que não faço parte da geração da sua netinha! :-)E aprendi as letras mais tarde do que ela. Acho que deve ter sido aos 6 anos, quando entrei para a Escola (e ainda não saí. Apre!)

Embora na minha geração - espero - a maior parte das pessoas sabe ler. Ou pelo menos tem obrigação de saber. Mas...depois temos o problema - ou a diferença - daquilo que cada um faz com a sua capacidade de ler. A maior parte das pessoas que sabe ler não exerce. Espera que alguém lhe leia, lhe indique, lhe aponte.

Saber é poder. Mas, cada vez me convenço mais, que a maior parte das pessoas não quer poder, porque isso implica responsabilidade.

Perguntar - como dizia o Brecht - informar-se, interpretar, pensar...tomar decisões. Grande parte das pessoas demite-se disto, o que me assusta. Muito.

Estive a ver o Plano Inclinado e gostei muito, mas fico sempre com a sensação que somos um país governado por homens, bem-falantes, sóbrios, vestidos de escuro e que se riem pouco.

Bem, já me estou a desviar do que queria aqui colocar a discussão: o que é uma geração? Há uns tempos dizia-me uma amiga que lhe ensinaram que eram 25 anos. No dicionário diz que é "conjunto de indivíduos da mesma época; duração média de vida de um homem". Ora a duração média de vida é muito mais - felizmente - que 25 anos, já nem é a idade em que se começa a ter filhos, pois a idade da maternidade e paternidade vem sendo adiada...O que será então uma geração? Eu e o Mestre partilhamos um conjunto de valores. Seremos da mesma geração? Mas eu, às vezes, sinto-me tão longínqua de quem tem só menos 10 anos do que eu...O que é isso de ser da mesma geração? Será uma questão de idade ou de opinião? Ou de posicionamento perante a vida?

(Ai! Ai! Ai! Olhe o lençol que eu escrevi!...)

Ninguém.pt disse...

Exercer o poder (porque ter, todos temos...) não só é cansativo como nos priva do alívio que é ter sempre alguém a quem apontar o dedo – o culpado é quem detém o poder, nunca eu!


Onde houver uma árvore para plantar, planta-a tu.
Onde houver um erro para emendar, emenda-o tu.
Onde houver um esforço de que todos fogem, fá-lo tu.
Sê tu aquele que afasta as pedras do caminho.


Gabriela Mistral

Claro que estava brincando, sempre soube que a Escrivaninha era da década de 60 – diz aqui em baixo...

Foi nessa década que aprendi o significado da palavra "ternura" – e, paradoxalmente, no meio da violência que era condenar um povo à miséria. A ternura só não era escondida pelos deserdados da sorte e no meio deles era impossível ignorar o significado da palavra.

Quanto às gerações, a minha opinião é que, a nível familiar, cada uma das camadas de ramos da árvore é uma geração – a geração dos avós, dos pais, dos filhos, dos netos...

Na sociedade acho mais difícil de definir, mas parece que a "mudança" de geração terá mais a ver com a assimilação das grandes mudanças sociais, técnicas, económicas, etc.
Só assim se explica que pessoas de diferentes idades possam sentir-se da mesma geração e, simultaneamente, pessoas quase da mesma idade se sintam de gerações diferentes.

(Acho que, a escrever assim, temos que aumentar o número de páginas do blogue...)

Ninguém.pt disse...

Por falar em ternura, um ternurento poema de um sósia daquele tipo muito esquisito e ultra-reaccionário da política...

as meninas

as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços bóias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:

entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.

a água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.

e ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.


Vasco Graça Moura

Escrivaninha disse...

Uma ternura, de facto.

Os sósias que por aí andam também dava um bom tema de discussão ou até mesmo um blogue inteiro :-)

Bons sonhos, Mestre!

Ninguém.pt disse...

Boa noite.

Sonhe com ternuras, já que delas falámos.