quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Poesia Dita

"Quem me dera ter um jardim e saber das plantas e pô-las a florir e aquilo resistir, ou saber as que são de inverno e as que são de verão e funcionar como um indutor de beleza, seguro e consequente, durante o ano inteiro. Quem me dera que se visse alguma beleza que eu criasse, que eu pudesse oferecer, quem me dera que fosse uma beleza de perfumar e estivesse diante da minha casa por onde passassem as pessoas a ficarem alegres por ali passarem. Quem me dera que os poemas fossem coisas de corolas e cores e perdurassem inverno e verão, perfumando diante da minha casa.

Um poema onde as abelhas pousassem. Que incrível seria se houvesse um poema que soubesse oferecer pólen às abelhas, garrido como se dissesse as coisas às cores, intenso como se tivesse fragrância, delicado como se pudesse morrer. Um poema que pudesse morrer. Um que criasse em nós a urgência de o nutrir, vigiar, cuidar com as forças todas para que perdurasse como milagre vivo por gerações e gerações. Prezamos sempre melhor o que é passível de ser perdido para sempre. Queria poemas assim, à medida de mim que me vou perdendo para sempre lentamente.

Ando de mal com a poesia porque quando me deixo mais sozinho com ela me magoa todo, a fazer-me buracos na alma, a fazer-me buracos nos olhos. Vejo o mundo todo estragado por causa da poesia, porque quis sempre muito mais fantasia das coisas do que aquela que se permite e o ficarmos velhos não nos perdoa os sonhos diurnos, não nos perdoa sequer muita distracção. (...)

Fico de mal com a poesia porque me convence de ser a arma contra todos os problemas do mundo quando o mundo progride nas doenças e não sou guerreiro nenhum armado com um verso. (...)"

valter hugo mãe, Autobiografia imaginária: Um poema que pudesse morrer, JL, nº 1044

2 comentários:

Ninguém.pt disse...

Muito lindo, entes "proema". Obrigado, Miss!

E "proema" com "proema" se paga:

Canta

Atreve-te a julgar. Julga os outros julgando-te a ti mesmo.
A natureza das coisas é a tua natureza. Respira-te, despe-te,
faz amor com as tuas convicções, não te limites a sorrir
quando não sabes mais o que dizer. Os teus dentes estão lavados,
as tuas mãos são amáveis, mas falta-te decisão nos passos e firmeza nos gestos.
Procura-te. Tenta encontrar-te antes que te agarre a voracidade do tempo.
Faz as coisas com paixão. Uma paixão irrequieta que não te dê descanso
e te faça doer a respiração. Aspira o ar, bebe-o com força, é teu, nem um cêntimo pagarás por ele.
Quanto deves é à vida, o que deves é a ti mesmo. Canta.
Canta a água e a montanha e o pescoço do rio,
e o beijo que deste e o beijo que darás, canta
o trabalho doce da abelha e a paciência com que crescem as árvores,
canta cada momento que partilhas com amigos, e cada amigo
como um astro que desponta no firmamento breve do teu corpo.
E canta o amor. E canta tudo o que tiveres razão para cantar.
E o que não souberes e o que não entenderes, canta.
Não fujas da alegria. A própria dor ajuda-te a medir
a felicidade. Carrega nos teus ombros os séculos passados e os séculos vindouros,
muito do pó que sacodes já foi vida, talvez beleza, orgulho, pedaços de prazer.
A estrela que contemplas talvez já não exista, quem sabe,
o que te ajudou a ser vida de quantas vidas precisou. Canta!
Se sentires medo, canta. Mas se em ti não couber a alegria, não pares de cantar.
Canta. Canta. Canta. Canta. Canta. Constrói o teu amor, vive o teu amor,
ama o teu amor. De tudo o que as pessoas querem, o que mais querem é o amor.
Sem ele, nada nunca foi igual, nada é igual, nada será igual alguma vez.
Canta. Enquanto esperas, canta.
Canta quando não quiseres esperar.
Canta se não encontrares mais esperança. E canta quando a esperança te encontrar.
Canta porque te apetece cantar e porque gostas de cantar e porque sentes que é preciso cantar.
E canta quando já não for preciso. Canta porque és livre.
E canta se te falta a liberdade.


Joaquim Pessoa

Escrivaninha disse...

"Cantarei, até que a voz me doa!" (independentemente dos ouvidos dos outros :-)