Será que as palavras ficam presas no tempo?
Terão as palavras alguma coisa a ver com a moda, efémera e volátil?
Evocações do passado também poderão ser palavras que, outrora, marcaram tanto o nosso quotidiano como o som do chiar do baloiço, o pregão da “língua da sogra” na praia ou o cheiro do cozido à portuguesa ao domingo?...
Procurar e (re)contextualizar palavras, embalarmo-nos nelas, divagar sobre elas, são alguns dos objectivos deste projecto.
Por puro prazer!
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
Ambientes
Sob o Museu...poderia ser o túnel do tempo...
Afinal é só a cisterna original do edifício do Museu de Portimão.
Discute-se qual gênero é mais puro — haicai, soneto, glosa, oitava ou trova — e cada defensor mostra uma prova que num o verso é solto e noutro, duro.
Uns acham que este aqui tem mais apuro, enquanto aquele traz algo que inova; alguns mais radicais chamam de "cova", "prisão", "túnel do tempo" e "quarto escuro".
Nem oito, nem oitenta: a poesia é boa ou má conforme o testemunho que dá de seu autor enquanto a cria.
Se sai-me redondinha, é que meu punho encaixa em cada sílaba outro dia vivido, sem minuta nem rascunho.
4 comentários:
Também eu entrei no túnel do tempo, Miss, e olhe bem o que eu vi:
Poema do amor em estado novo
Tens o olhar misterioso
Com um jeito nevoento,
Indeciso, duvidoso,
Minha Marta Francisca,
Meu amor, meu orçamento!
A tua face de rosa
Tem o colorido esquivo
De uma nota oficiosa.
Quem dera ter-te em meus braços,
Ó meu saldo positivo!
E o teu cabelo — não choro
Seu regresso ao natural
— Abandona o padrão-ouro
Amor, pomba, estrada, porta,
Sindicato nacional!
Não sei por que me desprezas.
Fita-me mais um instante,
Lindo corte nas despesas,
Adorada abolição
Da dívida flutuante!
Com que madrigais mostrar-te
Este amor que é chama viva?
Ouve, escuta: vou chamar-te
Assembleia Nacional
Câmara Corporativa.
Como te amo, como, como,
Meu Acto Colonial!
De amor já quase não como,
Meu Estatuto de Trabalho,
Meu Banco de Portugal!
Meu crédito no estrangeiro!
Meu encaixe — ouro adorado!
Serei sempre o teu romeiro...
Pousa a cabeça em meu ombro,
Ó meu Conselho de Estado!
Ó minha corporativa,
Minha lei de Estado Novo,
Não me sejas mais esquiva!
Meu coração quer guarida
Ó linda Casa do Povo!
União Nacional querida,
Teus olhos enchem de mágoa
A sombra da minha vida
Que passa como uma esquadra
Sobre a energia da água.
Que aristocrático ri,
O teu cabelo em cifrões
— Finanças em mise-en-plis! —
Meu activo plebiscito,
Nunca desceste a eleições!
Por isso nunca me escolhes
E a minha esperança é vã.
Nem sequer por dó me acolhes,
Minha imprevidente linda
Civilização cristã!
Bem sei: por estes meus modos
Nunca me podes amar.
Olha, desculpa-mas todas.
Estou seguindo as directrizes
Do professor Salazar.
Fernando Pessoa
(Claro que tal declaração de amor nunca viu a luz do dia enquanto o objecto "amado" foi vivo. Vá-se lá saber porquê!...)
Ai, que mimo! Não conhecia. Obrigada!
Ainda a propósito do túnel do tempo:
Soneto 955 — Formal
Discute-se qual gênero é mais puro
— haicai, soneto, glosa, oitava ou trova —
e cada defensor mostra uma prova
que num o verso é solto e noutro, duro.
Uns acham que este aqui tem mais apuro,
enquanto aquele traz algo que inova;
alguns mais radicais chamam de "cova",
"prisão", "túnel do tempo" e "quarto escuro".
Nem oito, nem oitenta: a poesia
é boa ou má conforme o testemunho
que dá de seu autor enquanto a cria.
Se sai-me redondinha, é que meu punho
encaixa em cada sílaba outro dia
vivido, sem minuta nem rascunho.
Glauco Mattoso
Ainda as palavras
Não me peçam palavras que não quero
dizer. São tais rameiras inimigas
que só transportam medos e intrigas
e nos vestem de luto e desespero.
Não me peçam palavras carregadas
de tristeza, de dor e sofrimento.
Sei-as tão vãs que nem por momento
as quero ouvir ou ter por ciciadas.
Não me peçam palavras escabrosas,
lâminas afiadas cujo gume
tudo atravessa e queima como lume.
Peçam-me antes palavras luminosas
que me façam voltar a ser criança,
acreditar de novo e ter esperança.
Torquato da Luz
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