terça-feira, 20 de julho de 2010

Por detrás dos livros

Abriu uma livraria na Amadora!
Não deveria ser um acontecimento assim tão raro, numa terra para lá de populosa, mas...há tempos que não havia uma.
A minha irmã disse-me que era uma livraria que abrira há tempos num sítio mais escondido, mas eu vi-a ontem, já noite escura, montra brilhante de livros.
«First thing in the morning» (o meu conceito de «morning» nem sempre é coincidente com outros conceitos mais comuns) lá entro eu, farejando o ambiente da livraria. E nome bonito que tem: Palavras de Culto!
Certamente eu podia entrar e não comprar nada...se calhar não podia, porque se me insinuou no espírito uma referência que me pareceu apetecível, referida em contextos fisica e temporalmente diferentes: a Universidade e uma aula de Yoga. A referência era «O Sentimento de Si» de António Damásio, neurocirurgião português, actuante nos «States».
Talvez tenha sido exagerado - reconheço. Sempre fui de extremos: entre Doreen Tovey e António Damásio há muito mais que um oceano de diferenças e não sei se terá sido boa ideia lançar-me em tal aventura com tão poucas horas de navegação livre...mas enfim...Dei comigo deliciada a ler as primeiras páginas da Introdução. Que bem que ele escreve! E, sobretudo, a apreciar a seriedade e o entusiasmo - se calhar o sentimento de si, ainda não sei - com que escreve!...
No comboio regressei a Tovey, que o outro exige uma mesa de apoio e um espírito aberto e não uma breve passagem entre estações e apeadeiros.
Agora que cheguei a casa, adiando por mais um bocadinho os textos sérios, dei comigo a pensar que o que eu procuro no livro é a pessoa que o escreveu e o propósito com que o fez. E, nesse aspecto, Damásio e Tovey, não são assim tão diferentes. Ambos se dão, se entregam a um público que os procura.
Eu sei, eu sei, eu própria estaria com vontade de esbofetear a criatura que escreveu este texto, aproximando, displicentemente, Tovey e Damásio. Teria vontade de esbofetear se não fosse eu a própria autora desta reflexão. Gosto de procurar a pessoa por detrás do livro. E estes dois livros têm pessoas lá dentro.
Ao correr da viagem de comboio, dei comigo a pensar que sempre foi assim. Quando eu era muito pequena abria os livros antigos que povoavam estantes lá de casa - livros mais antigos que a casa, mais antigos que nós, comprados, herdados, recolhidos, eu sei lá e muitos deles tinham assinaturas. Assinaturas cuidadas, em cor azul clara, naquilo que eu aprendi a chamar misticamente «caligrafia».
Várias vezes me apercebi que ninguém sabia de quem eram as assinaturas: os livros tinham sido comprados em segunda mão, vindos de um leilão, um alfarrabista, ou perdiam as suas origens em histórias muito recuadas, anteriores à invenção da «família nuclear».
Lá em casa cabiam todos os livros e as memórias. E quando um livro não tinha uma memória precisa, eu abria-o, cheirava-o, sentia-o, folheava-o e inventava-lhe uma memória. Se a primeira letra da «caligrafia» era um A, criava uma Amélia sozinha numa sala de leitura, com uma mesa de camilha; se fosse um C, visualizava uma Catarina doente, buscando nos livros a companhia que lhe faltava durante o dia atarefado da família, se fosse um R, era certo ser Rebbeca, assim mesmo, com dois bs, que escondia atrás do livro o lenço que bordava clandestinamente com o monograma do seu amado...
Acho que eram todas personagens das Mulherzinha, feministas letradas, que encontravam nos livros forças para a emancipação que tardava a chegar.
E pronto, hoje mais não digo, só talvez...citando Carlos Pinto Coelho no Acontece, dizer que «é meu privilégio» poder usufruir da escrita de quem o faz tão dedicadamente.

5 comentários:

Escrivaninha disse...

Talvez também se possa procurar quem tornou aquele livro possível para além das palavras. Sim, um livro tem muito mais mão-de-obra que a do escritor, mas ainda não consigo procurar todas as pessoas que povoam as memórias de um livro...

Ninguém.pt disse...

Imagino muitas vezes o prazer do artesão fabricando um livro como "Os Lusíadas", por exemplo.

Era compor o texto, quantas vezes reescrevendo-o ou deixando nele marcas de falhas que só em edições posteriores eram corrigidas. Depois a impressão, folha por folha, todas as folhas passando pela mão do impressor duas vezes por cada uma das cores utilizadas.

Dobradas as folhas, cosidos os cadernos uns aos outros, colada a capa gravada a fogo ou a ouro, eis o volume.

Uma obra de arte, uma peça de artesanato, fruto de muito trabalho mas certamente também de muito empenho e dedicação.

(Hoje, o compositor não existe, é o autor quem faz o texto no computador; o impressor quase não vê as folhas e o livro é dobrado, cosido ou colado e cortado por um processo mais ou menos robótico. Até já desapareceu o livreiro, o que afagava as capas e descrevia o conteúdo com o pormenor e a parcimónia q.b. para nos levar a comprar...)

Ninguém.pt disse...


Bom e expressivo


Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito.

Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão-de-ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,

tal como o outro pedia
se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: — Não é poesia!,

diz-lhe que não, que não é,
que é topada, lixa três,
serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pe-

dra que rola na pedra...
Mas também da rima «em cheio»
poderás tirar partido,
que a regra é não haver regra,

a não ser a de cada um,
com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo...


Alexandre O'Neill

Escrivaninha disse...

Este O'Neill devia ser uma pessoa muito divertida. Creio que me lembro dele, na televisão, com uns óculos grossos. (Na realidade, todos os intelectuais que recordo da minha infância estavam a preto e branco e com óculos grossos, e tinham a voz do Luis Filipe Costa. Sim, acho que esta é a minha imagem de todos os intelectuais que pulularam na televisão, sem serem demasiado velhos para terem o cabelo branco).
Este O'Neill era publicitário e li algures - talvez aquando da sua morte - alguns slogans criados por ele que, obviamente, não podiam ser aprovados e que eram recordados pelos amigos, como símbolo do seu génio e bom humor. Um deles teria sido para o Metropolitado de Lisboa - «Vá de Metro, Satanás» - e outra para uma marca de colchões:«Com Lusoespuma não se dá só uma».

Ninguém.pt disse...

Só vim a "encontrar" O’Neill depois de ele morrer, mas acho que ele era essencialmente um provocador, um contestatário provocador.

Mas contestatário-provocador não será a "alcunha" de todo o artista que vive com paixão?

Escrever

Se eu pudesse havia de… de…
transformar as palavras em clava!
havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressonante!
Sem música, como um gesto,
uma pancada brusca e sóbria.
Para quê,
mas para quê todo o artifício
da composição sintáctica e métrica,
este arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo!
Vejo, admiro, desejo?
Ou não… ou sim.
E, como isto, continuando…
E gostava,
para as infinitamente delicadas coisas do espírito
(quais? mas quais?)
em oposição com a braveza
do jogo da pedrada,
da pontaria às coisas certas e negadas,
gostava…
de escrever com um fio de água!
um fio que nada traçasse…
fino e sem cor… medroso…
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito…
Amor que se não tem,
desejo dispersivo,
sofrimento indefinido,
ideia incontornada,
apreços, gostos fugitivos…
Ai, o fio da água,
o próprio fio da água poderia
sobre vós passar, transparentemente…
ou seguir-vos, humilde e tranquilo?


Irene Lisboa

(«Sentidos próprios em tudo»? Como, se andamos sempre tentando encontrar os segundos, terceiros — todos os ocultos sentidos? Quem não gostaria de poder dizer apenas "sim" ou apenas "não" e ser entendido?)