Professoras chegadas à terra de novo, víamos-lhe mais defeitos que qualidades. Sobretudo aos fins-de-semana, quando a vila ficava deserta perante a debandada da população para a beira-mar, ali tão perto.
Sem carro, passeávamos frequentemente as duas, tentando encontrar substitutos para as palavras monotonia e marasmo, congratulando-nos por não haver poluição, buzinadelas constantes e quase não ser preciso olhar para a estrada, na segurança da passadeira.
Claro, isso eram vantagens, mas, lá no fundo, ficava por dizer, o medo de nos estarmos a perder, enterradas na pacatez, felizes com a ausência dos bulícios em que havíamos sido criadas: ela em Coimbra, eu, perto de Lisboa.
O Verão sumiu-se pelo Outono dentro e as folhas começaram a cair, a cair, num tapete muito mais fofo do que os de lá, nas nossas terras de asfalto. Aos fins-de-semana, percorríamos os mesmos caminhos, mas passeávamos no meio das folhas, com ruído; os sapatos desapareciam no amarelo-castanho e, no fim das calças de ganga só se via o mar de folhas, estaladiças…a nossa neve outonal crocante! Tinha a sua graça.
Depois o vento ficou cada vez mais frio e as folhas desapareceram, deixando as árvores nuas contra o céu cinzento, frio, de chumbo…tétrico.
Por essas alturas eu também já tinha percebido que as nossas conversas estavam a ficar tão nuas como as árvores e os silêncios eram cada vez maiores, dando um ar ainda mais soturno aos nossos passeios de fim-de-semana. Para mais eu não a considerava propriamente confidente e não me apetecia falar-lhe da minha vida. Íamos arrastando os cafezinhos de fim-de-semana pontuados por uns «cá estamos…», «os putos estão cada vez piores…», «a papelada da escola é cada vez mais…», «quando eu era aluna achava que os professores tinham as mesmas férias que nós…» e outras trivialidades, no mesmo tom, que, quem me conhece sabe bem que não é nada meu. A rapariga deprimia-me. Via sempre o lado pior de tudo e eu estava a ficar sem paciência para ela (sentimento que se calhar era recíproco, sei lá eu…)
Naquele sábado, depois de almoço, ela lá telefonou, como acontecia sempre, quinzenalmente, no fim-de-semana em que não ia a Coimbra. “Pois que sim…estava…podíamos tomar café…desço já.”
O dia estava particularmente invernoso: era final de Novembro, o frio era cortante, o céu opressivo, as árvores nuas de dar pena.
Lá íamos nós, no passo manso que me irritava, ainda por cima porque eu, interiormente, estava num alvoroço!... Mas não era nada que fosse partilhar com aquela personagem sorumbática, que passeava comigo por falta de opções.
Parámos no meio do parque de estacionamento, agora vazio, com as raízes das árvores a rebentar o alcatrão e preparávamo-nos para nos despedirmos. Instalou-se um daqueles silêncios enervantes… E eu, fixo o olhar nos galhos da árvore e nunca tinha visto paisagem tão bonita. Salta-me do peito para a voz: “Esta árvore é tão linda, não é?”
O olhar que a outra levantou dos sapatos, rapidamente passou de assombrado e incrédulo a uma das raras expressões risonhas que lhe vi: “Tu estás apaixonada!” – gritou-me com uma força que eu não sabia que ela tinha.
Corei. Baixei os olhos. Balbuciei qualquer coisa…
E ela, com uma energia que eu desconhecia, sacudia-me insistentemente: “Quem é? Quem é? O que foi que aconteceu? Deixa-te de coisas: só um coração apaixonado acharia esta árvore bonita.”
Acabei por confessar: “Eu e o Vítor beijámo-nos ontem…”- confusa de não conseguir esconder os sentimentos e confusa por não compreender…eu só tinha dito que a árvore era bonita…e era…a árvore mais bonita que eu já vi! Não sabia como é que a minha colega não via a beleza da árvore…
Aliás, essa árvore deve ter sido removida, pois já passou tanto tempo e nunca mais a vi, assim tão linda!
5 comentários:
Como não se pode dizer a verdade, só me resta dizer que, bem, pois, sabe... gostei. Quer dizer, quase gostei muito...
(A pouco e pouco o livrito vai-se compondo...)
Caramba! Ainda nem acabei de colocar as etiquetas e já tenho comentários: a selecção dos textos fica a seu cargo e vai ser um êxito de vendas, já vi.
Obrigada!
Temos que ser rápidos... Ainda há dias houve um texto com vontade própria que se recusou a aqui ficar – precisamente quando ia comentá-lo...
Se disparar mais rápido que a minha sombra, certamente lhe sobreviverei.
Quem me mandou a mim querer perceber?
Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?
Quando o Verão me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...
Alberto Caeiro
Nem todas as explicações devem ser perseguidas, nem todas devem ser aceites...
É tão bom sentir a brisa acariciar-nos a face! É tão bom sentir...
É verdade. Esse texto pediu-me para aqui ficar e eu deixei-o, sem grande convicção. Daí a pouco voltei a lê-lo e não gostei mesmo dele. Olhei para um lado e para o outro da estrada e, como não vi ninguém, convenci-me que o texto ainda estava incógnito e afinal...Cada um é para o que nasce: nem escondida atrás de uma peça de mobiliário me escapo desta notoriedade que me acompanha (só suplantada pela modéstia, claro).
Tem razão Mestre: é muito bom sentir e nem tudo tem que ser explicado. Há momentos em que perdemos toda a capacidade analítica e, podemos até não nos perdoar, mas ficarão sempre na memória. Ah, a Memória! A Boa Memória, claro!
As memórias (não sei porquê, mas de repente fiquei com a sensação de que esta palavra só comporta as coisas boas da vida...) são registos de coisas vividas uma vez e revividas muitas, até formarem o "filme" a que chamamos "memória".
Temos que ter a mente aberta às experiências novas – as nossas futuras memórias.
Ninguém...
Ninguém pode construir em teu lugar as pontes
que precisarás de passar para atravessar o rio da vida.
Ninguém, excepto tu, só tu.
Existem, por certo, atalhos sem número,
e pontes, e semideuses
que se oferecerão para levar-te além do rio,
mas isso te custaria a tua própria pessoa:
tu te hipotecarias e te perderias.
Existe no mundo um único caminho
por onde só tu podes passar.
Aonde leva? Não perguntes,
segue-o!
Friedrich Nietzsche
Uma boa noite, Menina Escrivaninha. Sonhe com rios atravessados e caminhos entre áleas floridas.
(Não ligue à história do fugitivo texto, Miss. Só o referi porque encaixava na brincadeira do "mais rápido do que a própria sombra".)
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