segunda-feira, 25 de abril de 2011

Episódio de uma Tragicomédia pessoal - Memória do 25 de Abril

Se fosse vivo o meu padrasto faria hoje 78 anos...acho...
Na realidade tê-los-ia feito no dia 18 de Abril, mas fruto da interioridade em que nascera, só foi registado a 25 de Abril.
"Vermelho por dentro e por fora" gostava da coincidência da data com a da Revolução e só depois de casado com a minha mãe deslindou que afinal fazia anos noutra data...
Mas o 25 de Abril sempre foi o seu dia, pelas várias razões que se compreendem.
Foi por isso que, no primeiro 25 de Abril após a sua morte - creio que faz agora seis anos ou talvez sete - eu tentei despedir-me dele de forma séria adequada e definitiva.
Perguntei à minha mãe qual o número da campa. Deixei-a de mau humor, porque disse que queria ir sozinha, comprei duas dúzias de cravos vermelhos e convoquei o meu carro para subir ao cemitério, pela primeira e última vez (espero eu).
Ao contrário do dia glorioso de hoje, naquele 25 de Abril, chovia de forma constante, estando o céu de um cinzento inequívoco para todo o dia. Achei até adequado ao meu estado de espírito.
O Afonso tinha morrido no Janeiro anterior e não acho que os funerais - locais de encontro e de observação - sejam o melhor momento para uma despedida que se quer introspectiva, pessoal, solitária.
O corpo levou consigo um único cravo vermelho, promessa de uma despedida condigna e nesse dia queria espalhar simbolicamente os cravos sobre a sua campa, para assinalar a todos os passantes que, mesmo depois de morto, aquele comunista continuava a manter vivo o espírito do 25 de Abril.
A custo, com o chapéu de chuva e os cravos, procurei a indicação da rua e subi-a enfrentando o vento e misturando nas faces a água da chuva e das lágrimas.
Encontrei a campa. Não tinha a pedra, tal como a minha mãe me tinha dito, pois era necessáro passar um tempo para que a terra abatesse para voltar a colocar a pesada pedra de mármore da campa de família.
A terra escura da chuva alegrou-se com os cravos encarnados, parecendo sair da terra para comemorar a vida, no meio de um cemitério tristonho e quase deserto, que o feriado nada tem de religioso e a chuva desencorajou as penitências familiares.
Fiz o meu luto, ali, naquele dia em que me custava muito, mesmo muito, que ele não estivesse junto de nós, que ele não estivesse nunca mais, para assinalar a coincidência da data do seu Bilhete de Identidade com a Revolução Libertadora que pôs fim à Ditadura, a Revolução pela qual lutara e que festejava alegremente.
Despedi-me então definitivamente da sua presença na Terra, da sua presença na nossa família, assegurando-lhe que seria sempre recordado como um pai e como educador dos valores revolucionários que ambos considerávamos certos para reger a nossa vida e o país.
(Espero que lá em cima não acompanhem as notícias políticas, senão o dia de hoje só terá de bonito o sol...)
Olhei para a campa uma última vez. Limpei as lágrimas do rosto e dispus-me a descer de novo para o carro.
De pé, só então olhei verdadeiramente à minha volta. E uma sensação estranha me invadiu: Não era aquela a campa! Não era...Nem sequer era naquele sector do cemitério.
Oh, meu Deus! Invadiu-me um pânico e um desalento. A minha mãe estava já muito baralhada e deve ter-se enganado a dar-me o número. Como saber?...O cemitério é enorme e sem qualquer indicaçao sobre a campa...
Olho de novo para a campa juncada de cravos vermelhos...Paciência! O que conta é a intenção...Só espero que não tenha feito todo este cerimonial na campa de um salazarista.
De repente este pensamento divertiu-me. E sorri.
Hoje penso que, se dependeu de ti, a campa era mesmo de um salazarista e o último acto da minha despedida para ti foi um sorriso e um certo desconcerto por esta troca, que te teria divertido imenso.

2 comentários:

Ninguém.pt disse...

Muito enternecedor, Miss, tenho a certeza de que o destinatário deixaria correr uma lágrima de gratidão...

A nossa memória é muitas vezes vencida pela ânsia com que desejamos ir mais longe — e isso é humano, é bom, é o que nos faz andar em frente, ir fazendo o caminho que exigirá o caminho que nos falta percorrer.

Mas não convém de todo que esqueçamos os degraus que já subimos — sempre menos do que aqueles que nos propuséramos subir, sempre poucos, sempre nos deixando demasiado abaixo do cume que queríamos e queremos atingir.

E recordo apenas que noutros tempos, negros tempos que o seu padrasto execrava, não poderia a Miss ter posto cravos vermelhos, não poderia ter escrito o post que escreveu, não poderia eu estar respondendo...

Claro que não se conquistou só isto, mas estes pequenos "pormenores" são o pormaior que permite sonhar tudo o resto — sem a liberdade só lutamos para a ter, como sem ar só lutamos para respirar e nem a fome nem a sede nos ofusca a necessidade mais premente.

Não paremos de subir, não estejamos sempre a olhar para o que já subimos, mas não esqueçamos nunca que não estamos no primeiro degrau!

Além do mais, é até uma ofensa a quem nos ajudou a subir até aqui — como parece ter sido tarefa daquele que homenageia de forma tão terna.

Obrigado, Miss, pela ternura.
É coisa felizmente contagiosa e, portanto, quando alguém a usa salpica dela tudo à sua volta.

Beijito.
(Desculpe o lençol, mas a minha capacidade de síntese anda muito por baixo...)

josé luís disse...

muito tocante e sentido, cara peça de mobiliário.

[pela sua descrição creio mesmo que era a campa de um ateu. graças a deus ocorrem enganos]