quinta-feira, 10 de junho de 2010

Os Desesperos do Herói do Dia

"O dia em que eu nasci, morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!"


Luiz Vaz de Camões

Interessantes discussões sobre este soneto em http://dererummundi.blogspot.com/2007/06/o-primeiro-aniversrio-de-cames.html

Pobre Camões! Se ele soubesse tudo o que se diria e se usaria sobre ele!...
E Viva Portugal: «uns vão bem, outros mal»!

6 comentários:

Ninguém.pt disse...

O "pintor" Carlos Tê num dos seus quadros:


A valsinha das medalhas


Já chegou o dez de Junho, o dia da minha raça
Tocam cornetas na rua, brilham medalhas na praça
Rolam já as merendas, na toalha da parada
Para depois das comendas, e Ordens de Torre e Espada
Na tribuna do galarim, entre veludo e cetim
Toca a banda da marinha, e o povo canta a valsinha

REFRÃO
Encosta o teu peito ao meu, sente a comoção e chora
Ergue o olhar para o céu, que a gente não se vai embora
Quem és tu donde vens, conta-nos lá os teus feitos
Que eu nunca vi pátria assim, pequena e com tantos peitos

Já chegou o dez de Junho, há cerimónia na praça
Há colchas nos varandins, é a Guarda d’Honra que passa
Desfilam entre grinaldas, velhos heróis d’alfinete
Trazem debaixo das fraldas, mais Índias de gabinete
Na tribuna do galarim, entre veludo e cetim
Toca a banda da marinha, e o povo canta a valsinha


Carlos Tê

http://www.youtube.com/watch?v=kVnKnHGuUrU

Só encontrei na net este vídeo com apenas metade da canção (penso que lhe faltam apenas as repetições, mas...).

A verdade é que mudou pouco, continuam os nossos líderes a pensar-nos uma «pátria assim, pequena e com tantos peitos».

E nós vamos deixando andar o barco – quem sabe se esperando a nossa vez...

Ninguém.pt disse...

Lembrei-me agora disto:

Na Universidade da Bahia uma candidata de 18 anos interpretou como abaixo se descreve, este texto de Camões:

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente,
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

Interpretação:

«Ah! Camões, se vivesses hoje em dia, tomavas uns antipiréticos, uns quantos analgésicos e Prozac para a depressão. Compravas um computador, consultavas a Internet e descobririas que essas dores que sentias, esses calores que te abrasavam, essas mudanças de humor repentinas, esses desatinos sem nexo, não eram feridas de amor, mas somente falta de sexo!»


Será que a mocinha tinha razão?

Escrivaninha disse...

Sempre me parece mais plausível que a alusão a um eclipse que os srs. doutores discutiam sobre o outro poema.

Seja como for: um homem "bota cá pra fora" os sentimentos e andam os outros centenas de anos a pensar no que ele quis dizer...

Um amigo meu, que era pintor, adorava andar nas suas exposições a ouvir o que diziam dos seus quadros e espantava-se sempre: «O qie eles vêem que eu vi. Eu não sabia que tinha visto nada daquilo!...»

Tenho frequentes discussões com uma amiga de História de Arte por causa da interpretação da arte...

E lá voltamos nós à subjectividade da análise! :-)

Ninguém.pt disse...

Tenho para mim que a arte, quando bem feita, quando artística mesmo, tem a capacidade de se adaptar aos olhos e ao estado de espírito de cada admirador.

Quando olho para uma pintura clássica — Bosch, por exemplo — num dia de mau humor, vejo em muitos rostos dos personagens o reflexo do meu estado de espírito. Parece que todo o mundo acordou com os pés de fora...

O contrário também é verdade, e o esgar transforma-se num sorriso mais ou menos brincalhão.

Os monstros que se conseguem ver em dias cinzentos numa pintura abstracta! Monstros que afinal são simples campos de flores quando estamos para aí voltados.

Claro que estou a exagerar, mas comigo o que acontece com a pintura acontece também com a literatura (poesia, principalmente) e até com o teatro e com o cinema.

Com a Miss Escrivaninha isso não sucede?

Escrivaninha disse...

Claro que acontece! Já falámos até do «bichinho da letra», explicação que adoptei para mim e já divulguei a outros.

Penso que isso se relaciona mais até com a capacidade de quem vê/lê, do que com a de quem produz a arte. Ou do encontro de ambos, que será sempre diferente, conforme a composição do par.

O que é fascinante é a capacidade que o artista tem de se tornar público, de se oeferecer à contemplação e à interpretação, não é?

Mas, descendo um pouco mais à realidade quotidiana, eu também costumo ter essas «visões enviesadas» com a realidade que me rodeia: Há dias em que saio à rua e toda a gente é feia e mal vestida! Palavra de honra: há dias em que só me cruzo com gente feia e outros em que vejo muita gente bonita a passear. Por isso gosto tanto do poema de Gedeão: se há dias em que só vejo moinhos, outros há em que só me cruzo com gigantes. E em cada dia isto é verdade para mim. (Graças a Deus vou alternando...)

Ninguém.pt disse...

Será, então, o mesmo efeito: mau humor, céu nublado, gente triste; coração feliz, sol brilhante, todo o mundo sorrindo.

E à arte o mundo cria

Seguro assento na coluna firme
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inúmero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e à arte o mundo
Cria, que não a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.


Ricardo Reis