Falava-se de Portugalidade ontem, no Jornal da Noite, a propósito do Portugal dos Pequenitos em Coimbra. Soube-me a Estado Novo o discurso e recordei a minha visita ao referido parque temático, já em adulta, e a sensação estranha que me causou, como se aquele Portugal nada tivesse a ver comigo...Ontem falou-se em contextualização das coisas e que não podíamos recusar ou abandonar (ou fingir que nos esquecemos) de algo que teve o seu sentido e a sua época, tal como não vamos apagar parte da História; antes explicá-la integrada no seu contexto próprio.
Reconheci razão no que ouvia. Fiquei a pensar no «destino» deste «povo pequenino», espalhado por todo o lado.
Nem de propósito conseguiria encontrar, se quisesse, um texto tão apropriado a esta temática, como o que encontrei, por acaso, ao continuar a leitura do discurso de D. Manuel Clemente, aquando da distinção com o prémio Pessoa:
"Vieira [o Pe. António Vieira] vê a exiguidade territorial como causa providencial do destino pátrio. Chegaria para berço, mas não para a sementeira nem para o túmulo, porque Portugal só no mundo inteiro descansaria, sendo essa a sua glória, mesmo que trágico-marítima."
De facto, esta alma irrequieta, este desejo de se espalhar por aí, esse destino de viajante, aventureiro, «fura-vidas», saltimbanco e contador de histórias, parece habitar o «ser português», como se o torrão não nos chegasse, como se só «lá fora» nos realizássemos plenamente; nos cumpríssemos, enquanto Nação.
Mas a exiguidade das terras, é-o também, frequentemente das vistas. Desprezamos o que é nosso para louvar o que vem de fora...mesmo os nossos só são por nós verdadeiramente louvados, quando voltam carimbados do estrangeiro.
Que fado é este? Que destino é este que precisa de se exteriorizar antes de se interiorizar? Que estranho fenómeno nos faz não admirarmos companheiros do dia-a-dia, reduzindo-os na sua pequenez, ao invés de nos elevarmos na sua companhia?
Também D. Manuel Clemente evoca as palavras de António Vieira para vincar estas características do «ser português»:
"De várias maneiras reprovava Vieira a nossa incapacidade de mútua admiração, mesmo quando teríamos todas as razões para ela. Não resisto a citar aqui duas delas, por me parecer o autor por demais certeiro. Oiçamo-lo sempre a propósito de Santo António e ainda mais a nosso propósito: «Os mesmos que agora amam e veneram tanto a Santo António, se viveram em seu tempo, o haviam de aborrecer e perseguir; e as mesmas maravilhas que tanto celebram e encarecem, se foram obradas na sua pátria, as haviam de escurecer a aniquilar. (...) é consequência própria e natural da inveja perseguir os presentes e estimar os passados, matar os vivos e celebrar os mortos.» Como se dissesse que tanta luz nos ofusca e só a toleramos ao longe ou na sombra que deixe. Ainda hoje?
Pior ainda a segunda alusão, permanecendo a dificuldade em olharmo-nos de frente quando isso signifique o simples reconhecimento da qualidade do outro. Escreve Vieira: «(...) é necessário que advirtamos primeiro uma notável habilidade e astúcia, que usa a inveja para desluzir e escurecer as boas obras e para lhes envenenar e destruir a mesma bondade. E qual vos parece que será esta habilidade e astúcia? É que nunca olha para toda a obra boa de claro em claro, assim como é em si mesma; senão que sempre a procura tomar por um lado e por aquela parte ou ponta donde menos claramente se descobre a sua bondade, para ter em que morder e que arguir.» De novo nos perguntemos: ainda hoje?"
Sim, hoje, ontem, daqui a bocado, amanhã...
Será isto inevitável? Fará parte da Portugalidade uma certa pequenez mental, um certo bafio intelectual que nos enviesa o olhar e nos impede de medrar, procurando seguir o exemplo dos nossos melhores pares? Será que reconhecer o valor dos que nos estão próximos nos diminue em alguma coisa? Será que não conseguimos admirar por termos inveja de, nas mesmas condições, no mesmo contexto, um ter tido a coragem de fazer mais, de ser mais, de exigir mais de si, que nós próprios? Seria assim tão difícil reconhecer o mérito do outro? Será a inveja a causa da ferrugem do tempo que nos tolhe os movimentos em direcção ao futuro?...Não sei, mas dá que pensar!...
(As citações foram recolhidas em Revista Actual, Expresso, nº 1958, 8 de Maio de 2010)
1 comentário:
Belo texto, Miss, quase estou de acordo consigo (enfim, de acordo total não pode ser...).
E junto-lhe mais este depoimento:
Dizia uma vez Aquilino...
Dizia uma vez Aquilino que em Portugal
os filósofos se exilavam ainda em seu país
(v.g. Spinoza). O curioso porém
é que também ninguém foi santo lá:
os nascidos em Portugal foram todos sê-lo noutra parte
(St. António, S. João de Deus, etc.)
e outros santos portugueses, se o foram,
terá sido, porque, estrangeiros que eram e em Portugal
vivendo, não tiveram outro remédio
(v.g. Rainha Santa) senão ser santos,
à falta de melhor. Oh país danado.
Porque os heróis também nunca tiveram melhor sorte
(Albuquerque e outros que o digam) a menos que
tivessem participado de revoluções feitas
"em vez de" (v.g. o Condestável que fez
fortuna e a casa de Bragança e acabou só Santo quase).
Jorge de Sena
(Entretanto o Condestável "subiu" o último degrau, sem dizer nada ao Jorge de Sena.)
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