sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Retornos e Contornos



Há quatro anos atrás estive neste mesmo local, lendo, pela primeira vez, Gonçalo Cadilhe. Apaixonei-me pelo título Planisfério Pessoal e, na borda da piscina, viajei com ele pelo mundo inteiro.
Volto agora ao mesmo lugar com o livro A Lua Pode Esperar, do mesmo autor, do mesmo homem solitário e errante, cuja vida e reflexões (e vida com tempo para reflectir) me fascinam.



“Para que existe San Julián? O que levou um punhado de seres humanos, há cerca de cem anos, a erguer casas e a traçar ruas nesta baía que não conduz a parte nenhuma? E, no entanto, San Julián agarra, seduz, conforta. Talvez exista para servir a todas essas herdades desmedidas que necessitam de gravitar à volta de uma ideia de cidade. Talvez exista para que homens e mulheres, gaúchos e capatazes, garimpeiros e pastores, percorram durante horas caminhos de pó o meio do nada com a firme intenção de levar os filhos à escola, de tomar um copo com os amigos, de atravessar uma rua asfaltada, de olhar distraídos para a montra de uma loja que vende em simultâneo ferragens, sapatos e apólices de seguros.
(…) Assim se vence a melancolia dos homens pendurados entre o deserto e a maré baixa, e se dá às cidades a sua razão de existir.”

Gonçalo Cadilhe, A Lua Pode Esperar

6 comentários:

Ninguém.pt disse...

Então a banhos numa terra que vende aos colares os pinhões e à medida cogula deliciosas camarinhas, saborosíssimas pichas?

E que dizer da raia enxambrada ou regada com molho de pitau?

À sobremesa, claro, o tradicional leite-creme. Hummmmm, acho que já engordei 3 quilos só de recordar.

Escrivaninha disse...

Nã...eu não estou na terra do autor do livro...

Leite-creme por aqui não há, quanto ao resto...nem me pronuncio por desconhecimento de causa...

E pinguins também só no livro.

Escrivaninha disse...

Mas adoro a tarte de alfarroba e as galinhas de figo.

Ninguém.pt disse...

Sou mesmo mau a atirar o barro à parede! Cai todo...

Enfim, como diziam os antigos, é

A vida

A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;

A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura num momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave:

Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida – pena caída
Da asa da ave ferida
De vale em vale impelida
A vida o vento levou!


João de Deus

E os nosso manos brasileiros dizem que a vida são dois dias e o Carnaval mais um.

(Tenho um dia que perguntar a um se me faltou assistir ao princípio ou não vou gozar o Carnaval até ao fim...)

Ninguém.pt disse...

O que une dois lugares tão distantes?

Pois, os belos figos! Mas enquanto a norte a figueira é árvore altiva, tentando proteger os seus frutos de quem passa, talvez reservando-os para os banquetes dos passaritos, no sul a figueira tem dimensão humana, oferece os frutos todos a quem passa, não estica os ramos para dificultar acesso.

Os figos pretos

- Verdes figueiras soluçantes nos caminhos!
Vós sois odiadas desde os séculos avós:
Em vossos galhos nunca as aves fazem ninhos,
Os noivos fogem de se amar ao pé de vós!

— Ó verdes figueiras! ó verdes figueiras
Deixai-o falar!
À vossa sombrinha, nas tardes fagueiras,
Que bom que é amar!

— O mundo odeia-vos. Ninguém vos quer, vos ama:
Os pais transmitem pelo sangue esse ódio aos moços.
No sítio onde medrais, há quase sempre lama
E debruçais-vos sobre abismos, sobre poços.

- Quando eu for defunta para os esqueletos,
Ponde uma ao meu lado:
Tristinha, chorando, dará figos pretos...
De luto pesado!

— Os aldeões para evitar vosso perfume
Sua respiração suspendem, ao passar...
Com vossa lenha não se acende, à noite, o lume,
Os carpinteiros não vos querem aplainar.

- Oh cheiro de figos, melhor que o do incenso
Que incensa o Senhor!
Pudesse eu, quem dera! deitá-lo no lenço
Para o meu amor...

— As outras árvores não são vossas amigas...
Mãos espalmadas, estendidas, suplicantes,
Com essas folhas, sois como velhas mendigas
N'uma estrada, pedindo esmola aos caminhantes!

— Mendigas de estrada! mendigas de estrada!
E cheias de figos!
Os ricos lá passam e não vos dão nada,
Vós dais aos mendigos...

- Ai de ti! ai de ti! ó figueiral gemente!
O goivo é mais feliz, todo amarelo, lá.
Ninguém te quer: tua madeira é unicamente
Utilizada para as forcas, onde as há...

- Que más criaturas! que injustas sois todas
Que injustas que sois!
Será de figueira meu leito da bodas...
E os berços, depois

- Trágicas, nuas, esqueléticas, sem pele,
Por trás de vós, a lua é bem uma caveira!...
Ó figos pretos, sois as lágrimas daquele
Que, em certo dia, se enforcou numa figueira!

- Também era negro, de negro cegava
O pranto, o rosário,
Que, em certa tardinha, desfiava, desfiava,
Alguém, no Calvário...

— E, assim, ao ver no outono uma figueira nua,
Se os figos caem de maduros, pelo chão:
Cuido que é a ossada do Traidor, à luz da lua,
A chorar, a chorar sua alta traição!

- Ó minhas figueiras! ó minhas figueiras
Deixai-o falar!
Oh! vinde daí ver-nos, a arder nas fogueiras
Cantar e bailar...


António Nobre

Escrivaninha disse...

Ai! Que negrume, que tristeza!

Vamos lá a animar que tristezas não apagam dúvidas :-) Pelo contrário...