"A minha filha partiu uma tigela
na cozinha.
E eu que me apetecia escrever
sobre o evento,
tive que pôr de lado inspiração e lápis,
pegar numa vassoura e varrer
a cozinha.
A cozinha varrida de tigela
ficou diferente da cozinha
de tigela intacta:
local propício a escavação e estudo,
curto mapa arqueológico
num futuro remoto.
Uma tigela de louça branca
com flores,
restos de cereais tratados
em embalagem estanque
espalhados pelo chão.
Não eram grãos de trigo de Pompeia,
mas eram respeitosos cereais
de qualquer forma.
E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,
mas das Caldas,
daqui a cinco ou dez mil anos
devia ter estatuto admirativo.
Mas a hecatombe
deu-se.
E escorregada de pequeninas mãos,
ficou esquecida de famas e proveitos,
varrida de vassouras e memórias.
Por mísero e cruel balde de lixo
azul
em plástico moderno
(indestrutível)"
Ana Luisa Amaral, Minha Senhora de Quê, Quetzal Editores, Lisboa, 1999: 46, 47
3 comentários:
nem mais!
;)
Fez-me lembrar estoutra história:
Formiga
"Pai, anda cá", diz a minha filha.
Pela parede branca sobe uma formiga,
minúscula, muito lenta, obstinada.
A minha filha encolhe o corpo
pequenino para olhar. Não sei se é
a primeira vez que vê uma formiga;
mas é, parece-me, a primeira vez
que se apercebe da enorme diferença
de escala que a separa do insecto.
A minha filha acompanha a subida
heróica da formiga pela parede
branca, vira-se para mim, sorri.
É nesse espaço subitamente tenso,
criado entre a alegria infantil da
descoberta e o esforço irracional
da formiga, que nasce o poema,
mesmo se eu já desisti dele para
limpar o ranho que a minha filha,
absorta, deixou chegar até à boca.
José Mário Silva
Beijito, Miss.
Poemas do quotidiano. Para quem tem arte...
Beijitos, caríssimos amigos virtuais.
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