terça-feira, 26 de abril de 2011

Memória do 25 de Abril: Páginas de Rómulo de Carvalho

Com a devida citação, transcrevo aqui a Memória do dia 25 de Abril de 1974, do Professor Rómulo de Carvalho, que encontrei no blogue De Rerum Natura, num post de Helena Damião.
Grande surpresa para mim - que a nossa percepção pessoal do tempo nem sempre coincide com a cronologia das coisas - o Professor Rómulo de Carvalho sobreviveu a Zeca Afonso. Mas eu conheci Zeca Afonso primeiro que Rómulo de Carvalho. Esse conheci-o tarde, para o admirar como Professor e Cientista e me fascinar com a identificação com o poeta que, esse sim, conhecia desde criança, nas letras (que sei de cor) da Pedra Filosofal e da Lágrima de Preta.

"Naquele dia 25 de Abril de 1974, que foi uma 5.ª feira, saí de casa de manhã, como de costume, a caminho do Liceu Pedro Nunes. Não tinha aulas, porque (...) estava afastado desse serviço, mas tinha um encontro marcado com dois professores alemães, nesse liceu, onde iríamos trocar impressões, em francês, sobre questões de ensino. Segui pela Coelho da Rocha, normalmente, sem notar nenhum sinal de "revolução", e aí encontrei um colega, o Trigueiros, que fora meu estagiário, e se encaminhava também para a citada reunião. Lá ao fundo virámos à direita e começámos a descer a rua da Estrela.

Ó Dr. Trigueiros, o que é aquilo? Parámos a observar. À direita, a meio da rua, há um quartel, da Guarda Republicana, com uma porta larga e guarita junto dela onde normalmente se vê um soldado de pernas abertas, de sentinela, a observar quem passa. Por cima da porta, no 1.º andar, há uma janela com varanda, e o que me deu nas vistas, ao descer a rua, foi ver o soldado nessa dita varanda, de pernas abertas, a observar quem passava. A porta do quartel estava fechada, e a habitual sentinela passara-se para o 1.º andar. Que é isto?

Quando chegámos ao liceu, os alemães, que tinham vindo da Baixa, disseram-nos, alarmados, que havia por lá grande movimento de gente que se manifestava, com soldados à mistura. Devia ser uma revolução, o que aconselhou todos nós a regressar aos seus lares. Assim foi.

Quando cheguei a casa liguei o aparelho de rádio na expectativa de ter notícias dos acontecimentos. Não havia dúvida. O movimento estava a ser seguido pelos operadores de rádio como se procedessem à execução de um filme, ao vivo.

Ouviram-se ordens e contra-ordens, comentários rápidos em tons alvoroçados. A Revolução estava na rua. A ditadura estava a ser derrubada. Os maus da fita iam ser castigados e os bons erguidos aos ombros, entre aplausos.

De vez em quando as ondas radiofónicas traziam consigo uma canção. Era a canção que, por combinação prévia, tinha servido de sinal à eclosão do movimento revolucionário. Ficara combinado que, entre as zero horas e a uma hora daquele dia 25 de Abril de 1974, a Rádio Renascença emitiria uma canção, já então conhecida, de um "cantautor" (nome que na altura se usava para os autores das letras das canções que eram simultaneamente autores das respectivas músicas) de nome José Afonso, agora já falecido. Todos os candidatos a revoltosos ligaram os seus rádios, àquelas horas, para a referida estação, e mal ouvissem o aguardado canto, saltariam para as ruas de armas na mão.

A canção, como vos disse, já era conhecida, mas de muito pouco tempo antes da Revolução. A censura exercida no tempo de Salazar tinha-se gradualmente abrandado após a sua queda da cadeira, a ponto de tornar possível o conhecimento público de canções de feição revolucionária (...). Chamava-se a canção "Grândola vila morena", e começava assim: "Grândola vila morena, / terra da fraternidade. / O povo é quem mais ordena / dentro de ti, ó cidade."

A única coisa que daqui se compreende, e exalta os ânimos, é que o povo é quem mais ordena. É mentira, mas é bonito. Porquê Grândola? (...) E morena porquê? Para rimar com ordena com que, aliás, não rima bem! E que se passou em Grândola, que a gente saiba, para ser terra da fraternidade? Eu, pelo menos, não sei (...). Basta de perguntas. O que interessa é que a canção era revolucionária e o público exaltou-se com ela, e aplaudiu-a cantando-a em coro. Essa foi a canção que deu o sinal de partida para os revolucionários, e desse modo se instalou na História."


Rómulo de Carvalho, in Memórias (2010), Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 298-300

2 comentários:

josé luís disse...

ah...
saudades do prof. rómulo...
estava a ler e a ouvir-lhe a voz.
é que ele falava exactamente como escreve estas memórias, com interrogações pessoais, pausas, inflexões da voz...

(obrigado por esta recordação)

Escrivaninha disse...

Caramba! Que rapidez! Ainda nem a cola estava seca...:-)

E fico a pensar: Não foi só sorte dos alunos terem um Professor assim, também foi sorte do Professor ter alunos que conseguiram perceber e apreciar a excelência do Professor que tinham. E que o recordam como tal.

Que maior ventura pode querer um Professor!...