"Não nasci no começo deste século:
Nasci no plano do eterno,
Nasci de mil vidas superpostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas.
Vim para conhecer o mal e o bem
E para separar o mal do bem.
Vim para amar e ser desamado.
Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos.
Não vim para construir minha própria riqueza
Nem para destruir a riqueza dos outros.
Vim para reprimir o choro formidável
Que as gerações anteriores me transmitiram.
Vim para experimentar dúvidas e contradições.
Vim para sofrer as influências do tempo
E para afirmar o princípio eterno de onde vim.
Vim para distribuir inspiração às musas.
Vim para anunciar que a voz dos homens
Abafará a voz da sirene e da máquina,
E que a palavra essencial de Jesus Cristo
Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria."
Murilo Mendes (1901-1975)
Poeta brasileiro; morreu em Lisboa.
5 comentários:
Estilos, desafios, destinos ou apenas... desatinos?
Biografia
Sonho, mas não parece.
Nem quero que pareça.
É por dentro que gosto que aconteça
A minha vida.
Íntima, funda, como um sentimento
De que se tem pudor.
Vulcão de exterior
Tão apagado,
Que um pastor
Possa sobre ele apascentar o gado.
Mas os versos, depois,
Frutos do sonho e dessa mesma vida,
É quase à queima-roupa que os atiro
Contra a serenidade de quem passa,
Então, já não sou eu que testemunho
A graça
Da poesia:
É ela prisioneira,
Que, vendo a porta da prisão aberta,
Como chispa que salta da fogueira,
Numa agressiva fúria se liberta.
Miguel Torga
Estilos, desafios, destinos ou apenas... desatinos?
Auto-retrato
Poeta é certo mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.
Cozido à portuguesa mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento ambas partes
do meu caldo entornado na infância.
Nos olhos uma folha de hortelã
que é verde como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.
Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.
José Carlos Ary dos Santos
Estilos, desafios, destinos ou apenas... desatinos?
Ser poeta
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além-Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e cetim…
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Florbela Espanca
Estilos, desafios, destinos ou apenas... desatinos?
Foguete de lágrimas
Poesia é carne e é flores,
é suor cristalizado,
trepidação de motores
num céu diurno e estrelado.
É canção de altifalante
no largo da feira-franca,
perfume de saia branca,
copo de vinho estuante.
É toda a força contida
e evidente sem disfarce,
o salto que há-de formar-se
da pantera adormecida.
É corpo e é coisa mental,
nebulosa primitiva,
espasmo de matéria viva,
ressonância universal.
É cozimento de olhares,
de sons, de cheiros, sabores,
onde corre, em capilares,
sangue de todas as cores.
No poço da morte impura
goteja a humana agonia.
Da angustiosa aventura
tudo o que fica é poesia.
António Gedeão
Obrigada por este «bouquet» de poesia.
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