quarta-feira, 9 de junho de 2010

Os escombros da realidade adentro das brumas da minha memória

Cada vez me interesso mais pela Memória e pelas Memórias Individuais.

Guardo alguns livros de memórias, em que me perco, por vezes devagarinho, por vezes sôfrega, procurando resgatar, com a memória dos outros a minha própria memória, absorvendo estilos e modos de relatar memórias. Talvez um dia pense em escrever as minhas...talvez, talvez seja um interesse egoísta, de encontrar inspiração. Não sei... Mas, sobretudo, fascinam-me - cada vez mais - as capacidades e as cambiantes da memória de cada um.

Pequenas Memórias, de José Saramago, é um desses livros-recurso, com que vou pincelando os meus dias de uma ou outra linha das memórias de outros, em tempos em que é a memória colectiva que absorve os meus pensamentos mais sérios (ou mais profissionais? os outros não deixam de ser sérios,também).

"Já não existe a casa em que nasci, mas esse facto é-me indiferente porque não guardo qualquer lembrança de ter vivido nela. Também desapareceu num montão de escombros a outra, aquela que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais íntimo e profundo, a pobríssima morada dos meus avós maternos, Josefa e Jerónimo se chamavam, esse mágico casulo onde sei que se geraram as metamorfoses decisivas da criança e do adolescente. Essa perda, porém, há muito tempo que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder reconstrutor da memória, posso levantar em cada instante as paredes brancas, plantar a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a cancela do quintal onde um dia vi uma pequena cobra enroscada, entrar nas pocilgas para ver mamar os bácoros, ir à cozinha e deitar do cântaro para o púcaro de esmalte esborcelado a água que pela milésima vez me matará a sede daquele Verão." (p. 18)

É verdade: o "poder reconstrutor da memória" faz-nos viajar. A menos que outras memórias se interponham. E, nesse sentido, tenho inveja de Saramago. As ruínas das duas casas em que habitei enquanto criança e adolescente impõem-se às minhas memórias. Já não consigo imaginar a minha avó à janela, porque as paredes esventradas do prédio e o cadeado que o portão ostenta para evitar o alojamento dos sem-abrigo, hoje, me embaciam a memória de antes. Não consigo imaginar a casa como era. Tenho por vezes sonhos tristes com a casa em que nasci, porque ela aparece em toda a sua decrepitude e perigosidade, no estado cada vez mais degradado que exibe. O presente atrapalha as minhas memórias. Quem me dera que as casas tivessem desaparecido para se manterem intactas, sempre, na minha memória, para não criarem escombros e ruína em memórias que deveriam ser sempre límpidas e soalheiras.

9 comentários:

Ninguém.pt disse...


Má memória


Copla 1

A cabeça é um órgão curioso
Curiosamente organizado
Basta ver quando nos fazem uma trepanação
Geralmente não é muito fácil
Eis a história singular
De um certo Mathurin Lafieur
Cujo crânio bastante comum
Só era bizarro no interior
Este tipo sofria desde a infância
De um mal na verdade vulgar
De uma memória tão infiel
Que causava embaraços
Assim que aprendia uma coisa
Em família ou no liceu
Mathurin de expressão tristonha
Imediatamente a esquecia
Mas...

Refrão 1

Em breve se esqueceu de esquecer
O que devia esquecer
Então como se tinha
Esquecido de esquecer
De tudo se recordava
(Falado) Estão a perceber

Copla 2

Esta faculdade tão rápida
Em lugar de na sociedade
O fazer considerar estúpido
Dava-lhe a prioridade
Esquecendo-se de esquecer as aulas
Mathurin sabia-as de cor
E apesar do cérebro atravancado
Chegou sem custo a agregado
Mas um dia em que chovia um horror
E que ele ia a correr para o metro
Esbarrou num outro corredor
E estatelou-se como um perdigoto
O crânio bateu na pedra
Com um belo ruído musical
Produzindo-lhe na cafeteira
Uma reviravolta fatal
E desde então

Refrão 2

Esquecia-se de esquecer de esquecer
O que tinha de esquecer
E como se esquecia
De se esquecer de esquecer
Nunca se lembrava de nada
(Falado) Estão a perceber

Copla 3

Esvaziado pelo estúpido acidente
Das suas memórias de sempre
Partiu prà Praça das Festas
Ele que morava em Cherbourg
Mas no caminho azar infame
Um autocarro desarvorado
Sem contemplação pla sua alma
Diante de Mathurin desembocou
Tendo esquecido a existência
Dos autocarros e do perigo
O nosso herói flor de inocência
Entregou-se ao monstro raivoso
Sucumbindo às rodas carniceiras
No seu crânio houve o sentimento
De uma distorção estranha
Antes de conhecer o esquecimento
E
Esqueceu-se de se esquecer de esquecer
De esquecer que devia esquecer
O que se esquecia de esquecer de esquecer
Que acabava de recordar
(Paragem) Esqueci-me do fim...


Boris Vian

Ninguém.pt disse...

As memórias escritas poderão ser realmente, verdadeiramente, fiéis?

Penso que não. Penso que as memórias escritas são filtradas por muitos filtros que nos são impostos pela sociedade, pelos nossos interesses, pelas conveniências – por tudo e até por um par de botas.

Porque somos construtores de verdades convenientes ao longo de toda a vida, porque dizemos o mais conveniente e não a "pura verdade" — não iríamos fazê-lo quando escrevemos, não será?

Acresce a isso que vamos construindo a nossa imagem (ou a imagem que temos da nossa imagem...) e tenderemos a confirmá-la com o que escrevermos.

Por exemplo, não acredito que as coisas que estes dois que o forno crematório há-de queimar viram o Saramago fazer possam ser escritas numas memórias — não encaixam na imagem que ele faz de si próprio, do "modelo" que tenta vender...

Como quem faz um cesto faz um cento, custar-me-ia acreditar em qualquer "cesto" feito pelo Saramago. Logo, seriam as últimas memórias que eu leria.

Mau feito meu, eu sei!

(Mas as da Escrivaninha. isso é outra coisa!...)

Escrivaninha disse...

Saramago é para mim um símbolo e um enigma. Não sei o suficiente sobre ele para avaliar a sua acção. Gosto de alguns livros dele que li - espero poder ler mais - e fascina-me, sobretudo, por ser o símbolo de um homem que não pôde estudar em jovem, que «se fez a si proprio» e que escreve tão bem e atinge a distinção do prémio Nobel.Mas já percebi que é uma personagem muito controversa...

As memórias nunca são a Verdade, mas Uma Verdade, aquela que escolhemos porque combina connosco.
Quem escreve as memórias escolhe-as tão cuidadosamente como quem compra um vestido de noite para sair na primeira página de uma revista social. Tenho consciência disso. Mas, talvez, esse seja mais um aspecto que me fascina na literatura de memórias: o que escolhemos de nós para mostrar aos outros? Com que desassombro falamos de nós? Pensamos realmente aquilo que escrevemos? Como «enfeitamos» a realidade das nossas memórias para as apresentar aos outros? Qual a principal intenção com que escrevemso memórias? Como se ligam as memórias individuais no fio de uma memória colectiva?...

Tantas perguntas, para muitas mais respostas que vou encontrando aqui e ali, nesta busca fascinante. O que recordarei um dia desta investigação? O que sei e o que digo dos «motivos verdadeiros» por que a faço?

Temos de concordar que é um tema fascinante: só espero não ter o azar da personagem acima, de bater com a cabeça e de me esquecer de tudo!...

Ninguém.pt disse...

Parece que estamos de acordo (!!!) quanto ao facto de as memórias poderem ser tudo menos A Verdade.

Até porque, como disse a Miss Escrivaninha, se alguém decidisse contar a verdade contaria apenas a sua interpretação dela – pois sempre lhe faltariam conhecimentos apenas na posse de outros personagens e/ou espectadores do teatro da vida.

Quanto ao Saramago, à imagem do valoroso coitadinho que subiu a pulso teríamos que acrescentar umas quantas cabeças alheias pisadas como degraus...

E, para mim, quem sobe "apesar de tudo" tem o mérito dos que enriquecem "apesar de roubar" – quase sempre é "por"...

(Declaração de interesse: o Saramago foi director-adjunto do "Diário de Notícias" durante o ano de 1975, quando eu era lá funcionário. E, como diziam os antigos, o verdadeiro homem surge na bebedeira e na contenda.)

Escrivaninha disse...

Sim, já tenho ouvido alguns argumentos...aliás, creio que nunca ouvi dizer que fosse boa pessoa, o que não quer dizer que não seja um excelente escritor.

De qualquer maneira também me custaria apreciar a escrita de alguém que eu não respeitasse como cidadão e como profissional (que me parece ser o caso).

Por isso é importante o distanciamento da História e o espírito rigoroso de análise das fontes; quando a emotividade é menor; quando não conhecemos pessoalmente as personagens. O que não quer dizer que não desenvolvamos «simpatias» e «antipatias» com certas personagens... Por isso é muito interessante analisar também quem escreve a História. (mas já me debo estar a repetir...peço desculpa).

Ninguém.pt disse...

Tem toda a razão e não se preocupe com as repetições, pois todos gostam de a ouvir, Miss.

Havia um jornalista americano muito conceituado que dizia sempre: "Nunca me apresentem os políticos que critico!"

Mas tudo isto deixa uma outra questão: será a crítica sempre e apenas uma avaliação feita sem todos os dados?

Se conhecêssemos todos os dados, mesmo os subjectivos, tenderíamos a diminuir ou a eliminar o tom crítico? Sei que é impossível alguém ter todo esse conhecimento, mas, se o tivesse, deixaria de ser crítico?

O que lhe diz a historiadora que há em si, Miss Escrivaninha?

Escrivaninha disse...

Penso que não; espero que não. Eu considero que o pensamento crítico é inerente ao acto de conhecer. Mesmo nas forma como explicamos toda a verdade de que dispomos somos - se formos honestos e competentes - críticos. Contar, relatar. escrever, implicam sempre opções. Tomar opções é exercitar a nossa liberdade, na nossa forma de ser...de sujeitos pensantes, críticos.

Disse Paulo Freire:
"A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a razão de ser dos factos cada vez mais lucidamente." (Considerações em torno do acto de estudar, Chile, 1968, publicado em Portugal pela Moraes, em 1977, na obra Acção Cultural para a libertação e outros escritos).

Adentramento; não é possível conhecer sem esta atitude de implicação...acho eu.

Este texto traz vozes de outros tempos, mais conscientes...mais exigentes.

A Moraes ainda existe? Os meus primeiros livros de filosofia eram desta editora.

Ninguém.pt disse...

Não me lembro por quem, mas a Moraes Editores foi comprada e deixou de existir como tal.

O fundo editorial (que devia ser riquíssimo) não sei em que empresa pára agora.

Quanto à crítica, a Escrivaninha tem razão, mas estamos a usar a palavra "crítica" com sentidos diferentes, não será?

Eu dizia que a crítica (= condenação, censura) só existirá se não estivermos de posse de todos os pressupostos, mesmo os subjectivos, porque quando isso acontecesse deixaríamos de condenar e passaríamos a explicar o porquê – mesmo fazendo uma crítica (= apreciação ou explicação, aqui neste caso).

Ou seja, eu acho que o "adentramento" transforma uma condenação em explicação, uma censura em apreciação.

Embora a explicação ou apreciação possam continuar a ser negativas.

Desculpe, não percebo o suficiente destas coisas para estar aqui a discorrer sobre elas – foi sol que apanhei na moleirinha...

Uma boa noite, sonhando com gavetas cheias de nuvens de sonho (nuvens fofinhas, daquelas que só há nos sonhos, daí o nome...).

Escrivaninha disse...

Sim, sim, acho que estamos de acordo (outra vez?!?) se falarmos da crítica histórica: um pensamento fundamentado, apoiado em vários argumentos, explicativo, evitando, se possível, os juízos de valor.

Mas a História é sempre uma explicação, provisória e ditada pelas preocupações do presente; embora tenha de se colocar no lugar das «gentes do passado» para as compreender no seu contexto.

Bom, chega de História. Bons sonhos para si também, Mestre.