sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Viajar

Esforcei-me por terminar o Gonçalo Cadilhe antes de abandonar o local de férias.
Plantei-me ontem na piscina e lia com uma disciplina apreciável, adiando para mais tarde, arrumar os sacos e desvanecer os sinais da minha presença na casa. O sol estava quente demais e eu ia-me encolhendo, na sombra do guarda-sol, com o bikini ainda molhado e a reconhecer que se estava a fazer tarde e que não era necessário terminar o livro ao mesmo tempo que as férias...

Provavelmente teria ignorado os meus argumentos e teria mesmo terminado o livro se, no sossego da piscina deserta, não tivessem irrompido a Guidinha, com a sua filha Nini e a prima Gégé. Todas a tratarem-se por você, como manda o figurino, de cenas que eu penso sempre que só existem nas novelas e nas revistas que crescem nos arbustos em vasos nos cabeleireiros.

A Guidinha era uma Guidona, pouco mais nova que eu, que filmava compulsivamente as duas crianças na piscina. A Nini chamava-se Maria Inês, como se compreendia quando a mãe repreendia qualquer comportamento; a Gégé era Angélica e não deveria ter um segundo nome porque, apesar de não se portar mal, os elogios da prima às suas piruetas na piscina (tipo foca amestrada) era ditos bem alto e com nome digno de figurar em diploma.

A gaguez mental das famílias que se tratam por duas sílabas consecutivamente repetidas sempre me enerva. Arrumei o Gonçalo dentro do saco e abandonei a borda da piscina, não adiando por mais tempo a viagem para a capital.

Li-o hoje, no comboio da linha de Sintra, ainda não muito atulhado, procurando prolongar por mais um pouco a sensação de viagem. E das reflexões que ele, com mestria, vai fazendo a propósito do 'Viajar':

"O Roy tinha estado dois anos a viajar pela Europa, adorara Portugal e tinha passado dois meses a fazer surf na Figueira da Foz, a minha cidade. «Foi a minha etapa preferida de toda a Europa», disse-me ele entusiasmado. Achei tudo isto uma coincidência espantosa, e dispus-me a trocar impressões sobre a Figueira.

Mas as imagens que o Roy conservava na memória da minha cidade não pareciam coincidir com a realidade da minha cidade. O Roy falava-me de uma marginal com as casinhas ordenadas sobre a baía, e de um quarteirão histórico à volta dum mercado de peixe muito animado. Eu tentava conciliar essas descrições com a marginal feia, bruta, cimentificada, e com o bairro desertificado que rodeia um mercado obsoleto, asfixiado pelos centros comerciais e pelas lojas de desconto na periferia.

«Há quantos anos foi isso, Roy?», perguntei, desconfiado. «Deixa-me pensar. Talvez uns trinta e seis ou trinta e oito anos», respondeu. Era a minha cidade, sim, mas antes de eu ter nascido, antes de ela se ter perdido. Viajar serve também para reencontrar um passado que entretanto nos foi negado."
(A Lua Pode Esperar, pp. 238-239).

2 comentários:

Ninguém.pt disse...


Reverência ao destino


Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que se expresse sua opinião...
Difícil é expressar por gestos e atitudes, o que realmente queremos dizer.

Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias...

Difícil é encontrar e reflectir sobre os seus próprios erros.

Fácil é fazer companhia a alguém, dizer o que ela deseja ouvir...

Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer a verdade quando for preciso.

Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre a mesma...

Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer.

Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado...

Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece.

Fácil é viver sem ter que se preocupar com o amanhã...

Difícil é questionar e tentar melhorar suas atitudes impulsivas e as vezes impetuosas, a cada dia que passa.

Fácil é mentir aos quatro ventos o que tentamos camuflar...

Difícil é mentir para o nosso coração.

Fácil é ver o que queremos enxergar...

Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.

Fácil é ditar regras e...

Difícil é segui-las...


Carlos Drummond de Andrade

Ninguém.pt disse...


«... esta tentação de me encontrar...»



Viagem


É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano
Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar...


Miguel Torga