sábado, 19 de junho de 2010

Faleceu Ontem José Saramago, com 87 anos

Intimidade

"No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade"


José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

7 comentários:

Ninguém.pt disse...


Viverás, que da pena a força emana


Ou pra fazer-te o epitáfio vivo,
ou vives mais e a terra me apodrece.
Tua memória a morte deste arquivo
não tira, mas de mim o resto esquece.

Aqui terá o teu nome imortal gala,
indo eu, hei-de ficar do mundo oculto,
só pode dar-me a terra comum vala,
no olhar dos homens tu serás sepulto.

Meus versos monumento te serão
que hão-de ler e reler olhos a vir
e as línguas a haver repetirão

o que és, quando já ninguém respire.
Viverás, que da pena a força emana,
onde o sopro mais sopra, em boca humana.


William Shakespeare

Escrivaninha disse...

Ai, que lindo!

Eu cá continuo à volta da pena (mas esta tem insert, delete, copy, paste).

Enfim, não deixa de ser um penar...

Esperemos que valha a pena! :-)

O Saramago, Prémio Nobel da Literatura, não deveria ir para o Panteão, não? Levou bem longe e bem alto o nome de Portugal!

Ninguém.pt disse...

Para o Saramago para lá ir, antes já lá deveriam estar muitos outros, mais merecedores.

Só uns quantos de que me lembro, assim de repente:

• Salgueiro Maia
• Fernando Pessoa
• Miguel Torga
• Sophia
• Bento de Jesus Caraça
• Eça de Queirós
• etc., etc.

Escrivaninha disse...

Eu não disse que ele deveria ir sozinho...

Estava a pensar «pra tecla» sobre os critérios da «selecção nacional» do Panteão. Parece-me um assunto bem interessante para trabalhar um dia destes: Quem, como e porquê, elevamos a «panteáveis»?...

Fica aqui apontado, para um dia me lembrar de pegar nesta questão. Fiquei desperta para ela com a «panteização» (muito polémica) do Aquilino Ribeiro.

E do Aquilino? O que achou? Eu conheço mal a obra dele, confesso. E as «comemorações» do Regicídio não o deixaram nada bem visto...

Ninguém.pt disse...

Sou fá incondicional de Aquilino – tanto do escritor (li muito da obra dele) como do cidadão lutador antifascista. Foi um exemplo!

Não está provado o seu papel no regicídio, mas, mesmo que seja verdade, trata-se de uma luta em que esteve no lado da liberdade e do progresso contra a opressão e o conservadorismo.

Achei justo reconhecimento a sua "panteização".

Uma das regras que defendo é que nunca se devem fazer funerais directamente para lá. Deve ser dado um tempo à história (o seu reino...) para que se esbatam as paixões (seja qual for o sinal, mais ou menos, a paixão é sempre péssima conselheira) e se torne consensual para a maioria o mérito do "panteável".

A Amália, por exemplo, tendo ficado pouco tempo no cemitério, pode ainda vir a ver questionado o seu mérito – não acredito, mas corre-se esse risco.

Espero que as suas "penas" sejam mais ou menos como estas:

Escrevo como quem quer ser escrito

escrevo como quem quer ser escrito

uma árvore ou uma pena no centro da frase
um espelho branco onde observo a palavra

e dos seus troncos brotam folhas, letras
inundações de verde no lago azul do céu
que caem, voando, asas de papel

como tu, também eu sussurro
lentas sílabas à leve melancolia que nos abraça


Jorge Reis-Sá

Um bem sussurrante lago azul... e proveitoso, já agora.

Escrivaninha disse...

Pois, tem razão, a distância -no tempo e nos sentimentos - sempre nos dá mais discernimento.

Voltaremos a falar disto, dentro de...uns cem anos?... :-)

Boa noite, Mestre!

Ninguém.pt disse...

Cem anos é uma boa altura... Estarei talvez cheirando a formol, mas, lá está o diatado, "deus não pode dar tudo...".

Entretanto, veja como eu a imagino trabalhando:

O escriba acocorado

Sentado na pedra de ti próprio,
não tens rosto, senão o que,
de anónimo, a ela afeiçoou
a mão que assim te quis. Do resto,
do que de individualidade, porventura,

em ti existiria, se encarregou
a persistente erosão dos dias. De vago,
neutro olhar sem órbitas, permaneces
hirto, fitando sempre mais além
da morna penumbra que te envolve

no halo intemporal que é, do tempo,
o nexo único. Nesse olhar
de não ver tudo se inscreve,
repensa e adivinha: teus limites
e, ainda, o que excederia tua humana

estatura. Sem contornos, em sombra
e sono te diluis no que, de ti,
nunca saberemos. Porém, límpida
e escorreita, até nós chega a laboriosa
escrita que no papiro ias lavrando.


Rui Knopfli

(Cuidado com as cruzes, é uma posição tramada... Uma boa noite, sonhando com sonos repousantes.)