Toda a mudança causa um certo desconforto, mesmo quando é causa de excitação, de entusiasmo. Somos seres rotineiros, por mais que o não queiramos e, frequentemente, quando operamos mudanças, estas conduzem-nos a novas rotinas que nos absorvem.
Não é necessariamente mau...
Vem tudo isto a propósito de eu estar a preparar com algum cuidado - com consciência disso, pelo menos - a mudança que se vai aproximando.
Afastada das leituras «light» (ou porque sim, gosto mais de uma expressão portuguesa e anti-anoréctica) durante os últimos anos, desaficionada (isto existe?) de novelas desde a última que acabou para aí há um mês, desinteressada de concursos e um pouco desiludida de séries, resolvi «começar a abrandar».
Todos os livros que enchem as estantes lá de casa me parecem sérios de mais ou, pelo menos, inapropriados para este interregno. Comprar um livro nunca me parece despesa escusada e lá fui eu à procura.
Batendo mentalmente nas mãos que se enredavam na História, na Sociologia, na Metodologia das Ciências Sociais, ou, já a medo, nos romances históricos, fui excluindo as hipóteses. Considerei rapidamente a culinária ou os trabalhos manuais, arrepiei-me com os preços de belos livros de imagens (e com tão pouco que ler...) e estava quase a render-me a Nora Roberts (não falo por falar, já li dois romances dela; não eram maus, o único problema é que eram iguais) quando ele me apareceu pela frente. Assim, deitado na estante, com olhos azuis suplicantes, entre o desafio para a brincadeira e o pedido descarado de mimo. O livro chama-se «O Novo Inquilino» e o título está enquadrado entre dois novelos de lã. Já perceberam de que tipo é o inquilino, claro. Meti-o numa mala sem fecho - para poder respirar - e trouxe-o comigo para a capital. Redescobrir o prazer de ler nos transportes públicos.
A história é muito «british», com muita vida no campo, muitos animais e aquele cunho de isolamento e autosuficiência que me recorda o que vi no Quebéc: os vizinhos mais próximos ficavam a uma distância que não viam um aceno da porta de casa. Aquilo para mim não eram vizinhos: eram primos afastados. Imagine-se! Ter de ir de carro para todo o lado, ou de galochas, ou aprender a ser canalizador e carpinteiro para resolver os problemas durante o loooongo Inverno, quando as casas ficam isoladas pela neve ou pela chuva!
Portanto já estou farta de tanto «light» e tanto rom-rom. Quero voltar a ler um romance a sério, com uma intriga, que seja, no mínimo, intrigante.
Mas, para colocar aqui qualquer coisa, cá fica um pedacinho de texto, daqueles que só os amantes de gatos compreendem:
"«A esperança é a última a morrer» é, sem dúvida, o mote de qualquer dono de siameses. Os gatos desfazem os estofos das cadeiras, transformam tapetes em perfeitas imitações de astracã, destroem loiça como se tivessem acções em alguma olaria...é mesmo assim, quando o dono substitui a peça pensa que desta vez vai correr tudo bem. Tomando uma ou duas precauções talvez, como colocar mantas em cima da mobília mais sensível, tirar a loiça do traçado da corrida de obstáculos siamesa e, quando se apanha os culpados no acto, ordenar-lhes com firmeza, muita rispidez, a desisitir...
Claro que nunca funciona." Doreen Tovey, pp. 82-83
A sério! Procurem a capa: é lindíssima! Se eu estivesse perto do meu scanner oferecia-vos a imagem.
E agora, continuar as obrigações, que o tempo absolutamente livre, ainda tarda.
4 comentários:
Lição de um gato siamês
Só agora sei
que existe a eternidade:
é a duração
finita
da minha precariedade
O tempo fora
de mim
é relativo
mas não o tempo vivo:
esse é eterno
porque afectivo
— dura eternamente
enquanto vivo
E como não vivo
além do que vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo)
Ferreira Gullar
Soneto do gato morto
Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade
De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.
Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto
Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.
Vinicius de Moraes
Quem há-de abrir a porta ao gato
Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?
Sempre que pode
foge prá rua,
cheira o passeio
e volta pra trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre pra mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase, ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente.
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas.
e rosna.
Rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?
António Gedeão
Também se pode sonhar um gato? Companhia perfeita, qual Príncipe das histórias?
Só um Poeta para ter um Gato Sonhado!
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