segunda-feira, 25 de outubro de 2010

História: Os Conteúdos e os Contidos

"Professora: Claro que há sempre matérias da História que gostamos mais e outras menos; ela é tão vasta!
Aluno: Eu não gosto é daquela matéria...aquela dos operários, sujos, miseráveis...Não gosto nada!
Professora: Acredita que eles também não gostaram, nem gostam. Quem vive na miséria não gosta da sua história, mas faz tanto parte da História como os outros, os que tinham cadeiras para se sentar e papel para escrever a sua história, enquanto outros trabalhavam para si. Estamos todos contidos e unidos na mesma História. E muitas histórias da História não têm finais felizes!"

Como nos ensina o poeta, a história do açúcar não é doce. Mas é feita pelos que produziram, venderam e compraram o açúcar...branco, fino e tão doce...que poucas vezes nos lembramos de duvidar da sua doçura.

"O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem
aos vinte e sete anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema."

Ferreira Gullar (1930)

3 comentários:

Ninguém.pt disse...

Miss, quando todos entendermos o que o Ferreira Gullar nos quer transmitir, muito vai mudar na forma de vermos o mundo.

Teremos de valorizar o trabalho por unidade de tempo e não por ascendência ou por formação académica.

É injusto e sem fundamentação económica que um advogado ganhe mais do que um mineiro, por exemplo.

Porque, afinal, enquanto o advogado andou a estudar, quem lhe pagou os estudos? Também aquele mineiro que foi lançado para o mundo do trabalho depois de uma formação mínima.

Durante para aí uns dez anos o mineiro trabalhou para formar o outro e depois vai ser sempre miseravelmente pago em comparação com ele e vai ter direito à reforma na mesma idade — ou seja, com dez anos mais de trabalho... E que diferença no valor da reforma!

Economicamente falando, enquanto o mineiro produz bens transaccionáveis, riqueza, o advogado não produz nada, limita-se a fruir, prestando serviços, parte da riqueza produzida pelo mineiro.

Porque todos somos precisos, porque todos nos precisamos uns aos outros, quem adoça o café tem direito a ter uma vida tão boa como o que colheu a cana e como o que a prensou e produziu o açúcar — e vice-versa.

(Desculpe o comício! E que fique claro que nada me move contra os advogados, só os utilizei como exemplo. Até tenho uma filhota que é advogada e adoro-a!)

Escrivaninha disse...

Já gostei mais de comícios...mas, como estamos de acordo...

Hoje em dia prefiro bebícios: escorregam melhor. :-)

Ninguém.pt disse...

Calculo que nem deve ter tido uma época muito intensa de comícios — vantagens (?) da pouca idade...

Mas um poema é líquido que irá gostar:

Perguntas de um operário letrado

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas


Bertold Brecht

(Que é isso de estarmos de acordo? Não pode voltar a acontecer muitas vezes, entendido?)

Beijito.