sábado, 17 de julho de 2010

Minha História, do tempo em que o Chico ainda era de Hollanda, como o pai, o grande historiador

"Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente, laiá, laiá, laiá, laiá
Ele assim como veio partiu não se sabe prá onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido, cada dia mais curto, laiá, laiá, laiá, laiá
Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré, laiá, laiá, laiá, laiá
Minha mãe não tardou alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor, laiá, laiá, laiá, laiá
Minha história e esse nome que ainda carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus, laiá, laiá
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus, laiá, laiá, laiá, laiá"


17 comentários:

Ninguém.pt disse...

Talento é aquilo que distingue os talentosos dos outros, dos "apenas" bons.

Esta versão de Chico Buarque é de um talentoso, enquanto o original é "apenas" uma bela canção:

http://www.youtube.com/watch?v=WigR7PSFfI0

Para além do seu enorme talento, Chico foi sempre um enorme e esclarecido cidadão. É um dos meus ídolos.

Saravá, Chico!

Escrivaninha disse...

Ainda não tive oportunidade de ler nenhum livro dele: 'tá na lista...

Também é um dos meus ídolos, pois, para além de todas as qualidades que o Mestre mencionou (talvez para si não tenha importância, mas tem o seu peso) o homem é lindo! E tem aquele jeitinho tímido de falar...

Eu não consigo achar um sacana bonito e encontro sempre algumas qualidades de beleza nas pessoas que admiro, mas, quando, sem qualquer esforço tudo se conjuga numa mesma pessoa...é um monumento!

Ninguém.pt disse...

A beleza física não é o primeiro atributo que procuro num(a) artista, mas não tenho pejo em afirmar que sim, ele é lindo e charmoso.

O que contribui para aumentar a minha admiração por ele, pois tendo tudo para ser um soberbo insuportável, é de uma simplicidade desarmante.

Li alguns dos livros do Chico e adorei um deles, talvez porque de certo modo me revi na actividade descrita: "Budapeste".

Por acaso até tenho em formato digital "O Estorvo". Não gosta de ler no computador? Se gostar, posso enviar-lho.

(Eu, infelizmente, quando leio algum no ecrã tenho que ir comprá-lo a seguir. Preciso do contacto com o bichinho-da-letra, topa?)

Escrivaninha disse...

Obrigada, mas ler no computador, só por trabalho. Por prazer, tenho de ter o prazer de tocar e manusear o livro.

Aquele que tenho mais curiosidade de ler é, de facto, Budapeste. Espero poder fazê-lo brevemente. Não está muito longe do topo da lista, que espero poder começar a riscar em breve, já a partir de Setembro.

Ninguém.pt disse...

Off the topic:

Um poema


Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar,
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...


Miguel Torga

Ninguém.pt disse...

Ainda off the topic:

Sim, sei bem


Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.

Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.

Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.

Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.


Fernando Pessoa

(Hoje só me apetece disparar para o ar...)

Escrivaninha disse...

Dispare, Mestre, pois está a acertar em cheio.

Vou «salvar» o Torga, não vá ele perder-se e, outro dia, sei que o vou querer encontrar.

Ninguém.pt disse...


Soneto 326 – Paternal (1999)


Por que Deus nunca é mãe? Por ser severo?
O homem necessita autoridade.
Só ama a quem receia, essa é a verdade.
Por isso amava um Pai, temia um clero.

Não é o rigor paterno que venero,
mas sim a sapiência duma idade
que já conhece Cristo, Buda e Sade,
Homero e Judas, Sócrates e Nero.

Camões na poesia sirvo e amo,
"mas não servia ao pai, servia a ela",
pois sou filho bastardo desse ramo.

Em meio a numerosa parentela,
me sinto até caçula quando chamo
Bocage de titio, mana a Florbela.


Glauco Mattoso

Escrivaninha disse...

E sempre fiquei a conhecer mais um poeta - com nome de historiador - ou estará em estado comatoso devido a excessos poéticos? (Cada um dispara o que sabe ou o que julga que sabe...)

Ninguém.pt disse...

Se não conhecia, vale a pena espreitar a Wikipédia sobre o "nome" dele:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Glauco_Mattoso

É um poeta muito engraçado, satírico, cáustico.

Aqui vai mais um poemita:

Soneto 500 — Vicioso (2002)

Poema lembra amor, que lembra carta,
que lembra longe, e longe lembra mar,
que lembra sal, e sal lembra dosar,
que lembra mão, e mão alguém que parta.

Partir lembra fatia e mesa farta;
fartura lembra sobra, e sobra dar;
dar lembra Deus, e Deus lembra adiar,
que lembra carnaval, que lembra quarta.

A quarta lembra três, que lembra fé;
fé lembra renascer, que lembra gema,
a gema lembra bolo, e este o café.

Café lembra Brasil, que lembra um lema:
progresso lembra andar, que lembra pé,
e pé recorda alguém que faz poema.


Glauco Mattoso

Escrivaninha disse...

Ai, que mimo! Adorei!

Ninguém.pt disse...

Ainda bem que gostou. Fico contente...

Do poema

O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes —

o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.


Casimiro de Brito

Escrivaninha disse...

"Não diga mais, senão eu começo a chorar e vou enferrujar...", dizia o Homem de Lata, na versão brasileira do Feiticeiro do Oz.

Ninguém.pt disse...

Miss, se corre o risco de enferrujar, então quer dizer que tem saúde de ferro, não é?

Só tem que ter cuidado com os banhos...

Ah, quanta vez

Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um voo de ave
E me entristeço!

Por que é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Por que vai sob o céu aberto
Sem um desvio?

Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade

Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh'alma alheia

Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do voo suave
Dentro em meu ser.


Fernando Pessoa

Ninguém.pt disse...


Ao triste estado


Passa por esse vale a Primavera,
As aves cantam, plantas enverdecem,
As flores pelo campo aparecem,
O mais alto do louro abraça a hera;

Abranda o mar; menor tributo espera
Dos rios, que mais brandamente descem;
Os dias mais fermosos amanhecem;
Não para mim, que sou quem dantes era.

Espanta-me o porvir, temo o passado;
A mágoa choro de um, de outro a lembrança,
Sem ter já que esperar, nem que perder.

Mal se pode mudar tão triste estado;
Pois para bem não pode haver mudança,
E para maior mal não pode ser.


Frei Agostinho da Cruz

(E este Frei não conhecia os nossos políticos de agora...)

Escrivaninha disse...

"Pra melhor, está bem, está bem;
pra pior já basta assim"

Quem cantava isto? uma Shila, casada com o Sérgio Godinho não era?

Ninguém.pt disse...

Essas notícias cor-de-rosa passam-me sempre ao lado, nunca sei quem é casado com quem. O único caso que decorei foi o meu, mas já esqueci...

Mas já nos séculos XVI e XVII se cantava algo assim, deve ser o tal fado português.

A palavra impossível

Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce —
A Palavra que nunca se profere.


Adolfo Casais Monteiro