Por estes dias a minha relação com a escrita tem-me preocupado bastante.
Dedicada a tempo inteiro a um projecto que tem de ser vertido em escrita, preocupa-me a gestão do tempo, assaltam-me os sentimentos de culpa por não trabalhar «das 9 às 5», por não criar meticulosamente o tempo de ler e de escrever.
Os amigos dizem-me que escrever é diferente das outras coisas, que depende da inspiração, que não se acciona num botão...Mas eu, com a necessidade de me culpar, de me fustigar como negligente, clamo que é tudo uma questão de método, de dedicação, de criação de tempos e espaços de produção.
Insisto em levantar-me cedo para aproveitar as manhãs e infalivelmente só consigo trabalhar quando a fresca da tarde expulsa a luz excessiva e cria a atmosfera de recolhimento necessária à produção, que vai crescendo em volume e entusiasmo. Noite fora. Até os pássaros anunciarem aquela explosão de luz que me predispõe mais à extroversão ruidosa que à escrita.
"E lá dormi outra vez a manhã..."
"Pois, precisas de repor energias, se escreveste a noite toda..."
"Mas anteontem não escrevi...Devia conseguir fazer uma média de páginas por dia..."
"Mas tu achas que isto é como o forno do padeiro? Colocas a massa e os pães saem feitos?"
"E o que é que o meu trabalho é mais que o do padeiro?"
"Ai mulher! 'Tás impossível! Vai dar uma volta. Esta conversa é intragável!"
Vivo num desassossego, numa luta interna, num diálogo de «Olívia patroa e Olívia costureira», que vai fazendo de mim a minha pior inimiga.
Pedi socorro, demandei reforços, mas mesmo eles não se entendem, porque se um me diz que tudo é uma questão de inspiração, de acordo com a minha Olívia costureira, o outro fala-me de que não há entraves à produção, é só procurar; uma questão de método, de acordo com os argumentos da minha Olívia patroa.
Escutem-nos:
"É ao sabor da pena que se escrevem as mais extraordinárias narrativas e os mais fantásticos poemas. Mas a pena de pouco valia se não fosse a inspiração. Esse alento íntimo, esse impulso misterioso que se espalha pelo espírito e nos carrega de ideias, de sonhos e fantasias. Essa coisa tão mágica, que se chama inspiração, é a responsável por linhas e páginas de consolo, de fruição e de prazer." Oliveira, A.M. e Cannas, J., Admirável Mundo, p. 21
"Quem escreve não precisa de procurar coisa alguma. As coisas que procura é que se aproximam. Mesmo quando a cabeça parece vazia. Mesmo quando não tem «tema». Uma pessoa acorda. Sai à rua. E surgem trinta crónicas, empurradas pelo vento, como jornais desfolhados contra as calças. Entra num café. Ouve as conversas. As conversas existem para serem ouvidas. E aí está matéria para trezentos textos. (...) O mundo é um caleidoscópio, eternamente fazendo formas e contrastes e alucinações. Ainda que vivêssemos cem anos, nunca estava tudo visto, nunca o mundo se esgotava. O solestício. A gravidez. Um veado morto numa estrada. O soalho que range. A beringela. Um equívoco entre amigos. A loja de ferragens." Mexia, P. , O Tema in Primeira Pessoa, pp. 151-153
"E agora? Fazer o quê?... Se nem estes gajos, que são escritores, se entendem..."
"Começar a escrever, que o sol já não se vê deste lado do apartamento e a fresquinha está a trazer-me a inspiração."
Tenho de ir. Pelo sim, pelo não, não me telefonem amanhã de manhã, por favor!
1 comentário:
Inspiração, expiração, transpiração ou... coração?
À Poesia
Vou de comboio…
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
– E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!
Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas…
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?
Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!
Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem sequer acordar?
Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?
Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?
Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse…
Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz…
Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir…
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir…
Mas eu sei que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens, emoções!
Sei que serve quem ama,
E que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.
Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão:
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!
Miguel Torga
Enviar um comentário