domingo, 15 de agosto de 2010

Nas «asas» da História

Esta mensagem tem como mote o último comentário à mensagem anterior.

Ao lê-la pensei: «Ah! A fantasia tem andado tão arredada das aulas de História. E que falta ela faz!...»Fantasia, talvez não seja o termo: prefiro imaginação. A imaginação é mesmo um requisito para compreender (e gostar) de História. Pois se não podemos ir lá - ao passado - temos de nos imaginar lá. Mas, claro, dentro de um determinado contexto. Caso contrário, lá surgem os anacronismos.

Os anacronismos são inevitáveis nas aulas de História. É uma das coisas para que primeiro alerto os meus alunos.

Alguns dos anacronismos ou das interpretações diferentes das palavras têm ocasionado momentos bem saborosos das aulas de História.

Como no dia em que eu estava explicando o contexto em que surge a Reforma Protestante do século XVI e lhes falava das evidências de uma decadência moral no topo da Igreja e de incoerências flagrantes. Depois de ter falado em certos comportamentos escandalosos da elite da Igreja centrei-me nas questões da guerra e da paz, dos princípios e práticas da Igreja Católica. E dizia eu: "Reparem! O Papa, que devia promover a paz, patrocinava guerras. As cruzadas eram patrocinadas pelo Papa." Quando um aluno começa a rir-se, com um ar mesmo divertido e diz: "Parece que estou a ver. Todos em cima dos cavalos, com t-shirts que diziam «Esta guerra é patrocinada por: Igreja Católica de Roma».

O garoto tinha piada e estava mesmo a fazer uma piada. Não sei se se consegue perceber assim, fora do contexto, mas eu nunca mais deixei de ter esta cómica imagem no espírito: Como um cartoon - os cruzados de t-shirts brancas e os muçulmanos de t-shirts negras, todas com as letras dos patrocinadores das guerras.

Não deixa de ser curioso que eu associe o branco ao «lado de cá» e o negro «ao lado de lá». Há certos preconceitos que se insinuam nas cores da nossa imaginação: que incomodativo!

10 comentários:

Ninguém.pt disse...

Miss, apenas por distracção não
"viu" os patrocínios nos peitos dos guerreiros... Não tinham o slogan, mas usavam todos os logótipo do patrocinador: uma cruz para uns, um crescente para outros.

Os vikings tinham os capacetes com cornos, os romanos as fardas e aos seguidores de Átila e de Gengiscão não faltariam sinais distintivos suficientes para não serem confundidos nas batalhas — ou estou enganado?

Sendo a guerra um grande negócio, os "fornecedores" e os "patrões" cuidavam do seu marketing, incluindo as "motivações" necessárias para a carne entrar para o canhão.

As balas

Dá o Outono as uvas e o vinho
Dos olivais o azeite nos é dado
Dá a cama e a mesa o verde pinho
As balas dão o sangue derramado

Dá a chuva o Inverno criador
As sementes da sulcos o arado
No lar a lenha em chama dá calor
As balas dão o sangue derramado

Dá a Primavera o campo colorido
Glória e coroa do mundo renovado
Aos corações dá amor renascido
As balas dão o sangue derramado

Dá o Sol as searas pelo Verão
O fermento ao trigo amassado
No esbraseado forno dá o pão
As balas dão o sangue derramado

Dá cada dia ao homem novo alento
De conquistar o bem que lhe é negado
Dá a conquista um puro sentimento
As balas dão o sangue derramado

Do meditar, concluir, ir e fazer
Dá sobre o mundo o homem atirado
À paz de um mundo novo de viver
As balas dão o sangue derramado

Dá a certeza o querer e o concluir
O que tanto nos nega o ódio armado
Que a vida construir é destruir
Balas que o sangue derramado

Que as balas só dão sangue derramado
Só roubo e fome e sangue derramado
Só ruína e peste e sangue derramado
Só crime e morte e sangue derramado.


Manuel da Fonseca

Ninguém.pt disse...

Depois de mais uma vez ter ido além da chinela (perdoa, Miss?), deixo-lhe um suborno:

Sou de vidro
 
Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro
 
Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido
 
Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita

                                    Lídia Jorge

Escrivaninha disse...

Vê porque é que eu dou poucas aulas de História, por aqui?

O aluno da primeira fila é muito desconcertante...

(Só lhe perdoo porque eu, como aluna, também fui muito desconcertante - e os meus alunos que não saibam! - e hoje, por uma questão de solidariedade da raça, tenho alguma pena de alguns que foram meus professores...mas muito orgulho noutros).

Ninguém.pt disse...

Chamar desconcertante é elogiar o bandido, Miss!

Intrometido, tipo Joãozinho...

Mas estive eu a gastar o meu suborno e afinal não era necessário, podia confiar na bondade da Mestra...

... que, no entanto, não disse se concorda comigo: desde que as guerras começaram a ter dimensões ultra-familiares, por uma questão prática de não darem com os cacetes nos toutiços de colegas de partido, houve que distinguir os exércitos, criar distinções. Verdade?

E os trajes começaram a ter objectos e sinais que podemos hoje considerar de marketing motivacional, não concorda?

Logótipos, "marca", "imagem", "equipa" — talvez não existissem como conceito abstracto, mas existiam na prática, não foram inventados pelo consumismo moderno, apenas adaptados.

(Vá lá, pago-lhe a aula em cromos, em berlindes ou em poemas, escolha.
Já não há pirolitos nem gasosas...)

Ninguém.pt disse...


Poema da terra adubada


Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.
Por detrás das árvores escondem-se os soldados
com granadas de mão.

As árvores são belas com os troncos dourados.
São boas e largas para esconder soldados.

Não é o vento que rumoreja nas folhas,
não é o vento, não.
São os corpos dos soldados rastejando no chão.

O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes.
É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.
É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.
São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

Depois os lavradores
rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,
e a terra dará vinho e pão e flores
adubada com os corpos dos soldados.


António Gedeão

Escrivaninha disse...

Concordo, claro.

Mesmo assim deve ter havido muito «fogo amigo» que não ficou na História. Fogo amigo, marretada amiga, espadeirada amiga, etc. etc.

Por acaso toda esta conversa fica muito bem no remate da minha tarde em que estive a rever «Os Imortais», um filme do José Pedro de Vasconcelos, sobre a guerra colonial e as suas consequências, nesta nossa santa terrinha.

Conhece esse filme? É muito bom!

Ninguém.pt disse...

Conheço, conheço.

E penso que ainda anda por cá muita coisa escondida ou disfarçada e que tem como origem aqueles traumas todos.

Nunca fizemos, como povo, o luto devido (o nojo, como se dizia antigamente). E a revolução cometeu um erro grave, de que nunca ninguém fez auto-crítica: em vez de diabolizar os mandantes, diabolizou a guerra e os combatentes — vítimas inocentes quando foram atirados para a guerra e de novo vítimas inocentes quando apontados como culpados da guerra, enquanto os mandantes continuaram impunes e alguns ainda andam por aí a arrotar postas de pescada.

Quanto ao "fogo amigo", acho que hoje haverá muito mais porque a luta não se faz cara a cara nem sequer à vista. Os projécteis são agora disparados de muitos quilómetros de distância e nem sempre cairão onde estava projectado.

(Obrigado pela aulinha...)

Ninguém.pt disse...


Despojo

 
E, agora, o que faremos?

A quem legar o que resta

Do simulacro de festa

Que tivemos?
Quem aproveita os detritos

De uma alegria forçada?

Quem confunde aflitos gritos

Com imposta gargalhada?

Iremos por onde alguém

Descubra os nossos farrapos.

Vês flores no jardim de além?

— Vejo sapos.

 
António Manuel Couto Viana

Acho que a questão não é já "a quem", mas "o quê"...

Além do que prometemos a nós próprios e deixámos que não se cumprisse, ainda falta sarar as feridas que então se abriram.

Escrivaninha disse...

Sim, a guerra fez muitas mais vítimas do que aquelas que podem ser contadas pelas estatísticas.

E é um fenómeno muito estranho, a nossa reacção colectiva às «feridas de guerra»...É um assunto pelo qual os alunos se interessam bastante, mas, frequentemente, não há tempo para abordar em profundidade.

Há uns anos vivi uma experiência muito interessante, ao acompanhar umas alunas que quiseram entrevistar ex-combatentes. O que aqueles homens sofreram! E a generosidade deles de darem as entrevistas «para que as meninas soubessem o que era a guerra e nunca mais a deixassem acontecer».

As parvas das meninas não acabaram o trabalho, mas eu guardo aqueles três homens no coração. Deram-me uma extraordinária lição de vida!

E às vezes, tenho a sensação que estamos - como país - à espera que morram todos, para não mais nos poderem lembrar o fantasma da guerra colonial (do colonialismo em geral) que nunca exorcizámos.

Isto hoje está muito sério.

Boa noite, Mestre. Sonhe com um mundo sem guerras, porque se lhes tinham acabado os patrocinadores: agora era a paz e a sustentabilidade que eram lucrativas. ("E pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz")

Ninguém.pt disse...


Canção amiga


Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
 
Caminho por uma rua
Que passa por muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
E saúdo velhos amigos.
 
Eu distribuo um segredo
Como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
Dois carinhos se procuram.
 
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas.
 
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças


Carlos Drummond de Andrade

Boa noite, Miss! Sono repousante e sonhe com batalhas de pétalas de rosa e almofadas de penas.

Beijito.