terça-feira, 6 de julho de 2010

Graduação

«Ui! Está tanto calor! Até assa canas ao sol...» diria hoje a minha avó, ao reentrar em casa, depois de ir comprar o pão e, talvez, um molhinho de nabiças.
O ar matreiro que lhe ficava no fim da frase, sempre me deu a sensação que havia ali qualquer coisa que eu não percebia...até, depois, ter conhecido a palavra «sacana» e ter, então, entendido o trocadilho.
Hoje dei comigo a pensar que é uma palavra que está em desuso, sobretudo com a força que tinha.
Encontramo-la nas legendas das séries americanas, na tradução de «bastard» e, na doce expressão brasileira de «sacanagem». Mas nada com o ar dramático que poderia ter, antigamente, chamar «sacana» a alguém.
Talvez porque o próprio conceito de sacana - fortíssimo, no tempo «em que se lavava a honra com sangue» - tenha evoluido a par com o dos detergentes, cada vez mais eficientes, que lavam qualquer nódoa: de fruta, de terra ou de carácter.
Os sacanas instalaram-se - descaradamente - por todo o lado. Despertam-nos a raiva, mas acenam-nos dos seus lugares confortáveis.
Talvez hoje o sol asse só mesmo as canas, porque todos os sacanas têm ar condicionado. Condicionado, precisamente, pelo graduação de sacanice que o «doutô» tem numa escala própria, em escalada vertiginosa.

6 comentários:

josé luís disse...

sendo um rapaz já mui antigo, aprecio sobremaneira algumas queirosianas expressões:
a tropical "menino, está um calor de ananases" ou a afamada "está de derreter os untos".

Escrivaninha disse...

Belas palavras para escorrerem num dia como o de hoje ou o de amanhã ou...
Gostaria de um Verão mais ameno!

Ninguém.pt disse...

Tem piada que eu conhecia esta frase feita com uma palavrinha a mais:

"Está tanto calor que nem assa canas ao sol!"

Isto era aparentemente contraditório, pois o calor devia conseguir a proeza... Depois percebi que com tanto calor os sacanas se recolhem, tal como as pessoas decentes.

Mas ontem morreu uma avozinha muito querida, parece até que o calor está a levar-nos a eito os que têm valor — os sacanas e os outros.

Aqui deixo a minha homenagem a esta fonte de ternura que nos deixou:

Bando dos gambozinos

Menina dos olhos doces
adormece ao meu cantar:
Tenho menina de trapos,
Tenho uma voz de luar...

Os meus braços são a lua
quando ela é quarto crescente:
dorme menina de trapos,
meu pedacinho de gente.


Matilde Rosa Araújo


História do Sr. Mar

Deixa contar...
Era uma vez
O senhor Mar
Com uma onda...
Com muita onda...

E depois?
E depois...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
E depois...

A menina adormeceu
Nos braços da sua mãe...


Matilde Rosa Araújo

Ninguém.pt disse...

Para alguém que anda sempre dizendo que eu não gosto de gatos...

A gata
(A meu filho Carlos)

A gata branca tinha um olho verde e outro azul
mas para mim ela era como uma aranha.
Que pena eu tinha de a não amar,
que pena eu tinha do seu ronronar em mim não ter eco.
E sempre que a gata vinha eu ia
e ela ficava mais triste mais só.
Sim, ela tivera casa, almofada e mesmo um nome
depois nasceu um menino e ela foi para o quintal.
Como ela soube então que as noites eram azuis,
o luar, o cheiro da terra molhada e tudo o mais.
Mas um dia a casa ficou vazia.
Aqueles de quem ela tinha sido e seus se diziam
fizeram malas e levaram tudo o que havia,
foram-se deixando a porta fechada.
Só ela ficou, toda branca um olho verde outro azul.
Passaram noites, dias longos e silêncios.
Depois cheguei eu, as flores e os risos,
a casa enchera-se outra vez, mas ela não entrou.
Rondava, olhando-me como intrusa.
Passou o verão, houve noites de chuvas
Noites azuis e de estrelas que nevavam.
E numa delas chegou um menino, o meu menino.
Então amei-o, amei-o daquele amor à vida
transbordante e doce, até às coisas pequenas.
E quando um dia a gata se foi deitar
em meu casaco numa cadeira esquecido,
olhei-a e não a pude enxotar.


Eugénia Tabosa

Ninguém.pt disse...

Estava eu pensando como estava vazia esta casa sem o respectivo mobiliário quando a palavra-despertador surgiu e me arrastou para este poema nesta voz nunca esquecida:

http://www.youtube.com/watch?v=awwPm04pKXQ

Era de noite e levaram

Era de noite e levaram
Era de noite e levaram
Quem nesta cama dormia
Nela dormia, nela dormia

Sua boca amordaçaram
Sua boca amordaçaram
Com panos de seda fria
De seda fria, de seda fria

Era de noite e roubaram
Era de noite e roubaram
O que na casa havia
na casa havia, na casa havia

Só corpos negros ficaram
Só corpos negros ficaram
Dentro da casa vazia
casa vazia, casa vazia

Rosa branca, rosa fria
Rosa branca, rosa fria
Na boca da madrugada
Da madrugada, da madrugada

Hei-de plantar-te um dia
Hei-de plantar-te um dia
Sobre o meu peito queimada
Na madrugada, na madrugada


Luís de Andrade

(Volte, está perdoada!...)

Escrivaninha disse...

Ah! Estava eu «posta em desassossego», a pensar no que havia de aqui escrever, quando vejo este sensibilizante comentário.

Mas a mim não me levaram, nem me amordaçaram, felizmente. Fui de livre vontade e muito tenho até dito e escrito, mas não é para aqui chamado (literalmente).

Sobre o Zeca - sempre o Zeca! - já aqui escrevi, uma vez, um texto. E foi sentido. E foi guardado, por aí, algures.

«Prazer em vê-lo!» Mais tarde volto com alguma prosa.