domingo, 3 de outubro de 2010

Azul Memória

Hoje tenho uma boqueira. Uma coisa chata, instalada no canto da boca, que me seca os lábios, faz uma pequena crosta e se torna incomodativo.

Apliquei uma pomada que tenho cá por casa, daquelas coisas milagrosas, que curam quase tudo o que são pequenas maleitas. Lembrei-me então que quando era criança tinha isto frequentemente. A minha avó levava-me à drogaria, onde comprava sabão amarelo em barra e ácidos para matar formigas e ratos, e pedia uma pedrinha azul. Acho que era azul metileno ou qualquer coisa parecida. Eu devia esfregar de vez em quando o lábio com aquilo, mas ter muito cuidado para não pôr dentro da boca ou queimar demais a boqueira.

Era um tratamento que sempre me deixava desconfortável, pois, além de aquilo ter sido comprado no mesmo local que os raticidas, a minha avó falava como se fosse muito perigoso. Mas se era perigoso, porque é que ela me comprava aquilo?...

Agora será impossível saber. Já pesquisei aqui pela net e verifiquei que é um corante usado em questões químicas e também em medicina.

Hoje vou continuar a pôr a pomada cá de casa. Mas gostei de tirar este azul da memória e guardá-lo por aqui.

3 comentários:

Ninguém.pt disse...


A avó


A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha!...
Teve tantos desenganos!
Ficou branquinha, branquinha,
Com os desgostos humanos.
Hoje, na sua cadeira,
Repousa, pálida e fria,
Depois de tanta canseira:
E cochila todo o dia,
E cochila a noite inteira.
Às vezes, porém, o bando
Dos netos invade a sala...
Entram rindo e papagueando:
Este briga, aquele fala,
Aquele dança, pulando...
A velha acorda sorrindo.
E a alegria a transfigura;
Seu rosto fica mais lindo,
Vendo tanta travessura,
E tanto barulho ouvindo.

Chama os netos adorados,
Beija-os, e, tremulamente,
Passa os dedos engelhados,
Lentamente, lentamente,
Por seus cabelos doirados.
Fica mais moça, e palpita,
E recupera a memória,
Quando um dos netinhos grita:
“Ó vovó! conte uma história!
Conte uma história bonita!"
Então, com frases pausadas,
Conta histórias de quimeras,
Em que há palácios de fadas,
E feiticeiras, e feras,
E princesas encantadas...
E os netinhos estremecem,
Os contos acompanhando,
E as travessuras esquecem,
— Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem...


Olavo Bilac

Já não se fazem avós como antigamente... nem eu nunca tive a sorte de ter uma avó, mas tento ser "avó" agora.

Escrivaninha disse...

Eu tive. Uma avó assim, cabelinho todo branco e ternura a transbordar, mesmo dentro da tristeza dos seus olhos. A minha avó foi também bisavó e os bisnetos ainda a recordam assim.
Histórias...confesso que não me lembro. Anedotas, canções e historietas, isso sim.
E malandra! E republicana!
Agora, que se comemora a República, lembro-me muito da minha avó, que dizia com orgulho que o seu pai era tão republicano que chegou a ser suspeito da morte do Sidónio e que tinha como figura quase de culto, um boneco que representava o Bernardino Machado, Presidente que tinha ido à escola dela, no dia da árvore.
Tenho muitas, muitas saudades dela!

Ninguém.pt disse...

Que sorte, Miss! Assim já sabe exactamente como irá ser quando for avó...

E, quando eu era catraio, essas coisas ao canto da boca chamavam-se "beijos mal dados"...

E curavam-se apenas com o tempo.