terça-feira, 13 de julho de 2010

Cenário

Subo a escada com a garrafa de água das pedras na mão. Olho para a sala, com os sacos da viagem ainda espalhados - retirei apenas a roupa para lavar e os papeis...Em cima da mesa uma lista de coisas para fazer, para ir riscando, cumprindo, aproximando do fim a tarefa.
Retiro uma almofada do sofá e coloco-a no chão, procuro a mola vermelha para prender o cabelo, demasiado longo para o Verão (um dia destes vou cortá-lo curto!) e atiro para longe as chinelas, apoiando a planta dos pés na tijoleira fria do chão. Afasto a mesa...olho em redor. As calças de ganga não são confortáveis para me sentar no chão. Procuro uma peça leve - vermelha, hoje tem de ser vermelha - os calções do pijama que os meus amigos me ofereceram num aniversário: aqueles que têm um gato rodeado por ossinhos.
(Ficaram tão desolados quando eu disse que algo não estava certo! «Os gatos não comem ossos...Será um cão?»
Um deles quebrou o silêncio por fim: «Tu não tens a mania que és diferente dos outros? Se fosses gato aposto que ias querer comer ossos!»
O som das gargalhadas repôs a normalidade do grupo e da celebração).
Cá estão: curtinhos, frescos e...invulgares.
Agora as bolachas. No meu cenário de escrita tem de haver bolachas e água das pedras.
Sempre me fascinei com as rotinas e manias dos escritores: Agata Christie escrevia na banheira a roer maçãs, Freitas do Amaral disse uma vez que escreveu cada capítulo da sua tese num hotel diferente...Para se ser um bom escritor deve-se ter manias? Se calhar todos temos manias para as coisas que fazemos, mas só as das pessoas célebres as acompanham para fora do anonimato.
Seja como for, o cenário está montado: pé no chão, almofada, bolachas, água das pedras, caneta e papeis. Vamos lá contornar o calor da tarde e refrescar a escrita!

5 comentários:

Ninguém.pt disse...


Que o rudo engenho meu me desengana


De tão divino acento em voz humana,
De elegâncias que são tão peregrinas,
Sei bem que minhas obras não são dignas,
Que o rudo engenho meu me desengana.

Porém da vossa pena ilustre mana
Licor que vence as águas Cabalinas;
E convosco do Tejo as flores finas
Farão inveja à cópia Mantuana.

E pois a vós, de si não sendo avaras,
As filhas de Mnemósine fermosa
Partes dadas vos têm ao mundo claras;

A minha Musa, e a vossa tão famosa,
Ambas se podem nele chamar raras,
A vossa de alta, a minha de invejosa.


Luís Vaz de Camões

(Qu'inveja!)

Escrivaninha disse...

Há dias, numa conversa de restaurante - entre as entradas e o vinho fresco - alguém concluiu que os sentimentos poderiam ter uma correspondência nas cores.
Com esta ideia, lá fomos discorrendo e acabámos por estar todos de acordo sobre a atribuição da cor verde à inveja.
Curiosamente foi o único sentimento em que estivemos de acordo (os que adoptaram esta posição, pois também havia alguns que não consideravam esta correspondência sentimento/cor válida, nem evidente).O que acha?

Ninguém.pt disse...

O que eu acho? Pois bem:

1.º Acho que me está a chamar verde...

2.º A Wikipédia também associa a inveja ao verde (http://pt.wikipedia.org/wiki/Inveja).

3.º Nunca tinha pensado nisso, mas tendo a não concordar (tinha que ser, não?). Acho que a inveja é um sentimento escondido, rasteiro, da sombra. Por isso talvez lhe atribuísse a cor amarela ou o cinzento.

4.º Verde e vermelho são as cores mais berrantes, ficam bem em sentimentos explosivos ou muito visíveis: verde de raiva, vermelho de fúria.

5.º A amizade teria, quanto a mim, um tom pastel, talvez um verdinho muito clarinho ou um azulzito também muito claro.

6.º O amor, esse acho-o com cara de azul-celeste, a cor dos horizontes a perder de vista, dos mares profundos e insondáveis. (Talvez aquele azul do mar que separa a ilha do Faial da ilha do Pico...)

7.º O luto, a dor, o sentimento de perda, associo-os mais ao branco.

8.º O preto seria para mim a cor da soberba, da ostentação.

9.º Não sei mais porque na escola não me ensinaram as cores todas e não me ensinaram a aprender...

Escrivaninha disse...

Ena! Afinal achava imensas coisas. E se não acha mais é porque não quer, estando a Escola inocente dessa peleja, pois - como diz Içami Tiba - há sempre «os alunos que aprendem, apesar do professor» - e, com certeza aprendeu a consultar a wiki e a achar essas coisas todas «apesar das falhas da Escola». Vamos lá a deixar de atirar tantas pedras, também...

Pois eu acho o branco a cor da felicidade, o azul da fluência, o preto da seriedade e contrariedade e o vermelho...ah! o vermelho da paixão e do escândalo, que tantas vezes andam associados...tendo - como contraponto - o verde da inveja, dos que não sentem paixão.

O amarelo, para mim, é inexpressivo. O cinzento é compreensivo.

E mais não digo, pois inventei isto tudo agora, para parecer que maturei muito a questão...Mas não é verdade.

Mas é um bom tema «para jogar conversa fora», como se diz lá do outro lado.

Ninguém.pt disse...

Miss, os dinossáurios nunca co-existiram com a wiki — pois se nem computadores havia...

Mas humildemente me penitencio da pedrita que atirei; esqueci o 12.º mandamento: «Não atirarás pedras.»

Quanto às cores, quase não coincidimos em nenhuma (finalmente, como se quer!).

Apenas juntaria às minhas o vermelho da paixão, porque a paixão é também uma fúria, um turbilhão, um vulcão.

Mas mantenho o azul como a cor do amor, que é diferente da paixão e nem sempre lhe sucede.

A felicidade, essa tem as cores, os odores e os sabores dos campos primaveris. Mas é volátil, e muitas vezes adquire cor-de-burro-quando-foge...