quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Greve que eu queria

O dia amanheceu glorioso, com um sol quentinho que parece um S. Martinho retardado. Este e o rom-rom feliz do meu novo gato, garantem-me a paz e a tranquilidade de um lar feliz.
Existe no entanto um desconforto que não se coíbe perante as mais simples noções de bem-estar, como o acordar tarde ou o passeio pelos campos que reservei e executei hoje, durante a manhã. Eu não estou convicta e confortável com a minha manifestação de greve hoje.
Não podia deixar de a fazer, pois considero que o estado a que chegámos neste país é miserável, sobretudo ao nível moral. Não me identifico com nenhuma das forças políticas que compactuam no Parlamento com leis de excepção para o que lhes interessa; sinto-me o Zé Povinho albardado e montado pelos políticos, que passeiam felizes, depois de alimentados com o leite da Porca-Mãe:A política. Sinto-me roubada e gozada no meu protesto que, dando ao governo um sinal de descontentamento, o ajuda a embolsar umas massas que, como não estão contabilizadas em nenhuma medida de austeridade, talvez possam ser facilmente desviadas para um saco cor-de-burro-quando-foge, ou melhor, cor-de-esperto-que-se-abotoa quando o burro já sem cor e sem energia para fugir só espinoteia, fazendo uma triste figura.
Mas que poderia eu fazer?
Ouço frequentemente a voz da «camarada cassete Ana Rita», sindicalista estúpida e obtusa que dirige por vezes as reuniões sindicais na minha escola e que me disse uma vez, perante a minha posição de não integrar uma greve marcada para ima sexta-feira: "Quer dizer, como não fazemos a greve quando a colega quer - a meio da semana - não concorda com esta e não faz. Assim não faz nenhuma e não mostra a sua posição."
Não fiz nessa altura, mas integrei com muito gosto a mega-manifestação marcada para um feriado, em que podia, sem receio de perda de credibilidade face à opinião pública, mostrar que o meu desagrado é real e que não faço greve para ter um fim de semana maior.
Esta greve é ao meio da semana. Porquê então o meu desconforto? Porque não acredito que a greve resolva nada, as medidas do governo não podem voltar para trás, estão a fazer o que tem de ser feito, depois de séculos (verdadeiramente) a fazer o que não podia ser feito.
Para quê fazer greve então? Para mostrar ao governo que não estamos contentes? Isso é uma evidência. Nem mesmo políticos precisam que isso lhes seja mostrado!...
Para ficarmos de bem com as nossas consciências? Talvez...sim, claro. É isso.
Mas a greve que eu queria era a greve da acção e da inteligência, do esclarecimento. Eu hoje queria estar na escola, a falar com os meus alunos sobre as razões do descontentamento, os perigos da situação política e económica, a necessidade de um esforço colectivo. Eu queria substituir as minhas aulas por sessões de esclarecimento, feitas por cada um de nós, mostrando que somos cidadãos activos, conscientes e empenhados.
Mas a greve que eu queria não existe. Se eu estivesse lá, a esclarecer os meus alunos (e por contágio, os pais) os meus colegas iam achar que eu não estava a fazer greve, os sindicalistas iriam arrumar-me na caixa dos fura-greves, o Ministério não leria os sumários, e parte dos pais não se importaria com nada disso, porque os miúdos estiveram guardados e é isso que à maior parte interessa.
Eu não posso fazer a greve que creio ser necessária. Eu só posso fazer esta greve.
Tomo posição à minha maneira, vendo os testes dos alunos (que, felizmente, me vêm recompensando o esforço) e esclarecendo-os amanhã que o dia da greve foi dispendido em prol deles, porque, apesar de me irem descontar este dia de ordenado, eu nunca disse que não queria trabalhar.
E aproveito para tomar, aqui, outra resolução: tenho de deixar de usar o plural, porque, afinal de contas (que é o que interessa numa sociedade capitalista) quem é que eu penso que represento? Onde estão os "nós" na sociedade do «salve-se quem puder»? Creio até, que também esta expressão já está desactualizada, pois ainda revela - apesar de tudo - um espírito colectivo. Agora é mesmo «Eu por mim e os outros por eles».
Eu não queria viver nesta sociedade. Eu queria poder fazer a greve que de facto se opusesse, com inteligência e eficácia, a este estado de coisas: esclarecendo, agitando, minando o futuro com bombas de solidariedade e entre-ajuda...

2 comentários:

Ninguém.pt disse...

Quase assinava por baixo o seu comentário-lamento, Miss.

Lamento vê-la assim descrente e desmoralizada, mas percebo as suas razões e acho também que o nosso movimento sindical há muito deixou de fazer o que era preciso ser feito — continua a "lutar" contra um modelo social que não existe já, que mudou completamente sem que os nossos sindicalistas tenham reparado nisso.
Do que a Miss diz, apenas discordo de um "pormenor": o Governo tinha outras alternativas. Se tivesse a coragem de afrontar os ricos, se taxasse as fortunas e os lucros fabulosos de algumas empresas, nomeadamente os bancos. É aceitável que estando a economia a precisar de todas as ajudas, os bancos estejam a lucrar 5 milhões por dia? Por dia!...

Vou ver se encontro um texto de que gostei muito e vou enviar-lho por e-mail.

Beijito.

josé luís disse...

pois eu assino mesmo por baixo!