O regresso à escola. Todos os sentimentos que isso traz: a alegria de encontrar os garotos, o desagrado de encontrar a câmara frigorífica que é aquela sala de professores, cada um em sua quadrícula, qual corpo morto à espera do médico legista, alimentados artificialmente pela luz dos écrans dos computadores pessoais, até à hora de iniciar a marcha de zoombies, olhar o relógio de ponto, pôr a cabeça de lado, escutar o «toque de entrada», dirigir-se à quadrícula correspondente aos números da quadrícula do horário, retirar o livro de ponto, esperar a sua vez de integrar a fila que parece deslizar automaticamente pelas escadas abaixo, depositando os seus autómatos no habitáculo estipulado pelo computador que desenhou as quadrículas dos horários por que nos regemos.
Dentro do meu habitáculo recebo a luz e energia do sorriso dos moços. Os desejos de bom ano, a conversa sobre as aulas, as férias, o que vamos estudar...Sinto-me um girassol a erguer a corola para os sorrisos deles.
A aula já vai numa marcha vertiginosa pelo Tempo quando o Daniel chegou atrasado e envergonhado. «Depressa que tens de apanhar o assunto: estamos a falar dos judeus. Que sabem vocês disso?» Os dedos no ar, os conhecimentos dos trabalhos de Moral, o desfilar das grandes religiões monoteístas todas misturadas...e não são elas todas mesmo misturadas?...Israel...«onde eles batem com a cabeça nas paredes...»; «e com chapeuzinho...»; «e um tapete...»; «Não! Esses são os outros...ortodoxos?...»; «os ortodoxos são cristãos também, não são professora?...»; «mas também há judeus ortodoxos! Há, sim! Que eu estudei isso para o trabalho de Moral! São aqueles que deixam crescer uns caracois de cabelo no nariz...». Como ele apontava para as orelhas rimo-nos todos muito. E os nomes das grandes religiões no quadro. E o Alá e o Deus e o Javé, o Cristo, o Moisés, o Abraão...o Hitler e a Ann Frank...E Jerusalém...quase além...ali, à distância dos noticiários todos...que falam de Israel, de um apedrejamento, de uma contestação, das guerras intermináveis no Médio Oriente...
"Fanatismo" e "Ecumenismo" são as duas palavras novas para o glossário. E o Rafael - com aquele ar despassarado - exibe orgulhoso um mini-dicionário de bolso que resolveu trazer sempre, pois quer saber logo o que aquilo quer dizer, «quando voltar para casa já não me lembro, eu sei!».
Estou tão feliz que nem consigo dizer!... Sinto-me muito mais forte: realmente eu alimento-me da energia deles.
Mudar a bateria do carro. Ter de chamar um dos rapazes da oficina, onde já sabem que a professora não percebe nada de carros, «mas não precisa de se ralar, para tratar do carro estamos cá nós. Bom Ano!»
E agora que o carro já anda talvez seja boa ideia não adiar mais a ida ao veterinário, que a Menina tem andado a vomitar e ainda há tão pouco tempo perdi uma companhia felpuda...
Nunca tinha visto tirar sangue a um gato! E as veias são tão fininhas...só me lembrava a minha mãe, no fim, na secção de oncologia, onde fazer-lhe as análises era um suplício, pois as veias estavam tão fininhas...era tudo tão débil naquele corpo desprovido de energia; da energia com que ela gritava (dantes) furiosa ou de alegria, que a minha negação de «low-profile» tem antecedentes. Agora ali estava...com os dedos finos e magros, que ainda se fincavam no meu braço com a força de me dizer algo urgente, que eu tinha de ouvir e fazer «como deve de ser», que uma mãe não deixa de ter autoridade só porque já não consegue falar alto; a autoridade é toda uma construção que não depende unicamente do som.
A gata tem agora um cateter na pata esquerda, porque se as análises provarem que necessita de ficar a soro, já está preparada. Ela parece bem, mas sacode a pata com força e aproveitou para expulsar o jovem felino e se instalar autoritariamente no meu colo a pedir festas e mimos, que isto de ter uma pata entrapada tem de ter o seu valor.
Percebo que não fiz tudo o que tinha para fazer. «Paciência! Amanhã, num daqueles 'furos', em vez de ficar a lamentar os sorrisos enigmáticos dos meus colegas todos juntos, sozinhos, em frente aos seus écrans, termino as papeladas a que tinha decidido dar a volta hoje...
O Fernando Tordo está a cantar a «Laranja Amarga e doce; minha passagem para o mundo suave e doce da loucura». Ouvem-se os violinos em fundo. É um lindo espectáculo, parece dos tempos antigos, das noites de música, teatro, variedades...noites de família em frente a um écran bicolor, que nos arrancava excalamações colectivas, provocava discussões, explicações, confusões...que o écran era só um e o programa não tinha 'pause': sempre que alguém falava os outros perdiam um pedaço irrecuperável de um programa que se desvendava pela primeira e única vez. Bem, às vezes não, já todos sabíamos de cor as cenas do Leão da Estrela ou do Pátio das Cantigas, mas não permitíamos que ninguém falasse, pois cada um de nós tinha as suas preferências...
O Fernando Tordo está agora a cantar a télétélé, aquela sátira à novela única que víamos todos «em uníssono» e comentávamos no dia seguinte, afligindo-nos pelas personagens que preenchiam as nossas fantasias mediáticas...Agora salienta-se o fundo de metais da melodia, magnificamente acompanhada pela orquestra, ali mesmo, sem play-back.
Que bom terem-me oferecido estas pantufas no Natal: são tão fôfas e quentinhas, que até a mim me apetece ronronar, enquanto faço festas à gatinha lesionada, tendo um magnífico programa de música portuguesa - um espectáculo de televisão! - como cenário deste fim de dia de regresso, de retorno, de recuperação da energia que tinha esquecido numa sala de aula.
Talvez seja boa ideia pôr o creme de noite antes de me deitar, que as rugas devem ter vontade de se instalar, sobretudo porque eu me rio muito, a despeito dos conselhos que leio nas revistas de cabeleireiro que dizem que devemos evitar expressões exageradas e perniciosas no nosso semblante.
«Meu amor, meu amor, minha estrela da tarde; que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde».
Estou exausta! Deslumbrada pelo reencontro com tudo o que é uma sala de aula e toda uma variedade de coisas que tive de fazer hoje e que me fez pensar numa miscelânia, quando pensei em depositar aqui algumas palavras.
Uma miscelânea!...Daquelas onde li alguns artigos d'O Archeologo Portuguez, ou discursos das Festas da Árvore do início da Primeira República. Essa mesma, que estamos a comemorar, apelando ao voto nas próximas presidenciais.
A comemorar!...Isso também dava para escrever umas palavras...mas - o Tordo diz "Adeus tristeza...chegou a hora de acabar" e penso que ele tem razão.
Afinal ainda vai cantar 'A Tourada', mas isto continua tudo amanhã...
O espectáculo termina agora. Com o público todo a bater palmas e ele a enviar um beijo com as duas mãos. A imagem ficou em câmara lenta. Ele está feliz! Adoro finais felizes! Que bom ter público!
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