segunda-feira, 28 de junho de 2010

«Adultos à força»*

"- Álvaro: tens mesmo de ter uma conversa com o miúdo! - disse ela, na cozinha, num tom entre o implorativo e o impositivo, com os dentes cerrados, enquanto espreitava o filho no sofá da sala.
O homem fez um ar de sacrifício, de condenado sem fuga e dirigiu-se à sala. O puto fixava os olhos na televisão, mas, notava-se a tensão que precede «uma conversa séria».
O pai desligou a televisão e o miúdo continuava a fitar o écran, como se a acção se continuasse a desenrolar lá. O pai colocou-se à fente dele. Ele concentrou o olhar nas sapatilhas.
- Vamos lá a ver... - o pai olhou para a porta da cozinha com esperança que a mulher estivesse concentrada noutra coisa, mas ela lá estava, de pé, com um ar tão ameaçador, que ele aclarou a voz e assumiu um tom muito grave: (Na realidade o que lhe apetecia dizer era «Meu filho, tenho muito orgulho em ti. Eu também faltava às aulas para fazer coisas bem mais interessantes, mas não podemos dar desgostos à tua mãe...», depois dava-lhe um abraço, talvez consentisse em beberem uma cerveja juntos e arrotariam em sinal de uma cumplicidade mais vivida que dita) Mas as palavras que lhe saíram da garganta foram fortes e convictas: - A tua mãe trouxe informações da escola que nos estão a preocupar e a desgostar - o miúdo engoliu em seco e continuou a fitar os ténis desapertados. O pai olhou para a porta da cozinha, com esperança...para ganhar tempo...a mãe abria muito os olhos e movimentava a boca para dizer, sem som, o que lhe pareceu ser «A mentira» - E o pior são as tuas mentiras... - ganhou confiança, com o aceno da esposa - ainda ontem te perguntámos se tinhas alguma coisa para nos dizer antes da tua mãe ir à escola e tu disseste que estava tudo bem...Não dizes nada?...Sempre é melhor que mentir. Cá em casa não suportamos falsidades!
O telefone tocou no preciso momento em que ele pensava o que fazer se o filho continuasse sem dizer nada e a mulher sem se dedicar ao jantar. Sentiu-se salvo! Atendeu diligentemente, perante o olhar contristado da mulher.
Do outro lado reconheceu a voz da cunhada: «Boa noite. Incomodo? Já estão a jantar?...»
- De modo nenhum! Eu também precisava de falar contigo.
- Álvaro? Sou a Rita.... Quero falar com a minha irmã...
- Agora? Mas tem mesmo de ser agora? Não sei...só se for rápido...
Tapou o bocal e disse, com um ar aborrecido, dirigindo-se à esposa: «É o Jacinto. Precisa de ajuda para resolver um problema com um carro que temos de entregar logo de manhã.»
A mulher encolheu os ombros e, dando meia volta, começou a pôr a mesa.
- Vou já aí! - disse, de novo para a interlocutora que estrebuchava do outro lado («'Tás parvo? O que é que está acontecer aí?...Álvaro!») Deve ser simples. Tu é que não percebes nada da parte eléctrica. Devias de me ter dito antes de vir para casa. Se fico sem jantar, desconto uma bifana do teu ordenado.
Ignorou as imprecações da cunhada - Vou já! - gritou com ar irritado. - Atirou com o telefone e dirigiu-se à porta - Vou tentar não demorar, filha... - e acenando na direcção do sofá, onde o filho continuava imóvel - Ainda não acabámos, menino. Não te safas assim!
Desceu a escada a correr, antes de ouvir o telefone tocar de novo.
Pois...não tinha sido inteligente...mas, que fazer? Não conseguia achar muito mal o que o miúdo fazia...Mas, como ia enfrentar a mulher?... Agora ia comer qualquer coisa ao bar da malta e demorar até, talvez, estarem todos a dormir. Podia ser que o miúdo se emendasse, amanhã..."

Segundo a bibliografia comentada de Saramago, inserta na revista especial Visão/JL, o seu livro infantil A Maior Flor do Mundo (2001) parte de duas perguntas: "E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender o que há tanto tempo têm andado a ensinar?"

*O título alude a uma série televisiva sobre um grupo de jovens que, privados dos pais, por morte num acidente, têm de tomar um conjunto de atitudes muito contraditórias com o que sentem no seu período de crescimento.

2 comentários:

Ninguém.pt disse...

Poucas crianças quererão faltar às aulas quando a escola souber responder a perguntas simples como as que faz Cecília Meireles no poema já antes aqui deixado

http://guardadores-de-palavras.blogspot.com/2010/04/reformas-educativas.html

mas que vou repetir, com licença do móvel da casa:

Professor, diz-me: porquê?

Professor diz-me: porquê?
Por que roda o meu pião?
Ele não tem roda
e roda, gira, rodopia
e cai morto no chão…

Tenho nove anos, professor
e há tanto mistério à minha roda
que eu queria desvendar.
Por que é que o carro é azul?
Por que é que marulha o mar?
Porquê?
Tantos porquês que eu…
eu queria saber!
E tu que não me queres responder!

Tu falas, falas, professor, daquilo que te interessa.
Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar,
se eu vou descobrir
faz-me decorar!
É a luta professor
a luta em vez do amor….

mas,
enquanto tua voz zangada ralha
tu sabes, professor,
eu fecho-me por dentro,
faço uma cara resignada
e finjo que não penso em nada,
mas penso…

Penso em como era engraçada
aquela rã
que esta manhã ouvi coaxar…
Que graça que tinha
aquela andorinha
que ontem à tarde vi passar.

E quando tu podes vens definir
o que são conjuntos e preposições,
quando me fazes repetir
que os corações
tem duas aurículas e dois ventrículos
e tantas
tantas mais definições…

Meu coração, o meu coração
Que não sei como é feito
E nem quero saber…
Cresce dentro do peito
A querer saltar pra fora, professor.
E ver se tu assim compreenderias
E me farias mais belos os dias!


Cecília Meireles

Ninguém.pt disse...

Mas uma visão da "minha" escola, desta vez por um pedagogo eminente:

Escola é…

… o lugar em que se faz amigos.

Não se trata só de prédios, salas, quadros,
Programas, horários, conceitos...
Escola é sobretudo, gente.

Gente que trabalha, que estuda
Que alegra, se conhece, se estima.
O Diretor é gente,
O coordenador é gente,
O professor é gente,
O aluno é gente,
Cada funcionário é gente.

E a escola será cada vez melhor
Na medida em que cada um se comporte
Como colega, amigo, irmão.
Nada de “ilha cercada de gente por todos os lados”
Nada de conviver com as pessoas e depois,
Descobrir que não tem amizade a ninguém.

Nada de ser como tijolo que forma a parede, indiferente, frio, só.
Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,
É também criar laços de amizade, é criar ambiente de camaradagem,
É conviver, é se “amarrar nela”!

Ora é lógico…

Numa escola assim vai ser fácil:
Estudar, trabalhar, crescer,
Fazer amigos, educar-se, ser feliz.
É por aqui que podemos começar a melhorar o mundo.


Paulo Freire