O Telejornal começou mais cedo, hoje, na SIC. Deve haver futebol, que é aquilo que costuma transtornar toda e qualquer rotina das mais arreigadas do país.
Tendo acabado de «lavar a cabeça» com uma patacoada de fim de dia - no caso a nova novela cómica Ti-ti-ti - pensei que talvez não fosse mau tentar acompanhar um noticiário inteiro, amestrar-me com a actualidade; sempre poderia falar com as outras pessoas, sinto-me tão 'out'...tão sem interesse em tudo aquilo que se comenta, com uma profunda anemia de interesse pela circulação quotidiana a que chamamos dia-a-dia. Ocupada que estava a fazer festas ao novo bichano e a desviar a mão dos seus dentes afiados e brincalhões, mantive-me sentada. Mas o Sinhô Gato resolveu perseguir uma mosca e abandonou-me perante a desolação de olhar para o écran, ver e ouvir as notícias... O computador aqui tão perto...uma lista de «Favoritos» a desafiar-me para deambulações...e, zás! zarpo na net, encolhendo os ombros às dúvidas de conseguir, ainda assim, manter-me concentrada e com-pre-en-der o noticiário, a minha condição de pertencente ao mundo...
No De Rerum Natura um rebuçado para a alma, de alguém que também não compreendia o dia-a-dia que lhe queriam impôr como a normalidade:
"Uma entrada de Conta Corrente 3, de Vergílio Ferreira, datada de 13 de Fevereiro de 1981, a páginas 47 e 48:
«Ontem, na rádio (...) alguém falava de pedagogia moderna. Conheço a música suficientemente: trabalhos de grupo, iniciativa do aluno, aligeiramento da pressão do mestre segundo o atávico e mau costume de «impor» e de «ditar», desopressão da memória, essa faculdade reaccionária, descomplexificação das criancinhas com a permissão compreensiva dos seus caprichos selvagens, etc.
Claro que a criatura que preopinou na rádio nao foi isso que disse. Mas foi. O trabalho e a disciplina são os alvos privilegiados para se arriar e ser progressivo. E das três fundamentais faculdades humanas - a inteligência, a sensibilidade e a memória - é nesta que se aplica a maior coça purgativa.
Daí que a História tenha sido praticamente eliminada do ensino, seja qual for a forma que ela tenha de historiar: história sociopolítica, história da língua, da literatura. Hoje o aluno ignora praticamente quem é que lhe fabricou o seu modo de ser, quem cavou para ele semear, como é que se travou a sua eventualidade portuguesa. Do mesmo modo, ignora razoavelmente quem é que o ensinou a sentir, quem é que lhe arranjou a língua que tem, ou seja o seu modo de entender o mundo, ou seja o seu mundo. Não senhor. Olhar para trás, não. «Para trás mija a burra», e ele não pertence à espécie. Ele está virado para a frente, com o progresso entremeado em todas as articulações. Que raio lhe interessa saber quem era D. Afonso Henriques, que se calhar nem era do Benfica? que diabo pode interessar-lhe o Álvares Pereira, que nem sequer foi talvez à TV? Ser pela História é ser pela reacção, que quer dizer «acção para trás». Além de que obriga a «decorar».
Ora meter nos cornos nem que seja a tabuada - que violência fascista. Obrigar à disciplina, que violência pidesca. Uma criança nasceu, como é sabido desde os hotentotes, para a livre expressão da sua terna selvajaria. Uma criança nasceu para inocentemente partir os móveis, borrar as paredes, fazer o seu chichi nos vasos, quebrar a louça por enternecedor passatempo e sobretudo para não ser submetida à grilheta do estudo.
Tenho as minhas discussões com despachados pedagogos, advogados desse sistema. Aqui há uns dois anos, por exemplo, com a professora primária da Rita. A miúda estava já na segunda classe mas ignora ainda praticamente o feito do a. Timidamente fui adiantando à professora que seria talvez conveniente informar a criança como era isso do a e coisas assim. Ela sorriu piedosamente para o meu atraso pedagógico e explicava-me com paciência que a livre formação de uma criança, que a sua descomplexificação, que. Eu ouvia e ia aprendendo. Em todo o caso, insistia eu, talvez que, enfim, ensiná-las a juntar duas letras, ir começando a dar-lhe notícias de que as palavras se podiam escrever e ler e... Ela desistiu de dialogar, porque a sua piedade já não chegava para tanto.
Nas férias desse ano, a senhora professora pediu-nos emprestada a casa de campo para se instalar cá uns dias com o seu rancho escolar. Dissemos que sim, pois. E cá estiveram todas muito contentes. Uma das criancinhas, na sua livre expressão, tentou com uma podoa derrubar-me um inofensivo pinheiro. Outro subtraiu-me uma máquina de um comboiozinho eléctrico. Outra destrui-me um ninho que havia ao pé do alpendre. Mas libertaram-se da ameaça de complexos e recalcamentos e eu fiquei contente. E em face disso, tempo depois a senhora professora escreveu-me a agradecer. Era um bilhete ilustrado muito bonito e começava assim: «Não poço agradecer-lhe devidamente...». Sim, sim poço com c cedilhado. Mas sejamos compreensivos: se as crianças têm o direito à descompressão, a senhora professora também tem.»"
Um post de Helena Damião, para ler aqui: http://dererummundi.blogspot.com/2010/12/o-meu-atraso-pedagogico.html#comments
Afinal ainda ouvi alguma coisa do noticiário: estão a discutir a corrida desenfreada aos últimos pacotes de açúcar, num país com vários milhares de pessoas com dificuldades económicas para comprar o pão e o leite!
Será que as palavras ficam presas no tempo? Terão as palavras alguma coisa a ver com a moda, efémera e volátil? Evocações do passado também poderão ser palavras que, outrora, marcaram tanto o nosso quotidiano como o som do chiar do baloiço, o pregão da “língua da sogra” na praia ou o cheiro do cozido à portuguesa ao domingo?... Procurar e (re)contextualizar palavras, embalarmo-nos nelas, divagar sobre elas, são alguns dos objectivos deste projecto. Por puro prazer!
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
Uma nova actualidade? Completamente: agora escreve-se sem 'c''
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