domingo, 19 de setembro de 2010

Em tempos

acreditei, para Portugal, em coisas semelhantes ao que Gilberto Freyre preconiza neste lindo poema sobre o Brasil...

Hoje, vi o discurso da Ministra da Educação. E não consigo acreditar!

"O outro Brasil que vem aí

Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem aí
mais tropical
mais fraternal
mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças
terão as cores das profissões e regiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais
terão as cores variamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor
o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo Brasil
coragem de morrer pelo Brasil
ânimo de viver pelo Brasil
mãos para agir pelo Brasil
mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis
mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores europeus e norte-americanos a serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores nem de mistificadores.
Mãos todas de trabalhadores,
pretas, brancas, pardas, roxas, morenas,
de artistas
de escritores
de operários
de lavradores
de pastores
de mães criando filhos
de pais ensinando meninos
de padres benzendo afilhados
de mestres guiando aprendizes
de irmãos ajudando irmãos mais moços
de lavadeiras lavando
de pedreiros edificando
de doutores curando
de cozinheiras cozinhando
de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.
Mãos brasileiras
brancas, morenas, pretas, pardas, roxas
tropicais
sindicais
fraternais.
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí."

Gilberto Freyre (1900-1987)

3 comentários:

Ninguém.pt disse...

Gilberto tinha um coração onde cabia a humanidade toda que um ser humano precisa para não ser o predador do próprio ser humano.

Mas havia quem fizesse perguntas e suposições:

Saudação aos que vão ficar

Como será o Brasil
no ano dois mil?
As crianças de hoje,
já velhinhas então,
lembrarão com saudade
deste antigo país,
desta velha cidade?
Que emoção, que saudade,
terá a juventude,
acabada a gravidade?
Respeitarão os papais
cheios de mocidade?
Que diferença haverá
entre o avô e o neto?
Que novas relações e enganos
inventarão entre si
os seres desumanos?
Que lei impedirá,
libertada a molécula
que o homem, cheio de ardor,
atravesse paredes,
buscando seu amor?
Que lei de tráfego impedirá um inquilino
- ante o lugar que vence -
de voar para lugar distante
na casa que não lhe pertence?
Haverá mais lágrimas
ou mais sorrisos?
Mais loucura ou mais juízo?
E o que será loucura? E o que será juízo?
A propriedade, será um roubo?
O roubo, o que será?
Poderemos crescer todos bonitos?
E o belo não passará então a ser feiura?
Haverá entre os povos uma proibição
de criar pessoas com mais de um metro e oitenta?
Mas a Rússia (vá lá, os Estados Unidos)
não farão às ocultas, homens especiais
que, de repente,
possam duplicar o próprio tamanho?
Quem morará no Brasil,
no ano dois mil?
Que pensará o imbecil
no ano dois mil?
Haverá imbecis?
Militares ou civis?
Que restará a sonhar
para o ano três mil
ao ano dois mil?


Millôr Fernandes

Escrivaninha disse...

Tão lindo!

A barreira do 2000...e já lá vai!

Como preparação para o ano 2000 comprei o livro de Georges Duby "O Ano Mil" e uma agenda, na Bélgica, que dizia "Moi, j'attends le 3000".

E mesmo nesse acredito que os sorrisos continuem a brilhar e as lágrimas a correr e o coração a bater mais forte por aquilo que nos diz muito...tecnologia à parte, ficará tudo muito parecido: a procura do amor e o medo da morte; a ganância e a humildade; o ter e o saber...o material e o espiritual...a natureza humana.

Ninguém.pt disse...

Sim, acho que tem razão (!), no ano 3000 tudo estará mudado para que tudo continue na mesma.

A história da humanidade é prova disso mesmo. Quando os explorados conseguem sacudir a canga que os esmaga, outras formas mais refinadas de exploração se instalam.

Embora haja quem diga que são mais cruéis as actuais formas de domínio de uns poucos sobre todos os outros, eu acho que não. A própria consciência de exploração está cada vez mais presente e portanto estamos avançando no bom sentido.

Em 3000 talvez ainda não tenha lá chegado, mas a humanidade, se ainda existir, deve ter dado uns passos mais no sentido da... humanidade.

Beijito. Durma bem, sonhando com tecnologias libertadoras...