terça-feira, 30 de novembro de 2010

A liberdade do «saber-ser»

"Todos os outros seus filhos tinham sido ensinados por homens enérgicos, pessoas duras, resistentes irrepreensíveis, pessoas que mantinham os rapazes quietos, distribuíam pancadas com determinação, não sorriam, impunham a ordem, procurando fazer de cada criança um obediente, para que se obtivesse um bom trabalhador. A própria escola de São Sebastião tinha quatro janelas que davam para a rua. A cada uma delas era raro não haver uma criança com uma máscara de asno, com orelhas de ourelo e uma fila de dentes exposta. (...) o mais novo estava destinado a ser instruído por um incompetente recém-chegado, um homem pequeno, de cara completamente lisa, que fazia lume sobre a secretária, queimava papel, cabeças de fósforo, álcool e algodão-em-rama dentro de frascos. Que volta e meia levava as crianças até aos montes cinzentos de São Sebastião, mandava observar a natureza, mandava espiar os animais. Mandava-as medir o desvio do Sol com metros de pedreiro, obrigava-as a irem de noite à escola para explicar os eclipses, levava-os a registar coisas tão inúteis como a posição das patas das éguas quando corriam e quando marchavam. Não lhes ensinava nada. Ele mesmo construía canudos especiais pelos quais fazia as crianças olharem as aves, contra a necessidade das próprias crianças que era saber, sobre os pássaros, quais os úteis e os inúteis, os que davam bons exemplos aos homens com os seus hábitos, e escrever isso em boa caligrafia.
(...) esse homem acabara por ser empurrado de São Sebastião mediante um abaixo-assinado, em que muitos haviam escrito em vez do nome uma dedada de polegar. (...) Que esse professor haveria de desaparecer do ensino, haveria de morrer cedo, sem nada para fazer, cercado de olhos por todos os lados, mas entretanto já havia deixado estragos insapagáveis por onde tinha passado."
Jorge, Lídia, O Vale da Paixão, pp. 48-49

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