sábado, 12 de dezembro de 2009

Vocação do Poeta

"Não nasci no começo deste século:
Nasci no plano do eterno,
Nasci de mil vidas superpostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas.
Vim para conhecer o mal e o bem
E para separar o mal do bem.
Vim para amar e ser desamado.
Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos.
Não vim para construir minha própria riqueza
Nem para destruir a riqueza dos outros.
Vim para reprimir o choro formidável
Que as gerações anteriores me transmitiram.
Vim para experimentar dúvidas e contradições.

Vim para sofrer as influências do tempo
E para afirmar o princípio eterno de onde vim.
Vim para distribuir inspiração às musas.
Vim para anunciar que a voz dos homens
Abafará a voz da sirene e da máquina,
E que a palavra essencial de Jesus Cristo
Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria."


Murilo Mendes (1901-1975)
Poeta brasileiro; morreu em Lisboa.

5 comentários:

Ninguém.pt disse...

Estilos, desafios, destinos ou apenas... desatinos?

Biografia

Sonho, mas não parece.
Nem quero que pareça.
É por dentro que gosto que aconteça
A minha vida.
Íntima, funda, como um sentimento
De que se tem pudor.
Vulcão de exterior
Tão apagado,
Que um pastor
Possa sobre ele apascentar o gado.

Mas os versos, depois,
Frutos do sonho e dessa mesma vida,
É quase à queima-roupa que os atiro
Contra a serenidade de quem passa,
Então, já não sou eu que testemunho
A graça
Da poesia:
É ela prisioneira,
Que, vendo a porta da prisão aberta,
Como chispa que salta da fogueira,
Numa agressiva fúria se liberta.


Miguel Torga

Ninguém.pt disse...

Estilos, desafios, destinos ou apenas... desatinos?

Auto-retrato

Poeta é certo mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento ambas partes
do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos uma folha de hortelã
que é verde como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.


José Carlos Ary dos Santos

Ninguém.pt disse...

Estilos, desafios, destinos ou apenas... desatinos?

Ser poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além-Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e cetim…
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!


Florbela Espanca

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Estilos, desafios, destinos ou apenas... desatinos?

Foguete de lágrimas

Poesia é carne e é flores,
é suor cristalizado,
trepidação de motores
num céu diurno e estrelado.

É canção de altifalante
no largo da feira-franca,
perfume de saia branca,
copo de vinho estuante.

É toda a força contida
e evidente sem disfarce,
o salto que há-de formar-se
da pantera adormecida.

É corpo e é coisa mental,
nebulosa primitiva,
espasmo de matéria viva,
ressonância universal.

É cozimento de olhares,
de sons, de cheiros, sabores,
onde corre, em capilares,
sangue de todas as cores.

No poço da morte impura
goteja a humana agonia.
Da angustiosa aventura
tudo o que fica é poesia.


António Gedeão

Escrivaninha disse...

Obrigada por este «bouquet» de poesia.