domingo, 7 de novembro de 2010

Fábula sobre os currículos escolares, com proposta de banda sonora

"O galinheiro estava em polvorosa. Cocorocós de galos, cacarejos de galinha, tofracos de angolinhas, pios de pintinhos – tudo se misturava num barulho infernal. É que todos haviam sido convocados para uma assembléia para tratar de um assunto de grande importância qual seja, o fato de que vários ovos de um ninho terem sido comidos por um ladrão. E as pegadas eram inconfundíveis: o ladrão era uma raposa. Com um sonoro cocoricocó o galo Chantecler, pediu silêncio, expôs o problema e franqueou a palavra. Encarapitado no galho de uma goiabeira um galinho garnizé cantou estridente, sacudiu a crista para um lado e a barbela para o outro e se pôs a discursar. Era o Mundico, que viera de uma cidade grande e era formado em sociologia. . Ele adorava discursar. “Companheiros”, ele começou, “peço a sua atenção para as ponderações que vou fazer acerca da crise conjuntural em que nos encontramos. Charles Darwin foi o primeiro a mostrar que a história dos bichos é marcada pela luta de classes: os mais fortes devoram os mais fracos. Os leões comem os veados, os lobos comem os cordeiros, os gaviões comem as pombas, as raposas comem as galinhas. Os mais aptos sobrevivem; os outros morrem. Assim, a crise conjuntural em que nos encontramos nada mais é que uma manifestação da realidade estrutural que rege a história dos bichos. E o que é que faz com que as raposas sejam mais aptas do que nós? As raposas são mais aptas e nos devoram porque elas detém o monopólio de um saber que nós não temos. Somente nos libertaremos do jugo das raposas quando nos apropriarmos dos saberes que elas têm. E como se transmitem os saberes? Através da educação. Sugiro então que empreendamos uma reforma em nossos currículos e programas. Se, até hoje, nossos currículos e programas ensinavam aos nossos filhos saberes galináceos, de hoje em diante eles ensinarão saberes de raposa. Primeiro, teremos de educar os nossos olhos para que eles passem a ver como vêem as raposas. Onde é que as raposas tem os seus olhos? Na frente do focinho. E os nossos olhos, onde estão? Do lado. Educaremos os nossos olhos para que eles aprendam a olhar para frente. Segundo: teremos de re-educar o nosso andar. Raposas andam com quatro patas. Por isso valem o dobro que nós, que só temos duas patas. Como transformar duas patas em quatro? É simples. Por meio de um processo de adição. Nós, galinhas e galos, bípedes, passaremos a andar aos pares, um na frente, outro atrás, o de trás segurando o traseiro do que vai à frente, e assim seremos quadrúpedes. Terceiro: as raposas têm pêlos enquanto nós temos penas. Teremos de nos livrar de nossas penas para que no seu lugar cresçam pêlos. E os nossos rabos, ridículos uropígios, estimulados pelos pêlos, se alongarão para trás e se transformarão em rabos de raposa. Quarto: as raposas têm focinhos e nós temos bicos. Mas, o que é um focinho? Focinho é uma coisa sem bico. Ora, bastará então que extraiamos os nossos bicos para termos focinhos como as raposas. Assim, pela educação, nos apropriaremos dos saberes das raposas, espécie que por tantos milênios nos tem dominado. Será, então, o advento da liberdade!” Mundico se calou. Todos estava biquiabertos com a sua eloquência. Todos o aplaudiram. E todos concordaram com o seu projeto educacional. Galos e galinhas arrancaram umas às outras as suas penas e, peladas, aguardavam o crescimento dos pelos. Por meio de exercícios apropriados movimentavam seus olhos para que eles aprendessem a olhar para a frente. Desbicaram-se, lixando seus bicos em pedras ásperas. E andavam, como Mundico dissera, aos pares, um na frente e outro agarrado atrás… Mas parece que o curriculo de raposa não deu resultado. A raposa continuou a comer ovos dos ninhos e chegou mesmo a devorar um pintinho distraido. Começaram, então, a imaginar que ela tivesse também devorado o Sesfredo, um galo velho de pescoço pelado, vermelho, e que cantava com sotaque caipira e que desaparecera. Convocou-se então uma outra assembléia para discutir providências a serem tomadas, ante o fracasso do curriculo proposto por Mundico. Toda a população do galinheiro compareceu. E, para surpresa de todos, até mesmo o Sesfredo, que tomou lugar num galho de uma árvore muito alta, onde nenhum galo ou galinha jamais fora. “A gente pensava que você tinha sido devorado pela raposa”, cantou o Godofredo, forte galo índio. “Que nada”, disse Sesfredo. “É que me internei no spa do Urubuzão prá fazer uma reciclagem de vôo. Urubu é ave como nós. Mas raposa não come urubu. Raposa não come urubu porque urubu sabe voar. Raposa come galos e galinhas porque desaprendemos o uso de nossas asas….” Nesse momento uma angolinha que ficara de sentinela deu o alarme: “ Aí vem a raposa, aí vem a raposa, aí vem a raposa…” Foi o pânico, correria, cada um correndo para um lado. Mas ninguém sabia voar. A raposa, valendo-se da confusão, abocanhou uma galinha garnizé, já depenada e desbicada… Todo mundo entrou em pânico. Menos o o Sesfredo. Lá de cima ele abriu as asas e voou alto, muito alto, até parecia um urubu… Assim é: ave que sabe voar não há raposa que consiga pegar…"

Rubem Alves
colhido em http://rubemalvesdois.wordpress.com/

"Aprende a voar, companheiro
aprende a voar, companheiro
Que a maré se vai levantar
que a maré se vai levantar
Que a liberdade está a passar por aqui
que a liberdade está a passar por aqui
que a liberdade está a passar por aqui
Maré alta
Maré alta
Maré alta"

Adaptação da letra de Sérgio Godinho, "Aprende a nadar companheiro"

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