quinta-feira, 21 de abril de 2011

Equipamentos de origem

"Caminhar perto do mar, ou num qualquer sítio inóspito, sempre a fazia pensar em tempos primordiais, em lutas pela sobrevivência, em atitudes tão temerárias como construir barcos e partir à descoberta...
Frequentemente (e cada vez mais) os seus pensamentos orientavam-se na procura de compreender sentimentos e instintos que terão sido os responsáveis por coisas incompreensíveis para nós(os civilizados, os da vida confortável) que obliterámos tempos difíceis e pouca importância damos à História, ao devir, aos desígnios insondáveis do Destino, da Criação, de um caminho percorrido sabe-se lá porquê e que envolveu muito mais sacrifício que aquele que poderemos compreender.
Caminhava três a quatro passos atrás dele. As marcas dos pés na areia explicavam inequivocamente a dianteira dele: era maior, tinha as pernas mais compridas e estava calçado. Ela insistia em sentir a areia nos pés e não conseguia, por mais que quisesse, acompanhar as suas passadas que se intensificavam, em ritmo e tamanho, à medida que o tempo se tornava «mais feio». O vento soprava as nuvens negras para o centro do céu, como se se tratasse de um cão pastor a cuidar das suas ovelhas.
O rebanho de nuvens ocultava agora o céu e as gotas de chuva começaram a cair, primeiro moles e calmas, depois tocadas a vento, fustigando os caminhantes.
Por essa altura os passos dela tornaram-se descompassados; irritada consigo mesma parecia um pequeno pássaro aos pulinhos atrás dele a quem ia tranquilizando quando se virava para trás: «Eu estou bem, segue, segue...»
Por fim a praia ficou deserta, encaminhando-se os banhistas frustrados para os cafezitos de madeira da praia. Ele fez-lhe sinal de que também se deviam encaminhar para um abrigo: aquele cafezinho ali, no cimo de um monte, perigosamente no cimo de uma rocha, sujeita a erosão.
Ela seguiu-o, procurando com dificuldade ver através das lentes molhados dos óculos, disparatadamente escuros.
Quando chegou ao fundo de umas escadas rudimentares não teve tempo de pensar antes que ele a elevasse no ar, por acção do braço com que lhe rodeara a cintura e a colocasse no segundo degrau, ao seu lado.
Consumiram depressa a distância das escadas até ao café.
Lá dentro, comprimidos entre os muitos ex-ocupantes da praia, ele sorriu-lhe com as pestanas escuras molhadas, parecendo ainda mais grossas, e retirou-lhe carinhosamente os cabelos molhados do rosto.
Cada vez mais pensava em sensações primordiais, em situações de algum perigo que terão determinado a união da espécie e uma certa divisão «natural» dos papéis sociais, muito associados às diferenças de género.
Lá em baixo já não se distiguiam as marcas dos pés de ambos: os dele calçados e grandes e fortes, os dela descalços, três ou quatro passos mais atrás.
Respirou fundo e decidiu que nunca iria confessar a ninguém como lhe tinha sabido bem o enlace protector do braço dele quando a içara para o abrigo."

1 comentário:

Ninguém.pt disse...

Não sei explicar porquê, mas apeteceu-me Gedeão depois de ler o seu contito catita — que tem mais interrogações do que respostas. E apenas um ponto final, mas sem parágrafo.

Poema do homem só

Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de outro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém.


António Gedeão

Beijito.